terça-feira, 30 de abril de 2019
A cor das hortas
À e tal as hortas são modernas e todos deviam ter uma. A pessoa ouviu isto e tal como viu na internet, decidiu reciclar garrafas pet e fazer uma horta vertical na varanda.
Muito giro. A pessoa gosta da ideia. A pessoa não gosta é da horta onde o vizinho do bairro de baixo cultiva legumes para acompanhar a pobreza. A pessoa, a essa horta, já acha mal.
A pessoa fica na sua varanda de três por um a achar mal. Fica a ver ao longe o vizinho do bairro de baixo a cultivar o milho e a mandioca, a cultivar os tomates, couves, alhos e cebolas. Vê às vezes senhoras com bebes às costas a bater com um pilão dentro de latas. A pessoa fica zangada com as mamas que saltam livres e cheias debaixo do pano de chita e fica ofendida com o sono tranquilo do bebe embalado pelo balanço do pilão. A pessoa não gosta de ver ao longe o vizinho do bairro de baixo fazer uma coelheira com o que foi um frigorífico estragado.
Há uma raiva a germinar que lhe substitui o tédio, enquanto a pessoa, acende mais um cigarro que não fuma até ao fim. A pessoa volta para dentro para fazer zapping e gostos da face enquanto estoicamente ignora os gritos das crianças que são suas.
Passam os dias cinzentos e iguais.
O vizinho do bairro de baixo rega e poda a horta que fez. Dobrado sobre si mesmo enquanto fala alto e gesticula para os outros cultivadores de hortas. Falam e gritam numa língua desconhecida onde a pessoa identifica palavras.
É então que a pessoa faz o mail para a junta e para a câmara a dizer que não é admissível. A inveja e o ódio crescem como os legumes da horta clandestina do vizinho.
Meses de tédio e raiva contida decorrem.
Ao final do dia, sentada ao volante, a pessoa pará na passadeira para deixar passar os vizinhos do bairro de baixo. Vêm das hortas com latas à cabeça vazias de tinta e cheias de legumes e frutas. Às vezes trazem galinhas a bater as asas penduradas pelas patas. A pessoa não quer saber que a horta é um terreno privado nem quer saber que o dono do terreno se desresponsabilize da limpeza do espaço que é feito pelo hortelão. Não quer saber de nada disso. É pessoa é obrigada a parar na passadeira.
A pessoa comprou uma casa ali e está a pagar ao banco, mais cara do que no bairro quinhentos metros a baixo porque lhe prometeram viver em sistema de condómino quase quase fechado. Todos os meses leva a facada do banco que mal se aguenta com a prestação da casa mais a do cartão de crédito…
A pessoa diariamente vê a família do vizinho do bairro de baixo, passar com um avio tirou da horta e que nem sequer pagou. A pessoa reclama do viver do vizinho do bairro de baixo e do rendimento mínimo. Reclama dos refugiados e dos transportes. Mais uma vez manda email para a junta, telefona para a câmara, e ameaça com a julia pinheiro. A pessoa indigna-se.
Os dias continuam a passar. A horta do vizinho de baixo cresce enquanto os coentros e a hortelã agonizam na garrafa na varanda três por um.
Domingo de manha, a pessoa foi fazer a caminhada e viu impressionada o vizinho do bairro de baixo a fazer xixi junto da vedação da horta que construiu. Na volta da caminhada estava a vizinha do bairro de baixo a esfolar um coelho sentada numa cadeira que alguém pôs no lixo. Um fogareiro aceso e uma panela grande em cima que liberta odores a óleo de palma e especiarias.
A pessoa chega da cansada, suada com uma raiva surda de viver no 5º esquerdo. Carrega no botão com força. Sobe no elevador com outra pessoa clonada de si e igualmente insegura do seu suor das duas horas de caminhada. A pessoa sorri forçada um bom dia e segue em silêncio olhando para o smarphone.
A pessoa queria ter uma moradia sem vizinhos e com um jardim onde pudesse ficar sentada a beber um colonial gin com colegas do escritório. A pessoa fecha os olhos do sonho da moradia e por instantes vê a imagem do vizinho do bairro de baixo a fazer xixi.
-- Porcos! Desabafa entre dentes.
-- O quê? Perguntou outra pessoa de vida igual à sua.
-- Estes porcos das hortas.
-- E a polícia não faz nada.
As duas pessoas clonadas entraram nos seus apartamentos iguais e fecharam as idênticas portas reforçadas à chave. A raiva e o ódio a envenenar os almoços nas semelhantes cozinhas ikea. Bacalhau com natas do restaurante que serve para fora. E sopa feita na bimby.
Na horta do vizinho do bairro de baixo o almoço foi servido à sombra do telheiro na mesa comprida feita com uma tabua que foi uma porta em cima de tijolos. Bebe-se cerveja fria tirada de um bidom com gelo. Para o almoço chegaram parentes e família. E mais amigos. E mais vizinhos do bairro de baixo. Há um radio que canta alimentado pela bateria de um carro. A festa torna-se me farra. No sofá que outra pessoa deixou há dois meses encostado ao contentor há um casal a namorar e uma senhora velhota sentada a abanar-se coma tampa de um tacho.
A pessoa depois de almoço queria dormir a sesta. A pessoa fica na cama deitada a ouvir ao longe as gargalhadas das mulheres e os gritos de alegria das crianças. A pessoa não consegue dormir. Tem azia da comida de plástico. A raiva cresce porque não é podada e azeda-lhe o estômago. E o ódio aumenta-lhe nas veias.
A pessoa levanta-se e vai directa para a varanda. Zás. As garrafas pet e a terra mais os vasos, mais as sementes de morangos, tudo para o lixo. Acende um cigarro que não fuma até ao fim e vai sentar-se ao computador para mandar mais um email para a junta, para a câmara e para a julia pinheiro a reclamar das hortas.
A pessoa procura à volta um escape para despejar o ódio inveja e raiva. Não encontra e zanga-se. Falta sempre qualquer coisa à pessoa. Se ao menos pudesse ir às compras para passar esta neura…
Enquanto isto, longe. Muito longe dali. Um proprietário ignora que os terrenos que comprou com esperança de se valorizarem produzem mandioca, tomate e ódio
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