terça-feira, 30 de abril de 2019
Jamaica
Já se adivinhava...
Nas últimas vezes que passei pelo Cais e vi aqueles betos todos de aquário na mão, a beberricarem gin onde só falta o peixinho vermelho, percebi que o Cais do Sodré já não era ali...
Partiu para outro lugar.
Dizem que vai fechar o Jamaica.
É tanga. O Jamaica é eterno.
Uma vez os americanos mandaram um exército invadir o Jamica e levaram na boca.,. Agora vem estes bacanos da taimeaute com ideias...
Nem pensar.
Uma noite no final da primavera de 1991, estiveram quase a invadir o Jamaica. Um porta-aviões americano ancorado no Tejo despejou no Cais centenas de marines a caminho da guerra do golfo. A coisa começou com uma troca de palavras entre um casal de lésbicas e um americano bêbado que não conhecia as regras da educação. Como o gringo não sabia como falar com senhoras, as senhoras viraram bichos maus e ensinaram-lhe. Os amigos do gajo quiseram interromper a lição. Vieram os porteiros, dois armários negros deste tamanho para pôr os camones na Rua. Os armários eram grandes mas os americanos eram de muita arrumação e não queriam sair. O resto do pessoal ajudou na expulsão.
Sei que foi assim porque estava lá e vi.
A porta fechada e cá fora o grupo dos camones cresceu aos pontapés. Vieram as putas, os cientes e os gandins mais os porteiros do Texas. Ninguém chamou a polícia mas eles apareceram também. Juntaram-se mais gringos e estava o caldinho armado.
Foi até de manhã.
Pela primeira e única vez polícias, ladrões, chulos, prostitutas, comerciantes, porteiros, barmens e notívagos, todos lado a lado. Todos do lado certo. Muralha de aço abençoada pelo Santo António que é padroeiro de Lisboa e aparentado com o diabo.
Até o vendedor de jornais participou com a tranca do quiosque na mão a enxotar marines.
Todos contra os americanos.
Das noites mais lindas da minha vida. Com pedras da calcada, cadeiras e garrafas de sagres pelo ar. Pareciam pássaros a voar contra os invasores. Aquilo era bonito.
Durou até de manhã com os marines a retirarem pela 24 de Julho direcção a doca da Rocha.
Épico.
Lavei as mãos e a cara na estação e apanhei o primeiro barco para o Barreiro de coração cheio percebendo que pertencia a um povo de heróis.
Tenho a cicatriz de um corte na minha mão direita como recordação permanente dessa noite e do Jamaica. Para sempre. Podem demolir o Jamaica. Talvez seja melhor assim! Mas os americanos não entram!
Empreendedorismo Lisboa South Bay.
Ó Orelhas anda cá ver isto.
Hoje porque é sexta-feira, a santa, a malta vai jantar. Marisco. As amêijoas mais mirradas que não conseguirem vender vão acabar à mesa de quem escarafunchou no lodo para as apanhar.
Ó Orelhas anda cá ver e perceber como é o empreendedorismo no Barreiro, que quando a fome rosna nos calcanhares de um homem, a malta faz-se à maré. Seja proibido ou não.
Ó Orelhas anda cá ver os mafiosos em carrinhas a comprar por tutimeia o que se arrancou ao rio. Anda ver marisco pribido ser levado para espanha.
Vem cá Orelhas, vem apanhar a baixa mar das seis da manhã. Entrar no rio as cinco e comecar a andar na direcao das luzes de santapolonia.
Anda cá Orelhas, anda meter-te no lodo até meio das pernas. Beter os dentes com o frio que te deixa os teus famosos abanos roxos. Anda dar voltas e mais voltas com o chalavarro. Deixa que o nevoeiro te envolva até que nem a puta da ponta do cigarro ves debaixo do teu nariz. Dá mais umas voltas enleado no saco de rede. Depois olhas para cima e já não sabes para que lado é o clube naval nem para que lado é Lisboa. Anda lá Orelhas, faltam ainda umas quantas macheias para encher o balde e a maré tá a subir.
Agora Orelhas, tens de correr para fugires ao rio que sobe. Vá Orelhas que é a parte mais perigosa em que um gajo vem carregado e cansado e qualquer erro é fatal.
Anda Orelhas, negociar a um, um e vinte, um e trinta o quilo de amêijoa. Leva o balde pra carrinha com os dedos congelados e as galochas a fazer xapxap. Anda contar o pagamento.
