domingo, 29 de novembro de 2020

A Democracia Religiosa de Duas Aldeias

O caso que vou vou contar, aconteceu há meia dúzia de anos, naquele Alentejo tapado com olival intensivo por cima e recheado com minério por baixo da terra . Foi em Duas Aldeias e os ecos do sucedido soaram como uma trovoada em toda a planície.

O João nasceu grande, cresceu robusto e fez-se mineiro. Foi nascer a Beja, mas sempre viveu em Duas Aldeias.

Na fabrica debaixo do chão onde trabalha e na vida que leva tem duas referencias que são dois escudos protetores: o Sindicato e a Senhora da Graça. O sindicato protege-o dos abusos dos encarregados, engenheiros e outros merdas que mandam. A Senhora da Graça protege-o das coisas más que não se veem, como dos desabamentos, das bolsas de gás e dos outros azares.

Desde os dezoito anos, no final dos anos oitenta, princípios do noventa, que o João é  Festeiro. Teve dois anos sem ser, quando lhe aconteceu estar casado.

Na Festa da Senhora da Graça, em Duas Aldeias os mancebos (que na verdade não chegam à dúzia) esquecem as rivalidades entre Aldeia de Baixo e Aldeia de Cima. Juntos, organizam uma comissão de festas em honra da Senhora da Graça. Chamam-se a si mesmo Festeiros. Compram, roubam ou pedem oferecidos uns borregos, às vezes um novilho, patos e galinhas e fazem a festa anual. É assim desde que há memória.

O dia da nossa senhora da Graça é a 27 de Novembro e a festa é celebrada nessa data. Uma festa de inverno com fogueira acesas e vinho novo nos copos. A festa começa numa procissão que sai da capela que fica no Largo da Aldeia de Baixo, sobe a Rua Grande até à Aldeia de Cima, dá a volta , passa à porta do cemitério, desce Pela Rua de Trás até à capela de onde saiu. Mesmo andando devagar ao passo de procissão, com os pesados andores às costas e sapatos finos de casamento a torturarem os pés habituados a botas grossas, em meia hora está acabada a procissão. A celebração religiosa, termina quando Senhora da Graça, a cavalo no andor, volta à capela onde fica um ano à espera que mancebos casadouros lhe façam outra festa no ano seguinte.

A Festa da Senhora da Graça é um momento alto da vida comunitário que serve para comer, beber, dançar, celebrar e lutar. Depois de acabada a procissão, os Festeiros, vão para o largo que entretanto já está coberto com umas lonas e umas chapas e é ali no telheiro improvisado, que toda a aldeia partilha uma refeição coletiva. É ocasião para impressionar potenciais noivas, familiares, rivais. Depois do almoço há o balho. O acordéon toca modas, dão-se uns passos de dança e acertam-se namoros. Como no final de Novembro fica de noite cedo, as moças e as famílias voltam para casa ao final da tarde. Ficam só os rapazes embriagados de carne e vinho. Dissolvem as tréguas que acalmaram as rivalidades entre a Aldeia de Baixo e Aldeia de Cima, e normalmente, salvo raras exceções recordadas em décadas como coisa funesta, o balho acaba em valente sessão de pancadaria coletiva. Os solteiros das duas aldeias passam depois os meses de inverno a recordar a épica batalha. Repetidamente, recordam os feitos de bravura executados na Festa da Senhora da Graça. Seja bravura de adversários derrubados à punhada, seja de pratos  devorados, seja dos rios de vinho bebidos. Sempre foi assim desde os tempos mais remotos.

A tradição ditava que os Festeiros sejam os rapazes solteiros das Duas Aldeias. Um antropologo que lá esteve a fazer um trabalho de campo, escreveu um artigo sobre rituais de iniciação, celebrações pagãs trasvestidas e catolicismo e tradição arcaica. Talvez sejam. Em Duas Aldeias não leram o trabalho do homem, nem precisam que lhes ensinem a fazer o que é deles.

