domingo, 23 de fevereiro de 2020

Obrigado Zeca

Em Fevereiro de 1987, estava eu a duas semanas de fazer quinze anos. Ouvia cassetes de heavy metal que o Miguel AcDc me aconselhava. Gravava canções do programa de rádio que passava ao domingos à tarde do António Sérgio que se chamava Lança Chamas. Tinha deixado crescer o cabelo e   fazia o possível para sobreviver às hormonas, ao acne e aos problemas de roldanas que marcavam  aquela avassaladora adolescência em físico-química suburbana. Era estudante na escola dos Casquilhos, andava no oitava ano e não sabia que a vida era precisamente aquilo que estava prestes a acontecer-me.  Na manhã do dia 23 de Fevereiro quando chegamos a escola logo às oito da manhã percebemos que se passava alguma coisa de diferente. Vivia-se um ambiente estranho. Alguém disse que morreu o Zeca Afonso e que a escola estava de luto.  Eu sabia quem era o Zeca Afonso e associava as suas canções ao 25 de Abril. Nos intervalos os colegas mais velhos da associação de estudantes começaram a mobilizar para irmos todos ao funeral. Acho que foi o Nani  quem organizou a lista de quem queria ir. Só da escola onde eu andava foram uns três autocarro.   Entre os cento e cinquenta estudantes, também eu estava. Lembro nesse dia de um professor politizado me dizer que o Zeca Afonso não era comunista e que a sua obra era património de todos os democratas.  Na altura não o entendi e achei que me estava a tentar usar o cadáver do Zeca ainda morno para atacar o PCP.  Eu, que nessa manhã ainda não era comunista, não gostei da conversa nem da manobra. Não mandei o professor à merda mas tive vontade.  Às duas horas chegaram os autocarros que a câmara do Barreiro disponibilizou. O presidente na altura era o Hélder Madeira que eu só viria a conhecer vinte anos mais tarde,  mas que fiquei a ser admirador dele desde esse dia.  No caminho para Setúbal éramos adolescentes em excursão.  Íamos todos para um funeral, mas não deixamos de ser adolescentes. Todos juntos éramos a festa para onde quer que fossemos. Chegamos quase em cima da hora. Em Setúbal alguém nos disse que a governadora civil que era do PPD queria proibir o funeral. Claro que era mentira,  quis só impedir o velório na escola secundária.... De qualquer maneira aquelas três ou quatro camionetas de estudantes do Barreiro traziam os nervos à flor da pele.  Quando nos fundimos com a massa de gente que ia no cortejo sentimos todos que aqueles momentos que estávamos a viver seriam históricos. Momentos de grande emoção colectiva. Quando espontaneamente, aquela multidão cantou o Grândola acho que todos nos emocionamos. Quando o caixão do Zeca Afonso, coberto com uma bandeira vermelha, entrou no cemitério de Setúbal o dramatismo da cena marcaria todos os presentes. A emoção que se viveu naqueles momentos, ultrapassava a própria morte de um homem.  Era mais do que a morte de um cantor. Era mais que a morte de um artista. Aquele momento era o terminar de uma certa época. O fim de uma maneira de viver e fazer as coisas.  Era o ponto final de todo um processo.  Nessa tarde ouvi a um dos esquerdalhos presentes dizer: isto hoje aqui é o 25 de Novembro cultural. Ou outra senhora,  uma mulher simples de sotaque serrado a dizer : morreu o vinte cinco de Abrril! Eu tinha quatorze anos e tudo aquilo simultaneamente me marcou e me passou ao lado.  Afinal era uma excursão da escola com tudo o que envolvia uma excursão da escola..havia os beijinhos, as curtes, os abraços nos bancos de trás do autocarro, as mãos metidas das debaixo das roupas, os copos, os cigarros e as passas e as loucuras próprias de centenas de adolescentes juntos.  