Dois ou três dias depois, a caminhar na direção do alto da Serra, fui dar à casa onde vivia.
Os cães, dois entre podengos ou outros aproximados vieram ladrar a minha aproximação. A casa, baixa, sobre o comprida, mais do que esconder-se entre o arvoredo, era parte da mata. Por trás uma espécie de horta. À porta a motorizada que reconheci.
Mais para matar a minha curiosidade do que por necessidade de orientação, gritei.
-- Boa tarde. Está alguém em casa? Estou perdido.
Os cães a ladrar em stereo mas sem darem mostras de quererem ferrar.
Insisti.
-- Ó da casa?!?! Tá aí alguém?
Por fim, afastando uma cortina de farrapos que protegia a porta aberta, surgiu a figura.
Definitivamente um homem velho.
-- Qué que quer?
-- Boa tarde, para subir a Serra é passar para o lado do Convento, é este o caminho?
Como se houvesse dúvidas no óbvio, uma vez que o único trilho era aquele em que me encontrava e ia direto para o céu passando pelo purgatório da Cascalheira, uma subida íngreme de cascalho grande e solto que nos faz subir a quatro muitas vezes...
Na realidade, primeiro quis saber quem era o ermita que ali vivia, depois ao ver e reconhecer a motorizada, quis apurar o género de quem se tinha cruzado comigo dias antes. Há trinta anos atrás, na minha ingenuidade, acreditava que o género das pessoas era binário. Pensava que as pessoas ou eram homens ou eram mulheres e que fora deste reduzido universo de duas hipóteses, não existiam possibilidades.
Mas velho, saído daquela casa que mais parecia uma gruta de madeira velha na mata de madeira nova, esclareceu a minha idiota curiosidade não deixando dúvidas que era um homem. A voz, a barba branca por fazer a postura de pernas abertas, os braços a acabarem e mãos largas de camponês.
-- Atão na vê que é sempre a subir... Se queres passar antes da noite, vai já. Tens água?
Eu agradeci, mostrei o cantil cheio, disse boa tarde e segui caminho. Sem entender as roupas de mulher com que o velho se vestia.
Subi a Serra e nessa noite dormi abrigado numa centenária e abandonada cela de monge num convento com vista para o mar.
No dia seguinte numa tasca na aldeia alguém me disse que o velho não batia muito bem. Que vivia ali sozinho no meio do mato longe do mundo e vestia a roupa da mulher que em tempos teve.
Interessado por enigmas e coisas estranhas tentei saber mais: Mas é gay? Não. Nada disso. Vive ali sozinho mas veste sempre de saia. Chamamos-lhe o Chico das saias.
Mais tarde contaram-me um novela romântica da mulher que fugiu. Que encontrou outro amor e deixou o Francisco só. Que se fez ermita, que veio à procura a solidão, do isolamento da serra e do silêncio. E que o Chico, ficou ainda mais sozinho, mais isolado, mais melancólico e mais triste. Que na casa vazia construída em madeira por suas mãos entre o calor dos verões e os frios do inverno o Chico se agarrava às recordações da vida partilhada. Que por tédio, amor, saudade e loucura vestia as roupas que a mulher deixou no armário e que ele carregava numa mala como o seu maior tesouro. Que não voltou a vestir-se com as roupa que o mundo esperava que usasse, porque com as saias da mulher se sentia mais humano e menos bicho.
Psicólogos, psiquiatras e outros especialistas em arrumar em gavetas identificando os comportamentos dos outros, iam falar em depressa, esquizofrenia, alienação de gênero ou outras expressões ainda mais complicadas que eu não sei dizer e muito menos sei o que significam.
Os pastores e camponeses da Serra da Arrábida que são sábios por inerência, simplesmente acrescentaram "das Saias" ao diminutivo do Francisco.
E pronto.
Por ali viveu e trabalhou vestindo saias por muitas décadas.
Sobe hoje que o Chico das Saias descansou da sua vida de camponês no início deste século. Que a administração do Parque Natural da Arrábida arrasou a casa de madeira onde vivia. Que a mata e os bichos taparam a horta que cultivava. Mas sei que a sua loucura, amor e capacidade de exercer a liberdade individual ficará marcada na Serra e que o caminho que sobe a serra e passa ao lado do sito onde morou tem o nome escrito em letra de impressa de Trilho do Chico das Saias.
Viva a loucura, que de gente normal está o mundo saturado.