Senta-te a fumar na muralha mas nao fiques a pensar nos que não voltaram da maré e nos que o rio levou pro mar.
Fuma sem pensar Orelhas. Se a teca foi boa podes ate beber um copo. Só depois da praia mar empurrar para casa todos os mariscadores, ai sim, podes encher a boca para falar de como o desemprego é uma excelente oportunidade.
O Xerif
Quando os nazis ocuparam a França, o miudo judeu Lucien Ginzburg, foi obrigado a ir para a escola de estrela amarela ao peito e a familia teve de fugir de Paris, para não ser deportada e assassinada.
Conta a irmã gemea do Lucien, que o irmão, um dia apareceu em casa com a estrela amarela obrigatoria na lapela do casaco e por cima, escrito a giz com grandes letraas a palavra: XERIFE!
O episodio valeu uma grande tareia do pai e um sermão sobre a gravidade do momento que todos os judeus viviam.
Desde sempre iconoclasta, cedo decidiu ser pintor.
Adolescente, começou a tocar em bares e cafés para pagar os estudos de pintura, comprar telas, pinceis e tintas...
Aos trinta anos era um pintor falhado que cada vez se safava melhor como musico.
Nos anos 50, torna-se profissional a tempo inteiro da musica e assume o nome artistico de Serge Gainsburg. É aí que deixa de pintar o belo e dedica-se a procurar o belo onde ele realmente vive: nas curvas dos corpos.
Sumo de laranja
Na passagem da decada de oitenta para a de noventa, fui a uma festa numa fazenda em pegões. Tinha uns dezassete anos e bebi demais durante a noite. A manha surgiu fria e luminosa num laranjal. Laranjas doces e sumarentas a repor o equilibrio balancado pelo alcool. Comi umas quantas. Matavam a sede e desenjoavam. Comi mais.
A tarde cheguei ao Barreiro, a casa dos meus pais, deitei-me e tentei recuperar o sono. Foi ai que me chegou a agonia. Corri para a casa de banho. Ocupada. Abri a porta da dispensa, tirei a esfregona dentro do balde e vomitei através do escorredor de plastico da esfregona para dentro do balde.
Ao longo da minha vida, sempre tentei evitar que os que amo assistam a determinados espectáculos... daquela vez nao consegui...
O meu pai, de pé, assistia ao despejo.
De joelhos no chão, limpando as lagrimas dos olhos e a baba dos cantos dos labios, verifiquei que a poupa e os caroços das laranjas tinham ficado no escorredor... e que o balde estava cheio de sumo...
Tentando justificar o injustificavel, disse ao meu pai:
--- Foram as laranjas... fizeram-mal... comi duas laranjas ao pequeno almoço e agora olha... só sumo de laranja...
Irónico e sarcastico como só o meu pai sabe ser, respondeu-me:
--- Duas laranjas deram esse sumo todo?Devias registar a patente e comercializar...
Elogio da Mentira
O ELOGIO DA MENTIRA
O Pedro e o Miguel eram amigos. Mas amigos a sério. Do peito. Amigos de copos e da vida. Viviam ambos no Barreiro e noite sim, noite sim saiam para viver e desfrutar ter vinte e tal anos.
Não me lembro, nem isso interessa para a história qual deles conheceu a Cintia primeiro. Nem qual deles a primeiro levou para a cama. A Cintia era uma morena trintona, baixinha com o rabo e as mamas de um tamanho acima do resto do corpo, uma boca carnuda que dava vontade de dar dentadas e um nariz entre o arrebitado e o abatatado.
O certo é que ambos os amigos se envolveram com a Cintia. E era bom para os três. O Miguel e o Pedro, amigos e confidentes depressa articularam um sistema de escala e de encontros e substituicoes. De sinais e rituais, que ambos conheciam e que a Cintia ignorava.
A Cintia enganava os dois. E os dois enganavam a Cintia.
Havia muitas coisas que a Cintia desconhecia sobre a amizade. Havia muitas coisas que a Cintia ignorava, porque de génio, não tinha nada, a não ser o mau. O mau génio, entenda-se. Mas como dizia o Miguel, quando estavam juntos não lhe pedia ajuda para fazer exercícios de matemática. Nem para falar dos efeitos da perestroika na economia russa, acrescentava o Pedro.
A Cintia, ria e sorria feliz porque acreditava que encornava os dois amigos. Cerrava os olhos empurrava as maminhas generosas para cima e punha a lingua de fora mordida entre os dentes brancos. Os dois amigos, felizes na partilha dos prazeres da vida, que é a melhor forma de celebrar uma amizade.
