quinta-feira, 11 de junho de 2020

O Homem da Cortiça

Encontrei o Homem da Cortiça em pleno montado. Foi o filho que me levou.

Fui depois de almoço. O homem tem cara séria e rosto curtido. A expressão de quem já passou por tudo e já viu tudo o que tinha que ver. Ao fim da tarde vim a conheço melhor, acho-o assim, duro por fora , macio por dentro, como a cortiça que tem desenhada na linha da vida. Setenta anos feitos e vividos quase sempre no Alentejo.

Conheci três Alentejos, diz o homem, o Alentejo da miséria dos latifúndios, o Alentejo das cooperativas e o Alentejo vazio de gente e cheio de javalis. Agora um homem pode passar uma semana a andar por esses montados e não vê ninguém. Javalis, raposas, texugos e mochos a habitar as ruínas. Mas não vê ninguém.

Fomos falando. Sobre cortiça e rolhas. Da verdade absoluta de dê o mundo as voltas que der, enquanto se beber vinho, vão haver operários corticeiros porque não se conseguem rolhar garrafas diretamente nos sobreiros.

Ao lado um camião onde foi preciso por dez toneladas de cortiça. O filho do homem, foi quem neste dia feriado, foi na qualidade de empresário negociar o valor daquela cortiça com o proprietário da herdade. Comprou de manhã e era preciso carregar à tarde.

O homem, continua a acompanhar o negócio, mas está mais retirado. O tempo deu-lhe memórias que é seu dever partilhar. O filho tratou de carregar o camião. O homem teve o trabalho de me contar como foi. Como foi o caminho que fez de rapazinho pelos montados do Alentejo até chegar ali. Contou-me da guerra colonial em Angola e da escola para quadros em Cuba. Contou-me das árvores do Uíge e dos dois sobreiros que plantou em Havana.

E contou-me a retorcida história que fez dele um dos últimos moicanos dos industriais corticeiros. Contou-me como depois do vinte e cinco de abril, com outros operários corticeiros e agrícolas fundou a cooperativa corticeira. Contou-me como foi haver direito a férias e a subsídios pela primeira vez. Como foi ter direito a baixa por doença. Contou-me como foi negociar em nome da cooperativa o preço da cortiça com os grandes proprietários rurais. Falou-me do respeito que a cooperativa ganhou de alguns que diziam: “eu prefiro vender aos comunistas da cooperativa que são de contas certas” . Contou-me como outros fugiram para o Brasil e deixaram buracos financeiros em dívidas aos fornecedores. Contou-me de como era quando havia corticeiras. Trezentas ou quatrocentas fábricas de cortiça por todo este sul. Do Montijo a Silves do Barreiro a Vila Real de Santo-António.

E contou-me da voragem do predador que foi chegando e de como com dentes afiados devorou tudo. Quase tudo. Do grupo que põe e dispõe preços porque detém mais de 98% da indústria corticeira em Portugal, um país onde a constituição diz que não são permitidos monopólios e nenhuma empresa pode ter mais do que uma cota de 49% do mercado.

Enquanto o homem falava, ao nosso lado outros homens atiram a cortiça em malabarismo para cima da pilha que subia nas costas do camião. Entre os carregadores, a atirar cortiça para cima do camião, o seu filho, seu orgulho e seu tesouro.

O homem falou-me do braço de ferro desigual entre grandes e imensos proprietários rurais de como algumas famílias detentoras de meio mundo se endividaram aos bancos que executaram as hipotecas das herdades para entregar a outras famílias já eram donas de mundo e meio.

Contou-me que quando acabou a cooperativa que ajudou a fundar, estava com quarenta anos e não sabia fazer mais nada além de negociar, comprar, arrancar, empilhar, carregar, descarregar, cozer, tratar e cortar cortiça. O homem explicou-me como foi empurrado para a aventura de ser patrão. Como aquilo lhe foi acontecer logo a ele que sempre lutara por um mundo sem patrões nem empregados.

O homem contou-me de como foi continuar a negociar e comprar cortiça não para a cooperativa mas para ele. Da luta que é hoje exigir que as pessoas que trabalham com ele sejam sindicalizadas e desta contradição tremenda de ser patrão e ter de politizar os trabalhadores!

Enquanto o homem falava, o camião a aumentar de volume com a cortiça que voava e era arrumada em tetris lá nas alturas. E o homem a mostrar-me como se carrega o camião. A falar-me com afeto daquela camião. Um carro que chegou a ser da cooperativa e que ficou com um credor e que ele conseguiu comprar e recuperar, uma máquina com 40 anos que transporta dez toneladas sem sobressaltos.