Sabe-se que moças e moços pedem à Senhora da Graça proteção nas minas, casamentos e amores de sucesso, sorte e saúde. E diz quem acredita, que a Senhora dá a Sua Graça às vezes colabora. É esta a tradição.

Os tempos mudam e as tradições mudam com os tempos. Os casamentos de hoje já não duram toda uma vida, tal como os frigoríficos de antigamente. E estaremos todos de acordo, que ainda bem que é assim, porque há amores infelizes. As separações acontecem porque os casamentos não têm de ser uma condenação perpétua. Um moço solteiro que hoje é Festeiro em Duas Aldeias, no próximo ano está casado, depois descasa, porque é que não havia de voltar a ser Festeiro outra vez??!?!?! Ou uma rapariga que se separa por o marido ser bêbado, bruto, cavalgadura e porco, ou simplesmente porque já não gosta dele, porque razão, depois de novamente disponível para o amor, havia de estar privada de participar no balho da Senhora da Graça?!?!?

A Senhora da Graça é gente boa e não quer cá saber de burocracias, nem de papeis. Nem é entidade de se ficar, sujeita e submetida ao preconceito. Senhora de gente humilde e trabalhadora, podem os padres chamar-lhe santa e dar-lhe uma família entre o deus deles... mas é Santa do Povo e é ao povo que pertence. 

Devoto da Senhora da Graça, O João, no seu metro e noventa e mais de cento e trinta quilos de músculos desenvolvidos no ginásio da mina, sempre foi um dos mais destacados Festeiros. Celebra a Senhora da Graça na medalha de ouro que traz sempre ao pescoço, na força e devoção com que carrega o andor, na capacidade de virar discos de ensopado e na quase sobrenatural capacidade de beber vinho. Depois no balho, também celebra e homenageia a Senhora da Graça, a dançar e quase sempre a andar à porrada.

Por volta de dois mil e dez, para lhe agradar, a Senhora da Graça mandou para o João uma namorada tão linda como ele pediu. Chegou-lhe pela internet. Passou meses a falar com ela pela câmara do computador. Depois de ver a namorada de todos os ângulos, ainda ficou mais devoto da Senhora da Graça. Virgem nos doces amores com sotaque tropical, ficou deslumbrado por tudo o que viu no ecrã. Casou-se por correspondência depois de uma batalha burocrática de papeis, declarações e vistos. A espera demorou uns seis meses. 

Finalmente foi busca-la ao aeroporto a Lisboa. Veio em finais de Janeiro. A moça, Jessineide de batismo, Jéssi para o mundo, chegou quase tão linda como as fotografias. Vinda directamente do mais remoto e afastado interior de Minas para viver a beira de uma mina no Alentejo profundo. Depois de uma viagem de uma semana de autocarro que amargou até chegar a São Paulo, depois de doze horas de espera no aeroporto em filas e controlos alfandegários entrou no avião da tap. Mais oito horas de atlântico num batismo de voo sobre as àguas salgadas, a Jéssi chegou à portela mais morta que viva. A ultima coisa que queria era concretizar o casamento. O João achou-a linda. Saíram de lisboa os dois nervosos e ansiosos. A segunda circular, o eixo-norte sul e a ponte. O Tejo lá em baixo e o Alentejo a começar ali a seguir ao Fórum Almada. Ele a suar das mãos pela presença dela, ela deslumbrada com os carros, os prédios, as luzes e as pessoas de uma Europa que acontecia do lado de lá da janela do carro. até as cançoes do Chitãozinho e Xororó que ele pôs para ela, lhe soavam estranhas. Pararam no Íbis de Setúbal para descansar que a viagem ia ser grande, mais de cem quilómetros até à nossa casa disse ele. Para ela cem quilómetros não era a distancia, era vizinhança. A cidade onde tinha tratado da papelada ficava a duzentos quilómetros da casa onde vivia. Só? E você vai querer ficar no hotel?

Ficaram. E fizeram o que tinham a fazer. Depois fingiram os dois que dormiram e ficaram acordados deitados ao lado um do outro a imaginar um futuro que seria dos dois.

Imaginaram futuros diferentes, pois claro.

Ele continuou a trabalhar na mina.