Lembro-me que chovia e que um dos colegas caiu dentro de uma campa aberta. Lembro-me da lama amarela do cemitério que sujou as minhas botas e as calças. Lembro-me que ficamos muito tempo dentro da camioneta a espera de alguns que ainda estavam perdidos. Lembro-me  ao que sabia a boca de uma colega que vim a beijar desde Azeitão até à chegada ao Barreiro, vinte quilómetros de beijo pela estrada velha. Não me lembro do nome nem da cara.  Lembro-me do sabor do beijo e da presidência com que empurrava para baixo a minha mão impedindo o desejado toque nas maminhas.  E lembro-me do Grândola.   Lembro-me daquela gente toda a cantar o Grândola. O Grândola entoado à entrada do cemitério de Setúbal fez-me sentir como se fizesse parte de alguma coisa. De uma coisa importante. De uma coisa muito maior que eu.  Uma coisa imensa em que a insignificância que eu era, por mais pequena que fosse, contava e fazia parte. Essa coisa grande de que fiz parte ali, à entrada  do cemitério  de Setúbal vai manter-se enquanto memória pessoal e confunde-se com a memória colectiva.  Obrigado Zeca Afonso. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A relíquia do ditador

O ditador, antes de ser ditador, também foi menino. Na escola primária, os colegas chamam-lhe “combinadinho”. Por ser magrinho e pequenino, justificava a mana Pilar. Por ser uma merdas que andava sempre a volta dos padres-professores a fazer combinações, recordavam os outros alunos. Miúdito introvertido e calado, de compreensão lenta e ligado a intrigas. No liceu, é pouco dado a leituras. Melancólico, deprimido e de aspecto vulgar, é assim que se lembram dele. Sempre pronto a denunciar, caluniar e disposto a tudo para agradar aos professores. Na carreira das armas que seguiu por vocação, só não foi o pior do seu curso porque compensava a inaptidão e a falta de inteligência com uma capacidade de graxa e de delação descomunal. Mesmo num sitio onde a graxa e a delação eram premiadas, como a escola de infantaria de Toledo, o carácter gelatinoso do Paco Franco perdurou na memória dos que com ele tiveram de conviver. Há registos escritos que contam como sofreu de bulling durante todo o tempo que ali esteve a aprender a ser soldado. Faltava-lhe a capacidade de liderança, a criatividade e a audácia. Os outros abusavam do rapaz que se vingava com denuncias e intrigas. É por esta altura, à volta dos vinte anos que se abraça definitivamente na fé em Cristo, nos santinhos e nos curas. Só a fé o podia salvar. É na fé que se vai afirmar. Um militar de fé em Cristo. A igreja católica acolheu-o no seu seio e fez dele o que na história ficou. Os registos e memórias dos nauseabundos fascistas que lhe estiveram próximos, contam que o ditador era um católico devoto e diariamente praticante. Alem da missa matinal e do terço ao cair da noite, tinha uma relação especial com Santa Teresa de Ávila. Muitos acreditava que o generalíssimo tinha uma missão sagrada e uma magia secreta que o faria triunfar sempre. Ele própria acreditava que sim, que estava protegido por Deus. Trazia sempre consigo, nada mais, nada menos que a mãozinha da Santa Teresa de Ávila. Dizia aos mais próximos, que aquela mãozinha da santa, foi quem o susteve e guiou em toda a campanha de vitória por Espanha e na cruzada contra o Comunismo. Aos mais íntimos, chegou mesmo a dizer que a mão da santa Teresa era seu o maior agente de protecção pessoal. Mais eficiente que a falange de assassinos armados até as dentes prontos a matar e a gritar viva Espanha. Mais forte que o exercito equipado com o bom e o melhor, à custa da miséria dos espanhóis. Havia uma equipa de segurança nomeada para proteger com a própria vida, se fosse necessário, a sagrada relíquia. Vivia com a mão da santa na sua e nunca se separava do amuleto. Todas as noites, antes de dormir o generalissimo, exigia que a mãozinha