Claro que tinham regras e formas. Porque a boca da Cindia era carnuda com uma lingua que se metia onde nao era chamada, as vezes em lugares impróprios, estabeleceram ambos como habito permanente de higiene oral dar-lhe de beber ( o ideal seria faze-la bochechar) quantidades navegaveis de vodka. Eram os tempos em que a absolut entrou no mercado das bebidas e arrazou com as outras marcas.
Encontravam se, as vezes os três, um deles partia e o outro pedia vodka ao balcão. Com gelo e mais nada. A Cintia sorria e beberricava molhando a ponta da lingua na bebida transparente e minutos depois a magia acontecia.
A relação dos tres foi seguindo os animados dias e intensas noites daqueles anos noventa, com encontros nos bancos de trás do carro de Miguel, num armazém do qual o Pedro tinha a chave, na praia de Alburrica, no jardim dos franceses e às vezes numa pensão que funcionava por cima do café barreiro.
Um dia, os dois amigos, amantes da Cintia e da liberdade, conscientes que só a verdade é revolucionária, decidiram deixar as hipocrisias e terem os três uma conversa franca.
Foi feio. A Cintia sentiu-se enganada e nesse momento mostrou aos dois que de facto tinha uma lingua mesmo porca. Aos dois, mais à empregada do bar, aos clientes no balcão e nas mesas, aos vizinhos de cima, dos lados e a metade do Barreiro, porque os gritos se ouviram desde as fabricas da ufa até à baía do seixal. A coisa sujou...
Tristes pela perda de um tão confortavel amor, os dois amigos beberam os vodkas de um trago e a partir desse dia, as ousadias da Cintia passaram à doce qualidade das recordações.
Conto-vos esta história para fazer a defesa da mentira. Apesar da mentira ser uma senhora de pernas ligeiramente curtas e que depressa é alcançada por esse corredor chamado tempo, há vezes em que as formas arredondadas da mentira são preferiveis aos angulos abrutos e secos da verdade.
O Pedro e o Miguel que o digam.
Ou o Silvestre, que é o gerente de um banco e só agora entra na história porque se casou com Cintia já tarde... e que vive feliz com o passado que a lingua da Cintia não contou.
Belenense Académica
Quando o belenenses foi jogar contra o académica em 1955, um grupo de jovens de rapazes do Altoseixalinho, foi de excursão ver o clube de Belém a Coimbra. O Belenenses estava a um ponto de ganhar o campeonato...
A camionete, alugada, saiu das portas da drogaria do Careca as quatro e meia da manha. Cinco horas e meia de estradas, passado o Porto-Alto, Vila Franca e Alenquer. Paragem para aliviar as bexigas do branco que as oito da manha acompanhou os pasteis de bacalhau. Mais curvas e serra, mais a Batalha, a Venda das Raparigas, Leiria e Pombal. Mais branco e carapaus fritos. À vista do Mosteiro de Santa Clara, abriu-se uma garrafa de moscatel de Setúbal, porque aquele final de Abril ia quente e a sede aperta quando se anda na estrada.
Chegaram a Coimbra as dez e meia da manha.
Era domingo. O comercio todo fechado e as ruas quase vazia a excepção de grupos de pessoas que saiam das missas...
Os cinco amigos procuram uma tasca para matar a sede e dois deles pretendiam, usufruir de serviços de trabalhadores do sexo. Um dos rapazes vinha desde o Porto Alto a fazer referencias aos encantos da casa de uma espanhola na rua direita que tinha as melhores catraias do país. As mãos enormes de artífice-torneiro-mecânico, desenhavam no ar formas tão nítidas que quase se sentia o perfume das raparigas no ar saturado da camionete.
Como as tascas estão na generalidade fechadas, decidem por unanimidade rumar à Rua Direita. No numero 9, terceiro andar, a casa da Dona Conchita, espanhola gasta e refugiada da guerra e que se fixou em Coimbra para fazer de amar negocio e vida. O prédio de escadaria ingreme e apertada ia acordando depois de uma noite de sábado. Crianças e gatos desceram a escada enquanto os cinco magníficos do barreiro subiam.
Bateram. Do outro lado da porta passos arrastados.
Um postigo abriu-se e uma senhora quase menina com sotaque do porto e dentes podres, explicou que a Dona Conchita não atendia ao domingo, tinha dado folga a todas as meninas e que estava a descansar...