Ela arranjou emprego no centro de dia.

Ele fazia horas na mina para lhe comprar coisas.

Ela comprava coisas para ficar bonita para ele e tirar fotografias para mandar para a família e os amigos em Minas.

O João gostava de descer a rua até a Aldeia de Baixo e mostrar a esposa. A Jéssi gostava de se por bonita, mais que não fosse para ir passear até à aldeia de baixo.

Viveram felizes uns meses.

Mas o ritmo dos amores é caprichoso.

Ele pediu-lhe para ela se vestir mais tapada porque uma senhora casada devia saber comportar-se.

Ela tirou-lhe a medalha da Senhora da Graça porque um pastor lhe tinha dito que imagens de santas são idolatria e coisas do tinhoso.

Ele queria que ela cozinhasse mais vezes.

Ela não queria que ele usasse o fato macaco da mina quando saíssem os dois à rua.

Ela não queria que ele fosse as reuniões no sindicato.

Ele não gostava que ela passasse tantas horas na internet.

Ele queria comprar um frigorifico, ela queria uma televisão. 

Ela queria mandar dinheiro para a família. Ele queria comprar um carro. 

Desentenderam-se.

Ele deu em beber. Ela arranjou outro. Dois invernos depois de a ter ido buscar a Jéssi a Lisboa, mudou-se a mulher para longe, para casa de uma prima no algarve onde começou a trabalhar num supermercado.

O João andou uns tempos esmorecido. Bêbado e sujo. Mas os amigos puxaram por ele. Levaram-no a bares de alterne onde bebeu oceanos de cerveja e alimentou a alma com beijos comprados. Levavam-no a esperas ao javali e a comer perdizes. Às vezes no fim do mês iam na carrinha do João a Badajoz beber, comer e amar e passavam semanas a comentar as façanhas.

Quando o verão chegou já o João trazia a medalha da Senhora da Graça ao pescoço e já era outra vez o  que sempre tinha sido. Voltou ao sindicato e à tasca onde petiscava sem se esticar nos copos.

Como seria de esperar, naquele ano, deram o nome dele para Festeiro da Senhora da Graça

Só que o padre (há sempre um “só que”), recém-chegado a Duas Aldeias, novo em idade mas velho e retrogrado em ideias, envenenado por fascismos e consumidor regular de teologias conservadoras, veio dizer aos rapazes que o João não podia ser Festeiro porque não era solteiro.. Que sendo divorciado aos olhos de deus não podia ser Festeiro.

A malta não aceitou. Em coletivo, na taberna que tinha nome de café central, tomaram a decisão:  ou João era Festeiro, ou então ninguém alinhava.

O padre, contrariado, mas pressionado pelo bispo para não levanta ondas, acedeu. Aquela  rapaziada toda, que via no João, já a fazer quarenta, uma espécie de padrinho na vida, sentiu no recuo do padre uma vitória. O João assumiu ainda mais a sua liderança pelas suas características naturais de tamanho, feitio festeiro e de profundo conhecedor de boates e casas de alterne, alem das suas capacidades como bebedor e lutador nato.

Os Festeiros organizaram-se e o João nesse ano esmerou-se. Comprou, pediu, organizou, reservou, encomendou e preparou-se uma festança tal que todos acreditavam que  este ano, a própria Senhora da Graça, havia de descer do andor para dar uns passos de dança nos compassos do forró que o João tinha introduzido como musica oficial da festa. Só novilhos foram três. Três novilhos. Três!!! Até já havia malta em Beja a pedir para ser convidada....

O mês de novembro foi todo ele passado nos preparativos.

Nas Duas Aldeias e arredores, todos comentavam a festa que se preparava.

Os jovens em espectativa. Os velhos com assombro, inveja e desdém. As beatas abanavam a cachola e benziam-se. O filha-da-puta do padre remoía uma estratégia para não se envolver naquela celebração que de católica tinha muito pouco.

No dia vinte-e-sete de novembro, não se sabe se por influencias das rezas do padre, das mezinhas das beatas ou porque é próprio do Outono, o dia amanheceu cinzento e a chuviscar.