fosse posta na mesa de cabeceira. Foi assim até morrer de velho. Com a idade a avançar e a ideia da morte a fazer-se presente, começou a caçar e a coleccionar relíquias sagradas. Os seus amigos da igreja alimentavam a coisa, alguns historiadores nacionalistas também. Trouxeram-lhe a espada de São Fernado, ou a espada que lhe disseram ter pertencido ao Rei Fernando III de Castela, arma venerada desde os tempos da reconquista. Da Palestina, trouxeram-lhe bocados de madeira velha que disseram ser da cruz de Cristo. Um cardeal amigo em Roma, conseguiu comprar por uma fortuna, um filamento do sudário, aquele pano onde dizem que embrulharam Jesus. Imagens de santos com fama de milagrosas eram às carradas... Mas nenhuma relíquia recebia do ditador o carinho e a atenção que a mãozinha decepada do cadáver da Teresa de Àvila.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Batepá

O Jovem tenente coronel de artilharia, Carlos Gorgulho, era o que se pode chamar um homem às direitas.   Homem de armas habituado a canhões e pouco dado a leituras.  Tinha nojo de políticos e abominava os comunistas.  Chegou a São Tomé com vontade de brilhar. Estava-se em 1948, o mundo lambia as feridas da segunda-guerra mundial, a América injectava dinheiro na Europa destruída em troco do combate ao comunismo. O Carlos da artilharia, oficial de carreira neste cantinho maltratado, achava que esta nomeação para Governador Geral da Colónia de São Tomé e Príncipe, era mais que merecida, afinal de contas estava com o Estado Novo desde o inicio...Se durante a guerra tinha as suas simpatias pelas tropas do eixo e pelo austríaco do bigodinho, nunca deixou de servir a ditosa pátria amada com zelo e rigor, servindo com o mesmo zelo o Senhor Presidente do Concelho Doutor Oliveira Salazar que para ele, era praticamente  a mesma coisa. Trouxe consigo uma pequena equipa de jovens militares. Tratou logo que chegou, de se reunir com as figuras vivas da ilha: com os portugueses principais proprietários de roças de cacau, com o senhor bispo, com o chefe da policia... O Gorgulho era um homem de acção e deslumbrado com o poder quase absoluto que tinha nas mãos, decidiu mostrar a São Tomé, ao Príncipe, às colónias e a Lisboa, com quantos paus de faz uma canoa.  Acontecia, que naquele  tempo do pós guerra, o preço do cacau continuava em ascensão. O habito de consumo que os gringos tinham deixado na Europa de consumir tabeles de chocolate quase diariamente, estava a revolucionar o negocio do chocolate que até ao inicio da segunda-guerra era consumido quase sempre como uma bebida quente...  Os americanos e a sua satisfação oral nas barras de chocolate inventaram todo um novo mercado mundial. Os portugueses proprietários das roças naqueles anos, conseguiam vender toda a produção e não conseguiam vender mais, porque precisavam de mais e melhores infraestruturas para fazer escoar o seu cacau.  Quando os lusos senhores das roças conheceram o Gorgulho,  viram uma oportunidade de ganhar o jovem governador para a sua batalha pelo desenvolvimento e modernização da ilha. Pensavam e falavam, naturalmente naquele desenvolvimento e modernidade que os deixaria um bocado ainda mais ricos. O Governador Gorgulho naquela ilha quase virgem de estradas e de cais de embarques, viu a oportunidade para mostrar que nada melhor que um oficial de artilharia para governar uma colónia. No tédio tropical da Ilha, desenhou planos que com a sua mão de ferro de canhão depressa pôs em prática. Estradas, pontes, linhas de caminho de ferro, ruas pavimentadas, docas, cais de embarque e desembarque. Com as sobras, novos telhados para as igrejas.  