terça-feira, 30 de abril de 2019
Elogio da Mentira
O ELOGIO DA MENTIRA
O Pedro e o Miguel eram amigos. Mas amigos a sério. Do peito. Amigos de copos e da vida. Viviam ambos no Barreiro e noite sim, noite sim saiam para viver e desfrutar ter vinte e tal anos.
Não me lembro, nem isso interessa para a história qual deles conheceu a Cintia primeiro. Nem qual deles a primeiro levou para a cama. A Cintia era uma morena trintona, baixinha com o rabo e as mamas de um tamanho acima do resto do corpo, uma boca carnuda que dava vontade de dar dentadas e um nariz entre o arrebitado e o abatatado.
O certo é que ambos os amigos se envolveram com a Cintia. E era bom para os três. O Miguel e o Pedro, amigos e confidentes depressa articularam um sistema de escala e de encontros e substituicoes. De sinais e rituais, que ambos conheciam e que a Cintia ignorava.
A Cintia enganava os dois. E os dois enganavam a Cintia.
Havia muitas coisas que a Cintia desconhecia sobre a amizade. Havia muitas coisas que a Cintia ignorava, porque de génio, não tinha nada, a não ser o mau. O mau génio, entenda-se. Mas como dizia o Miguel, quando estavam juntos não lhe pedia ajuda para fazer exercícios de matemática. Nem para falar dos efeitos da perestroika na economia russa, acrescentava o Pedro.
A Cintia, ria e sorria feliz porque acreditava que encornava os dois amigos. Cerrava os olhos empurrava as maminhas generosas para cima e punha a lingua de fora mordida entre os dentes brancos. Os dois amigos, felizes na partilha dos prazeres da vida, que é a melhor forma de celebrar uma amizade.
Claro que tinham regras e formas. Porque a boca da Cindia era carnuda com uma lingua que se metia onde nao era chamada, as vezes em lugares impróprios, estabeleceram ambos como habito permanente de higiene oral dar-lhe de beber ( o ideal seria faze-la bochechar) quantidades navegaveis de vodka. Eram os tempos em que a absolut entrou no mercado das bebidas e arrazou com as outras marcas.
Encontravam se, as vezes os três, um deles partia e o outro pedia vodka ao balcão. Com gelo e mais nada. A Cintia sorria e beberricava molhando a ponta da lingua na bebida transparente e minutos depois a magia acontecia.
A relação dos tres foi seguindo os animados dias e intensas noites daqueles anos noventa, com encontros nos bancos de trás do carro de Miguel, num armazém do qual o Pedro tinha a chave, na praia de Alburrica, no jardim dos franceses e às vezes numa pensão que funcionava por cima do café barreiro.
Um dia, os dois amigos, amantes da Cintia e da liberdade, conscientes que só a verdade é revolucionária, decidiram deixar as hipocrisias e terem os três uma conversa franca.
Foi feio. A Cintia sentiu-se enganada e nesse momento mostrou aos dois que de facto tinha uma lingua mesmo porca. Aos dois, mais à empregada do bar, aos clientes no balcão e nas mesas, aos vizinhos de cima, dos lados e a metade do Barreiro, porque os gritos se ouviram desde as fabricas da ufa até à baía do seixal. A coisa sujou...
Tristes pela perda de um tão confortavel amor, os dois amigos beberam os vodkas de um trago e a partir desse dia, as ousadias da Cintia passaram à doce qualidade das recordações.
Conto-vos esta história para fazer a defesa da mentira. Apesar da mentira ser uma senhora de pernas ligeiramente curtas e que depressa é alcançada por esse corredor chamado tempo, há vezes em que as formas arredondadas da mentira são preferiveis aos angulos abrutos e secos da verdade.
O Pedro e o Miguel que o digam.
Ou o Silvestre, que é o gerente de um banco e só agora entra na história porque se casou com Cintia já tarde... e que vive feliz com o passado que a lingua da Cintia não contou.
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