Não foi preciso mais. O cabrao do padre, viu ali um pretexto para se livrar dos seus deveres que ia cumprir contrariado e disse logo que não havia procissão que estava a chover.

Os festeiros que se tinha reunido na noite anterior para desmanchar os novilhos, esfolar e temperar os borregos e ultimar os preparativos, quando o padre disse que não havia procissão, foram acordar o João que na cama ainda sonhava com os doces beijos da Jessi na sua boca a saber a vinho da véspera. Acordou de mau humor.

Disse logo

-- Ai nã faz?!?!? isso já se resolve..

Que podiam ter a certeza que ia haver procissão. Enfiou a roupa e foi direito à sacristia onde o padre satisfeito com a chuva se preparava para sair para Beja onde vivia.

O representante do deus dos católicos, arrogante, ainda o João ia na rua, começou logo a dizer que nem pensar que estava a chover que não ia haver procissão que o andar não podia ir à chuva.

O João, apesar da ressaca, apesar da perseguição pessoal do padre, apesar da alergia genética que fazia às batinas, tentou conciliar. Com argumentos racionais e na educação possível explicou que o andor era coberto com aquele toldo de veludo azul e que a Nossa Senhora não apanhava chuva nem se constipava. E que se o padre quisesse lhe empestava um chapéu de chuva...

O Padre, mal educado, fechou-lhe a porta da sacristia na cara. Não contente, por medo e arrogância deu volta na chave dentro da fechadora que soou ao João e toda aquela malta que estava ali a ver, como uma ofensa pessoal e grave.

Indignado com a falta de educação do eclesiástico, o João ficou uns segundos à espera. Ressacado com a chuva miudinha a molhar-me a camisa. Os outros festeiros a olharem para ele, na sua maioria miúdos com idades para serem seus filhos, à espera de verem o João a resolver. Todos esperavam que da sua parte viesse a solução para salvar a festa ameaçada pelo reacionário padre.

A perna reagiu primeiro e a frágil porta abriu-se como por milagre. Às vezes as soluções chegam assim... A chave foi a bota quarenta e cinco do João que entrou na sacristia. A seguir à perna, pela porta caída entrou o João. O padre, quando percebeu o que estava a acontecer, fugiu para se esconder atrás do altar.

Ainda disse em gritos esganiçados:

-- Ordeno-lhe que saia da casa de deus!

Depois não disse mais nada. De qualquer maneira, o João fez-lhe a vontade e saiu. Mas trouxe a Nossa Senhora da Graça aconchegada a ele, debaixo de um braço. O andor debaixo do outro. Antes de sair explicou ao senhor padre, na sua maneira rustica mas clara, mais por atos do que por palavras o seu conceito de democracia religiosa. Que a Senhora da Graça é do povo das Duas Aldeias e não é nenhum cabrão de um padre quem decide quando é que se faz ou deixa de ser feita a procissão.

A rapaziada entrou depois para ir buscar aqueles paus pintados de branco e o toldo de veludo azul que tapou a Senhora da Graça na procissão que se fez à chuva.

Quando a ambulância chegou, já a procissão ia a meio da rua. Foram as beatas que vigiavam e viram tudo pelas frinchas da janelas quem chamou os bombeiros. Exagero. Afinal foram só duas costelas partidas, um dente da frente que um pivot resolveu e um olho negro que passado uma semana já abria outra vez.

O bispo não deixou o padre apresentar queixa e mudou-o de terra.

Duas Aldeias teve uns anos sem padre. Mas a procissão fez-se sempre. Com o João a organizar os Festeiros.

O padre que veio agora, já velho em idade e por isso mais sábio, não levanta questões relativas à democracia religiosa de Duas Aldeias. Muito menos ao estado civil dos Festeiros. Inteligente e hábil manobrador fogões e tachos, preocupa-se com questões mais pragmáticas e tem no João um aliado e um companheiro. Este ano foi o padre quem fez um ensopadinho de javali que diz quem comeu estava de chegar ao céu!

Sem comentários:

Enviar um comentário