quinta-feira, 2 de maio de 2019

Maria contra a coroa

Num verão remoto, passando pela Catalunha, mais uma vez fiquei na casa de amigos que a seguir a nossa casa é o melhor sitio para ficar. Nesses dias convivi com um casal de velhos que hoje fossem vivos seriam centenários... Gente humilde mas informada, catalães de raízes profundas, oriundos das montanhas, atentos à realidade portuguesa e sempre prontos para aprender e discutir “o caso português” desde a revolução dos cravos à independência de Castela. Eram os avós do meu anfitrião, que viviam numa perdida aldeia junto aos Pirenéus catalães, mas que por feliz acaso, estavam naqueles dias a passar uma temporada em casa do filho. Parece que o outro filho, tio do meu amigo, estava a mudar-lhes o telhado da casa la na aldeia e por isso tinham “descido” até à cidade. Convergimos, nessas semanas de veraneio todos naquele prédio. Um edifico dos anos trinta, sem elevador, entalado entre outros edifícios idênticos, num daqueles bairros periféricos de Barcelona com um nome em catalão simultaneamente familiar e impronunciável. Tres pisos e um andar por piso. Tectos altos, janelas em madeira e escada apertadas com degraus daqueles que fazem levantar a perna para subir. Para alem dos meus amigos, que moravam no segundo andar e dos pais que moravam no primeiro, no terceiro piso, vivia mais ou menos uma pequena comunidade de gente jovem. Era um grupo de anarquistas mais ou menos radicais, que enchiam de bicicletas as escadas do prédio. Editavam revistas alternativas e tinha uma associação de partilha de livros. Mal se abria a porta do prédio, cá em baixo, já cheirava a erva... Mas apesar disso, era malta porreira, asseadinha, prestável. E como naquele prédio, era tudo gente educada e tolerante, todos se relacionavam com aquela a gentileza fria necessária para manter a boa vizinhança e respeitar a privacidade uns dos outros. A questão das bicicletas, apesar das escadas serem apertadas, não era um problema porque estávamos todos os residentes autorizados a usar. Coisa que confesso, cheguei a fazer algumas vezes. Já o perfume da erva, todos faziam por ignorar. Todos menos os velhotes que na sua ingenuidade camponesa, dois ou três dias depois de chegarem, perguntaram logo: que cheiro e este ? E de onde vem?.. Com a simplicidade das coisas simples, e porque é uma senhora inteligente, a nora, mãe do meu anfitrião encaminhou o casal para a porta de onde saía o cheiro, bateu e explicou ao vizinho de cima: – Os meus sogros perguntam que perfume é este, eu disse que era canabis...mas acho que os vizinhos, melhor que ninguém podem explicar o que é e para que serve essa planta! Apanhados desprevenidos, mas sempre gentis, convidaram os velhotes, “já agora o português” e o resto do prédio para um chá depois de jantar, onde explicariam o que era o canabis e o para que servia. Assim foi. À hora combinada, lá ficamos sentadinhos a ouvir uma erudita explicação com dados científicos e fotografias e a dizerem que a erva maria é uma coisa muito boa, que faz bem à asma, ao glaucoma e às enxaqueca. Mostraram-nos um daqueles vídeos a fazer a apologia da erva. Arranjaram exemplos históricos. Serviram bolachinhas. E mostraram-nos fotocopias de reportagens de revistas. Mostraram mais papeis, mais vídeos no computador e mais fotografias. Falaram nos benefícios. Depois falaram na repressão. Na repressão politica e policial. Falaram nos americanos a proibirem o cânhamo para protegerem as industrias do álcool e da celulose. Na repressão que os estado espanhol faz em Ceuta. Na dureza da vida dos camponeses em Marrocos. Em como a histeria da luta contra a droga serveíu para justificar mais e mais polícias...Explicaram a injustiça da proibição e a possibilidade de poderem serem presos só porque a planta cresce no vaso la em casa. Os velhotes ouviram calados com muita atenção. Estariam ambos na casa dos 80. Ele, militante do POUS, veterano da guerra civil, participou na Batalha do Ebro, ex-preso politico e troskista. Ela, comunista, militante do PCC, veterana da frente aragonesa, também ela prisioneira politica, anti-clerical e completamente estalinista. Acabado o discurso da apologia da erva, a velhinha, disciplinada e rija pediu a palavra: Todos sorrimos pela seriedade do pedido. -- Só quero dizer uma coisa: sou uma camponesa humilde, não tenho instrução, não conheço as orientações do meu partido sobre este tema, mas uma coisa assumo desde já: se a Coroa e os fachos em Madrid proíbem a coisa, eu sou a favor!!! O marido, menos disciplinado e que em matéria revolucionária não gostava de ficar atrás da mulher, interrompeu imediatamente: -- Em relação a essa matéria, eu, que não devo obediência a Moscovo, não só sou a favor, como se os camaradas estiverem de acordo, pretendo já acender um desses cigarros!! Rimos todos. Especialmente o velhote, que foi o ultimo a deixar de rir e por isso riu melhor!

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