O homem explicou-me quanto ganham os carregadores. Lamentou-se que não são trabalhadores da corticeira. No tempo da cooperativa, os carregadores eram da corticeira e ganhavam todos o mesmo com salários estabelecidos pelo sindicato. Agora são todos de empresas independentes, empresas que se criam sazonalmente para andar pelos montados a carregar camiões de cortiça. Trabalham de junho a setembro. Ganham entre 160 e 220 euros por dia. O filho do homem, sem parar de trabalhar, de vez em quando ria-se para mim e para o pai, estava a trabalhar tanto como os outros mas não ia ser pago por isso.

Então porque é que está a carregar? Para ajudar a despachar e ele não tem feitio para estar quieto. Trabalha desde os dezasseis anos disse o pai, sem esconder o justificado prazer em contemplar o moço que fazia pontaria com as pranchas de cortiça para cima do carro.

Achas muito os duzentos e vinte euros? Então vê lá o trabalho destes homens. Olha lá para eles. Hoje nem está muito calor. Estão com sorte! Agora imagina isto com temperaturas que rondam os 40 graus, empoleirados nas pilhas de cortiça.

Nós a falar e os homens sem parar, à volta do camião que vai enchendo em altura.

Todos os anos há acidentes. Agente avisa que precisam de ter seguro. Mas a maioria é malta que está ilegal e acha que está a ser muito bem paga!!! É verdade que chegam a ganhar seis mil euros pr mês... sem feriados sem folgas... no pico do verão e trabalho feito ao calor...e depois no inverno? Alguns poucos, com mais juízo, orientam as coisas e no inverno têm um pé de meia que dá para se irem vivendo. Outros, gastam tudo em bebedeiras e raparigas. Sabes que, atrás desta malta vêm sempre uma industria paralela de chulos e moças a fazem vida do que eles ganham... Mas vái lá tu falar-lhes em sindicalizarem-se... até se riem, não me mandam à merda que eu sou velho e eles têm-me respeito!

Equipe multi-étnica entre africanos e sul americanos fala pouco enquanto trabalha. Mas trabalha muito e depressa. Quer despachar a carga. Ganham à carga, 55 euros cada carga. Chegam a fazer três e às vezes no pino do verão, em época alta quatro cargas por dia. Um camião demora entre três a cinco horas a carregar. Realmente duzentos e vinte euros por trabalhar vinte horas por dia em pleno verão no Alentejo, não é bem pago...

O filho do homem a ouvir-nos sem parar de trabalhar.

Depois o homem contou-me de como ali, no Alentejo Litoral, as herdades gigantes que resultaram da concentração e anexação de outras grandes herdades. Como nos últimos quinze anos, vinte anos os grupos bancários, donos associados destas super herdades, assumiram os interesses no imobiliário. E de como se fizeram campanhas autárquicas milionárias com aviões a sobrevoar terras de gente pobre a prometer mundos e fundos. De como empregados dos bancos vieram durante quatro, oito, doze anos serem presidentes das câmaras para cozinharem as leis que permitem aos ricos comprar casas nas dunas e que obrigam os pobres à resignação de morar em armazéns convertidos em dormitórios coletivos... De como se foram embora e voltaram para os conselhos de administração dos bancos deixando as autarquias falidas.

Não me contou mas percebi-lhe a angústia que todo este desmoronar de uma região lhe causava.

O camião estava finalmente carregado. Dez toneladas. Ao lado ainda ficou outro tanto.

O filho a coordenar a operação colectiva de prender a carga. Uma ciência de precisão onde não pode haver erros. Física presa com cabos de aço que determina a segurança de quem vai na estrada.

O filho seguiu no jipe. Nós entramos juntos no camião.Afinal é ele o empresário, riu-se o pai!

O empresário como o pai lhe chamou, foi à fábrica buscar um saco cama e dois rafeiros alentejanos deste tamanho e de boca grande para irem dormir com ele no montado ao lado da cortiça que ainda lá ficou. Foi lá passar a noite porque o Alentejo esvaziado de gentes tem ladrões por todo o lado. E a cortiça que ali está, já está paga, cortada e pronta a carregar.

Eu e o homem seguimos juntos por uma estrada vazia. Fomos pesar a carga a uma balança para camiões. O contabilista criou a guia no computador e mandou a referência por sms.

Já cúmplices, deixamos de falar de política para passarmos a falar de amor.

Contou-me de como o partido e a cooperativa lhe roubou tempo que era da família. Tempo para amar a mulher e os filhos como eles mereciam. De como os anos e anos de reuniões e lutas lhe ficou com muitas horas do mais precioso que a vida lhe deu que são as pessoas que ama. Não lamenta o tempo perdido, mas diz que se fosse hoje tinha feito diferente, tinha feito outras escolhas... não são outras escolhas políticas!!! não me interpretes mal! --- como se fosse possível interpretá-lo mal – Mas sério que tinha feito por passado mais tempo com os meus...Tinha feito diferente.

Por cima e atrás estavam dez toneladas de cortiça a testemunharem o momento.

Como se fosse lhe possível ter feito diferente....



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