Valentes rapazes, animados pela viagem e eufóricos pelo possível Titulo do Belenenses, não iam desistir por causa de uma desculpa tão esfarrapada.
O tal que já conhecia a casa e que tão bem tinha descrito o belo par de mamas da patroa, chegou-se a frente e esclareceu:
-- Não somos clientes, sou eu que sou amigo, e trago aqui um moço que é parente da Senhorita Conchita que lhe quer dar um recado de um tio que acabou de falecer.
Todos se calaram espantados perante a historia do tio que cheirava a herança.
Os passos arrastados afastaram-se e passado uns minutos a porta abriu-se e a criada mandou-os entrar para a sala de espera...
-- A Dona Conchita está a despachar-se, os cabalheiros que facem os fabor de esperar um momentito.
O momentito tardou e a garrafa de anis em cima do tocador abriu-se e deram-se os primeiros golos diretamente do gargalo. Dentro da garrafa, um ramo pairava com cristais de açúcar agarrados...
A Dona Conchita tardava
Um dos rapazes mais afoitos abriu a porta da cozinha e dentro de um tacho em cima da pequena bancada de mármore encontrou o tacho. Era arroz de coelho...
-- É rapazes, temos aqui arroz de coelho, enquanto a Conchita desinfecta a concha, comemos qualquer-coisa....
Mesmo os dois mais urgentes de mulher concordaram que seria melhor meter qualquer coisa para ensopar o anis.
Trouxeram o arroz para a sala e directamente do tacho remecheram nos ossos do coelho e na carninha agarrada, entenda-se!
A Dona Conchita chegou flutuando numa combinação azul clara que lhe tapava as costas de estivador mas que exibia os melões que em tempos foram famosos em Zaragoça. "Aqui donde las vêm, serviram com valentia toda la quinta brigada" apregoava as mamas quando alguém as cumprimentava.
Chegou com os melões à vela, as ventas reviradas pela invasão de campo, ofendida pelo desplante do tacho do arroz de coelho e magoada pela garrafa de anis vazio. Começaram os guinchos e insultos...
Mulher desagradável quando se zangava.
Veio a criada com os dentes podres saber o que era... Percebendo o chelique da patroa, recuou para uma linha mais resguardada e guinchando também ela, foi chamar reforços.
A Conchita, vendo que a claque do belenenses não recuava, abriu as janelas e aumentou o volume dos guinchos... tipo, como se a quisessem matar ou lhe estivessem a bater.
Zangado, o reforço chegou na figura Penamacor, protetor, amante e investidor privado da Cochita. O Penamacor, fora praça da guarda, mas que por ser ladrão e vigarista acabou expulso da nobre corporação. Perdeu a farda mas ficou com o porte, com os bigodes retorcidos e a pança de 8 meses que lhe servia para manter o respeito. O Penamacor era grande mas ao ver os cinco valentes, optou pela abordagem legalista.
Os guinchos da Conchita acalmaram para deixar o seu homem falar:
-- Ora bamos lá a ber o quéisto? As boxas identificaxões faxavor!
Ora o pessoal do barreiro, está bem habituado a guardas e rusgas e se há coisa que se distingue bem, é um pintas a querer passar por bofia!!!
Esta verdade é válida hoje, em 2016, como era em 1955...
Quando o Penamacor pediu a identificação, um dos presentes, seja por ato de nervosismo, seja apenas por um sentido de humor mais javardito, soltou uma sonora flatulência que empestou o ar e fez explodir em gargalhadas os outros quatro...
Voltaram os guinchos com mais força!!!
O Penamacor, percebeu o recado e ameaçou que ia la dentro ia buscar a pistola...
-- Olha lá ó bigodes, se tivesses pistola, já a tinhas nas patas!!!
O Penamacor, para não levar uns mimos atirou-se para o chão a fingir que estava a ter um ataque cardíaco.
Mais guinchos....muitos guinchos
Como o ambiente começou a ficar monotno, os rapazes do barreiro, decidiram ir procurar diversão noutro sitio...
Desceram as escadas num torpel ficando para trás um dos cinco que sendo de profissão relojoeiro, não resistia a um relogio de sala parado e ficou a dar-lhe corda.
Os gritos soavam em toda a baixa de Coimbra.
Quando o relojoeiro começou a descer, já vinha a polica a subir. Preocupados com o relojoeiro que tinha ficado para trás ainda na escada ouviram o rapaz dizer:
-- Suba suba rápido senhor policia que eles matam-se todos lá em cima....
