terça-feira, 4 de setembro de 2018
Quando o sporting joga fora
Trabalhavam as duas na secção de recuperação de crédito. Tinham a mesma idade com diferença de 3 dias, uma nascida a 5 a outra a 8 de Fevereiro. Começaram novinhas no banco mais ou menos ao mesmo tempo. A vida fê-las colegas e elas tronaram-se amigas. Depois, porque foram educadas para isso, uma delas casou-se com um rapaz que trabalhava nas finanças, e a outra, um ano depois casou-se com um moço sargento da marinha em permanência no Alfeite. Uma delas católica quase quase praticante, tinha sido catequista e tudo. A outra menos praticante, mas igualmente conservadora filha de um gnr e de uma senhora jeová. Escolherem maridos do tipo bom moço trabalhador, moderadamente ciumentos e luso-machistas sem excessos.
Os maridos tornaram-se também eles grandes amigos.
Por alem das esposas trabalharem no mesmo sitio, os rapazes tinham em comum um grande amor ao sporting. Ambos sócios encartonados com cotas em dia. Assíduos nos jogos a puxarem um pelo outro assim como puxavam pela equipa.
Vieram as crianças: dois meninos gémeos com a trombinha do sargento e uma menina que era a alegria do gajo das finanças. As gravidezes quase simultâneas aproximaram ainda mais as duas amigas.
Os dois casais começaram a passar ainda mais tempo juntos. Juntavam-se todos os fins de semana. Quando o sporting joga em Alvalade jantam no sábado e no domingo eles vão os dois à bola e elas ficam juntas em casa, porque não são de sair. Quando o sporting joga fora, eles vão no sábado e elas ficam com as crianças alternadamente na casa de uma da outra. Um domingo em Alvalade, o outro domingo em viagem por este imenso pais de futebóis. Os homens chegam ao final do domingo, eufóricos ou lamentando arbitro, a equipa o presidente... Depois eles ficam a ver os comentários na televisão e elas arrumam a cozinha. Moram a dois quarteirões de distancia.
No segunda-feira voltam a encontrar-se as duas na copa, para beber café e arrumar no frigorifico pequenino, as caixas de plástico com o almoço que partilhavam.
A coisa é assim há mais de quinze anos.
Até que um dia, uma quinta-feira de manha, estava eu na garagem do banco entretido a ler a bola quando desceu o Senhor Gonçalves responsável pela logística e chefe da manutenção, por isso meu chefe. Vinha de cenho fechado e sem dizer bom dia perguntou logo de mau humor:
Não tem nada para fazer? A manutenção deste edifício está em pausa?
-- Senhor Gonçalves, estou a espera que cheguem as tomadas para ir substituir la em cima na administração... devem estar ai a chegar.
Respondi modesto mas rápido, afinal de contas, trabalhava na manutenção há tempo suficiente para ter sempre umas cuecas de aço vestidas quando o chefe chega de mau humor...
-- Olhe homem, vá mazé lá a baixo à subcave onde temos o arquivo-morto e veja la o que se passa com a luz, porque já se mudou a lâmpada e não é da lâmpada...
O arquivo morto estava sem luz há três semanas. Tínhamos ficado e substituir toda a infraestrutura elétrica no próximo mês de agosto. O cabrão do Gonçalves sabia isso muito bem... Mas chefe é chefe, dobrei o jornal e fui.
Desci pelas escadas para fazer tempo e com a lanterna grande na mão. Agora é que lhes deu a pressa!!! Abri a porta com um encontrão, zangado de estarem a inventar coisas para me mandarem trabalhar. Foi então que as vi.
No canto entre prateleiras cheias de dossiers. Estavam as duas despidas da cintura para cima. Abraçadas, uma com a mão direita debaixo da saia da amiga que tinha as cuecas junto aos sapatos de médio salto. A outra com os cabelos soltos e a cabeça deitada para trás.
Ficaram tão chocadas quanto eu. Ou melhor ficaram mais chocadas que eu...alem de chocadas, encadeadas pela luz da lanterna e gelaram pela travagem brusca na auto-estrada amor que seguia em excesso de velocidade.
Sai tão depressa como entrei.
Fui chamar o elevador que se chama monta-cargas porque é maior e menos limpo. O monta cargas demorou o tempo suficiente para que elas chegasse ao pé de mim.
--Não vi nada. E têm a minha palavra que vou guardar o segredo do que não vi.
Guardei. Não falei disto a ninguém. Entre nós os três cimentou-se uma profunda amizade e respeito mutuo.
Ficamos amigos até eu me reformar do banco.
Mas brincadeiras à parte, digo-vos uma coisa: eu sabia sempre que o sporting jogava fora pelo despertar do leve sorriso de satisfação nos rostos sério e contidos das duas amigas.
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