domingo, 12 de janeiro de 2020

Memórias branqueadas

O Chico nasceu andaluz em 1853, perto de Cadiz, filho de um empreendedor genovês e de uma senhora espanhola. Com dezassete anos, um tio direito irmão da mãe, faz-lhe um convite irrecusável e o Chiquinho foi para São Tomé ajudar a explorar uma roça de cacau.O termo explorar adapta-se bem ao de facto acontecia. Chamava-se Santa Margarida esta primeira roça que teve com o tio. Depois associou-se ao outros empreendedores locais noutras duas: a Roça Monte Macaco e a Roça Mainço. Mais tarde, já sem sócios, que isto de meias é bom é para os pés, fundou a Roça da Esperança e a Roça Infante Dom Henrique. O tempo foi passando entre tanto e tão esforçado trabalho que quando o Chico deu por si já estava quase nos trinta e cinco anos e ainda não tinha esposa nem descendência. Porque era um rapaz bem educado nos valores da família e porque tinha uma boa visão para o negocio, casou-se com a prima direita, filha do tio que o iniciaria no nobre negocio do cacau. Desta abençoada e católica união nasceram pelo menos treze crianças. Das suas escravas e empregadas terão nascido outras tantas mas dessas crianças a história não tem registos.  Com quarenta e picos foi convidado pelo Banco Nacional Ultramarino para gerir a grande roça Água-Izé. O empreendedorismo agricula do Francisco não cabia no pequeno arquipélago de São Tomé... por isso o empresário alargou o seu engenho de iniciativa para outros lugares: em Angola criou a Companhia de Cabinda e a Companhia do Cazengo, em Moçambique criou os Prazos de Lugela e fundou a Companhia de Timor. Quando chegou aos sessenta, farto de Áfricas, decidiu vir viver para Lisboa que é um sitio bom para se viver com o dinheiro. Por volta de 1915, criou uma holding a que chamou companhia comercial que continuou a multiplicar a sua fortuna no conforto do seu gabinete metropolitano. Quando chegou, ainda comprou uma casita ali para a Lapa, mas como a Lapa era um sitio demasiado apertado para o Dom Francisco viver, decidiu-se por comprar umas quintas  afastado do centro, no Lumiar. Fez as obras necessárias  à altura do seu empreendedorismo. Construiu um lago artificial com duas ilhas no meio, em homenagem à Ilha de São Tomé e à Ilha do Príncipe e importou árvores tropicais para florestar os extensos jardins. Nos anos dourados da reforma, com outros senhores importantes fundou a sociedade portuguesa de geografia e financiou orfanatos. A sua opulenta quinta, às portas de Lisboa, era local de referencia e deferência nos primeiros vinte e cinco anos do século XX. Os vastos jardins, as obras de arte que comprava, as festas a que apenas os mais altos destinatários tinham acesso, tudo contribuiu para fazer crescer a fama do homem, do palácio e dos jardins. Mas uma pessoa nunca sabe quando está bem... Pois foi então que uma das suas empregadas, uma daquelas moças que tinha trazido de São Tomé a quem não pagava salário mas dava alojamento e comida,uma dessas desvalidas que lhe devia a própria vida, uma das suas negras da casa, teve a ousadia de emprenhar do Dom Francisco... Ainda por cima, só se deu pela coisa já em cima do momento do parto...não havia nada mais a fazer do que deixa-la parir. À esposa, caiu-lhe mal a maldade de negra de se engravidar assim do seu marido. O D. Francisco, mandou de volta a negra para são Tomé, dois dias depois de parir, seguiu no primeiro navio... no entanto, a sua prima e ditosa esposa, não deixou seguir a criança, quis ficar com a menina para a criar lá em casa. Assim foi. Mas o gene da desgraça, já estava plantado. Acontece que acriança estava fadada para dar problemas e se os problemas começaram ainda antes dela nascer, parece que nem a morte estancou o rio das lágrimas. Seja por causas genéticas, seja pelo ambiente em que vivia afastada da mãe com um pai que tinha idade para ser avô e agia como dono, a menina começou desenvolver algumas patologias de comportamento. Ora o Senhor Chico, não esteve com meias de medidas, homem de aço, empreendedor, e habituado a "educar africanos", decidiu construir uma jaula onde metia a criança sempre que as crises de choro e gritos aconteciam. E aconteciam muito. Com a adolescência a coisa piorou e a menina passou a viver sempre enjaulada. O Senhor Francisco não dava autorização que a menina saísse da jaula. Um problema. Um problema grave que durou até à morte do D. Francisco em 1928. Após a morte do D.Francisco, a família reunida em concelho de administração decidiu afastar a bastarda para um clínica de alienados onde acabou por se suicidar. A esposa amada e prima do D. Francisco, mudou-se ela também para o centro de Lisboa onde viveu até morrer. A quinta foi ficando vazia. Os jardins mais ou menos descuidados. Os vizinhos diziam que ouviam vozes e gritos. Diziam que aconteciam coisas inexplicáveis nos edifícios e nos jardins. A Tobis, A Tobis - Tonbild-Syndikat– companhia de propaganda e lavagem de dinheiro nazi- chegou a instalar no jardim, um estúdio onde foi feito o filme A Canção de Lisboa. Mas depressa deixaram de o utilizar o estúdio, porque as coisas lá nunca corriam bem. No Lumiar todos diziam que a quinta estava assombrada. A prima e esposa do D. Francisco, fecha os olhos já nos anos cinquenta. Os herdeiros do D. Francisco, pessoas de princípios e bem instalados na vida, não gostavam dos murmúrios sobre assombrações e sobre a memória esclavagista de tão ilustre pai e avô. Alguns dos herdeiros, ligados à alta-finança, outros ligados ao governo do Dr. Salazar. Todos eles portugueses, brancos, católicos e ricos. Num dos encontros que  ocasionalmente tinham, em Cascais, decidiram desfazer-se da Quita e enterrar definitivamente o passado. Falaram com quem tinham que falar e por volta de 1966, a câmara de Lisboa comprou-lhes a quinta. Não há registo de valor em dinheiro na escritura de transferência da propriedade, mas três anos depois a autarquia atribuiu a uma rua, o nome do empreendedor que levou o desenvolvimento para São Tomé. O Jardim da Quinta das Conchas e dos Lilases foi "reinaugurado" ao público a 12 de Maio de 2005, sob a tutela do presidente da edilidade lisboeta à data, Pedro Santana Lopes. Estas obras de qualificação receberam o Prémio Valmor e Municipal de Arquitectura em 2005. Para os mais sensíveis às energias de vivos e mortos, a quinta e os jardins continuam assombrados pela mulatita bastarda enlouquecida de dor da partida da mãe e enjaulada pelo pai. Para mim, a memória branqueada do colonialismo escravocrata é já em si mesma assombração que chegue.

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