quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O Pandeleiro


O meu amigo António já fez oitenta anos. Esteve quase a licenciar-se em história pela universidade de Coimbra mas a luta contra o fascismo na universidade fizeram-no comunista. Isto num tempo em que era proibido ser-se comunista.
Aquilo que ficou conhecida como a "crise académica de 62"  produziu muitos e bons quadros indispensáveis à construção da liberdade. O António foi um deles.
Oriundo de uma família beirã, cresceu privilegiado. Aos vinte e dois anos, fez a opção de classe e assumiu tarefas a tempo inteiro no partido comunista. Mergulhou. Quer dizer, passou a clandestinidade.
Para trás ficou o curso de história e um eventual pacato futuro. Ficou a família que apesar de moderadamente liberal não entendia a escolha do rapaz. Ficou um namoro de conveniência social com uma  namorada que sonhava casar mas que não partilhava da sua visão do mundo. Ficou também para trás o conforto de viver com dinheiro num país de pobres.
O trabalho político levou o António para  o Porto. Foram-lhe atribuídas tarefas ligadas à organização de trabalhadores da construção civil. A ponte da Arrábida estava a ser inaugurada nesse ano de 1963. Era preciso mobilizar e organizar para a luta daquele mar de trabalhadores envolvidos na construção da ponte e empurrados para o  desemprego.
O António tinha pouca experiência de clandestinidade. Não queria ser preso. Tinha medo. Por isso seguia com disciplina as orientações.
Chegar aos locais de reunião dez minutos antes, passar e observar, ir por uma rua voltar por outra. Deixar a bicicleta afastada e chegar a pé ou de transportes públicos. Não falar com ninguém no trajecto. Evitar o contacto social. E sobretudo ter cuidado. 
O António tinha.
Morava num quarto alugado perto das Antas. O estádio tinha sido construído há meia dúzia de anos antes. À volta do estádio havia baldios, casas dispersas e algumas fábricas pequenas.
O sucedido terá sido nos primeiros dias de sol de sessenta e quatro.  
O António vinha para casa por volta da hora de almoço.  Na beira da vereda que percorria de bicicleta, um grupo de três jovens operárias têxteis picnicava. 
Ao verem aproximar-se o rapaz, cochixaram e uma delas, a mais afoita e também a mais bonita, soltou em voz alta:
-- ò jeitoso!
O jeitoso, disciplinado nas regras da clandestinidade, baixou a cabeça, fingiu que não ouviu e continuou a pedalar vereda acima.
Passaram-se uns dias. O tempo continuou simpático.
A mesma vereda.
A mesma hora de almoço e as mesmas operárias têxteis, a almoçarem o seu farnel ao sol de primavera.
A rapariga corajosa, reconheceu o ciclista e inconformada com a falta de resposta da passagem anterior, convidou:
--- ò jeitoso, queres almoçar?
O António queria. Queria muito almoçar. Queria ficar ali ao sol a comer do farnel daquela rapariga e a rir com o riso dela. 
Mas não podia.
Fez o que tinha a fazer. 
Baixou a cabeça, fingiu que não ouviu o convite e continuou a pedalar.
Elas riram.
A vida do clandestino continuou entre reuniões e pedaladas. 
O inevitável voltou a acontecer. Voltou a cruzar-se com as tres raparigas. 
Desta vez, aquela morena de olhos grandes, disse para as amigas: 
-- Uma pena, tão jeitoso e pandeleiro!
...
Cinquenta e oito anos, dez deles em clandestinidade, duas prisões, uma revolução, uma contra revolução e quarenta e seis festas do avante depois,  continuam a viver juntos. 
Ela não perdeu o sotaque de Rio Tinto, continua afoita nas palavras e na vida. Bonita e risonha.  O tempo deixou-a um bocado surda mas quase nunca usa o aparelho, ri do que não ouve e continua a dizer o que pensa e o que quer. 
Ele continua tímido. Mantém a coragem serena dos conspirativos. 
Não consegue dormir a noite seguida e tem dificuldades em caminhar porque os joelhos já não são o que foram. Nas insónias fuma. Fuma há mais sessenta anos, só para desmentir as estatísticas, assim me contou.  Foi numa das suas noites em branco entre cigarros e outras conversas que me explicou porque é que a companheira o trata carinhosamente pela improvável alcunha de Pandeleiro.
Eu achei o relato um tesouro que tive de partilhar.