Os fazendeiros portugueses deliravam e comentavam que era desta é que era, o bispo abençoava, os revenderes de cacau em Lisboa comentavam e o Gorgulho estava a trabalhar bem. O Governador, satisfeito ia escrevendo relatórios para a metrópole que era autenticos canhonadas na estratégia de gerir colónias. ~ Queria mostrar a Lisboa, ao Concelho e ao Senhor Presidente do Concelho Doutor Oliveira Salazar que nomear o Tenente Coronel Gorgulho para governador de Sao Tomé era o inicio de uma nova era na politica ultramarina.  Mas há sempre um problema a atrapalhar os planos dos grandes homens como o Gorgulho.  Agora que tinha o material a chegar da metrópole, que o ferro e o cimento estava garantido... tinha dificuldades na mão de obra.... não havia mão de obra suficiente... O Gorguho não era muito de ficar bloqueado a  pensar nos problemas. Era um homem de ação e como homem de acção que era, decidiu pela solução óbvia. Requisição directa de mão de obra entre os trabalhadores das roças de cacau. Requisição directa entre os moradores das roças, entre os moradores da cidade, requisição directa sobre quem quer que fosse que pudesse segurar numa pá. O trabalho é que educa e para o governador Gorgulho, nada como uma pá, uma picareta ou um carrinho cheio de pedras ou areia na mão para educar esta malta que ele considerava inferior e indolente. Requisição geral, fez o governador, porque o trabalho também liberta. Aos primeiros trabalhadores a serem recrutados, foi-lhe pago um valor correspondente a metade do salário que os fazendeiros da roça pagavam. Pagavam, teoricamente, e digo teoricamente porque ao maior parte dos trabalhadores não chegavam a receber um tostão porque para poderem estarem nas orças contraiam dividas que não conseguiam chegar a pagar nunca... mas essa é outra história. Ou não... se calhar é a mesma história... Com o avançar das obras e o derrapar dos preços e prazos nas lamas da selva a mão de obra deixou de ser paga. As pessoas eram requisitadas e trabalhavam em sistema de voluntariado... que não era bem voluntariado porque não podiam deixar de o fazer.  Os homens, mulheres e crianças decidiram protestar pela situação e organizaram uma espécie de manifestação batendo com as pás no chão. As pás a baterem no chão e umas nas outras. Só isso...mas as pás paradas fizeram um barulho ensurdecedor. As pás a bater fizeram um barulho tão grande que se ouviu lá em cima no palácio do governador.  Ouviu-se na residência episcopal, na esquadra da policia, no quartel. Ouviu-se nas casas dos portugueses donos das roças...  Foi num dia como o de hoje. Dia três de Fevereiro de 1953.  O Governador Gorgulho, habituado aos tiros de canhão e desabituado das pás a bater, teve uma diarreia tropical quando ouviu as ferramentas em greve. O panico do comunismo deixou-o doente... e já se sabe que as doenças de medo, num clima quente, são ainda piores! Reuniu os seus homens de confiança, falou com o senhor bispo, com o tenente que era presidente da câmara e com o chefe da policia. Resistindo à diarreia e ao perigo vermelho, homem prático, cercou os manifestantes no porto que deviam estar a construir. Depois, com a tropa com a policia e mais alguns voluntários civis resolveram a coisa à sua maneira: Usaram metralhadoras e granadas de mão. Morreram ai uns mil e duzentos insurrectos, homens, mulheres e crianças. Os que não morreram logo, foram preços e torturados até  morrerem num campo de concentração feito para o efeito.   Foi há sessenta e cinco anos. ---- Hoje o presidente de portugal, foi a São Tomé, ao sitio onde o Governador Gorgulho assassinou aquelas pessoas. Tirou fotografias, abraçou, deu beijinhos e depositou uma coroa de flores no momento de homenagem aos mortos.  Fez um discurso bonito lamentando as vitimas. Depois foi jantar com os portugueses proprietários da roças que hoje são hotéis.