O Belenenses perdeu o campeonato porque a Académica marcou a quatro minutos do fim nessa tarde de abril de 1955, mas parece que o arroz de coelho da Conchita não estava mau.
el comandante
La Habana. Finais de 1997.
Para trás um filho e um casamento em ruínas. Meses após primeiro divorcio. Pela primeira atravassei o atlantico, esse mar a que na America Latina chamam "el charco". Lembro-me especificamente da tarde em que me tiraram a fotografia. Tinhamos ido a uma especie de uma quinta algures na estrada para Pinar del Rio buscar carne de porco. Era o periodo especial e não havia muito para comer. A carne era um bem precioso. Os cubanos e residentes estrangeiros fora dos circuitos turisticos tinham de se desenrascar. E desenrascavamos-nos.
O carro era das Nações Unidas e estava a ser conduzido por uma amiga belga. Eramos eu, a belga e dois cubanos.
Foi na volta para La Habana. Levavamos uma perna e uma mão de porco dentro de um bidom de lata. Vinha a carne envolta em papel de jornal e com umas duzias de embalagens de iogurte cheias de agua e congeladas a garantir um temperatira refrigerada. Estavam mais de 30 graus e muita humidade, urgia congelar, salgar ou cozinhar a carne.
Subitamente e sem nada que se fizesse esperar um engarrafamento no meio de nada... A fila não tinha muitos carros, uma ou duas dezenas, mas estava completamente parada num cruzamento.
-- Que passa?
-- Ni ideia. Dizem os cubanos.
Saí para fumar e a belga fez a fotografia.
Os carros parados, o calor e a carne la atrás em risco de vida...
Avancei uns metros.
A policia lá a frente a cortar a estrada.
O ajuntamento a volta dos condutores, transeuntes, biciclistas, boleiistas e viajantes parados.
Falo com o policia
-- Que passó compañero?
-- No pode passar.
O policia estava tenso, e duro, coisa rara em cuba, seja policia ou civil...
-- Si, vejo que no, pero porquê?
-- No pode passar.
Estavamos nisto e vem uma comitiva de duas motas, um jipe miitar e um carro civil grande que pára. Abre-se o vidro e o Fidel Castro acena. Todos entramos em delirio para saudar o Comandante. O carro arrancou e só tivemos tempo para retribuir o aceno.
Após a euforia geral começamos todos a voltar para as maquinas de transporte.
Volto a falar com o policia, já sorridente e descontraído.
-- Compañero, porque no diciste que era el Comandante? Porque no explicaste que teniamos que esperar por eso...
-- Compañero internacionalista, hay cosas que no se explican!!!
E tinha razão.
Quase vinte anos depois, quando penso no Fidel, no que foi, e no que simboliza, lembro-me dessa tarde em que nos cruzamos pela primeira vez.
Hay cosas que no se explican!
Intrujas
Rishikesh. Capital mundial da Yoga. (Do Yoga, para os mais puristas).
Foi em Janeiro. Passaram mais de dez anos.
De Delhi a Rishikeh foram umas 12 horas de autocarro numa viagem nocturna que poupou as rupias de um hotel mas que não poupou as costas. Chegado ao nascer do dia os Himalaias disputavam a minha atenção juntamente com os intrujas. Todos eles eram do hasram mais puro e mais fiel à verdadeia yoga...
Eu não vim pela Yoga, fui dizendo... vim para ver as montanhas.
Procurei alojamento numa pensão fora da "cidade". Fiquei instalado dois quilometros a pique sobre o rio. No segundo e terceiro dia ainda todos insistiam em levar-me para uma escola de yoga.
Todos as pessoas com quem me cruzava em queriam convencer de alguma coisa. Alguma coisa que eu precisava muito de aprender, que ia mudar a minha vida, que ia mudar a minha consciencia cosmica...
Até na tasca/pensão onde estendi o saco cama me queriam inscrever nas aulas da manha. Só desistiram de me santificar pela respiração, postura e meditação, quando vendo os porcos cruzados de javalis que por ali pastavam me ofereci para cozinhar um guizado...
Depois do guizado de javali, fui adotado.
Dias luminosos e frios de grandes caminhadas pelas montanhas e grandes representações teatrais dos intrujas que eram todos super-mestres-de-verdadeira-yoga. Noites longas a volta do lume a beber chá e ouvir contar histórias.
Gostei especialmente de conhecer e de falar com o David, um australiano sexagenário, passado do prazo e encalhado nos anos 60 há mais de duzentos anos. Vivia em Rihikesh "desde que os Pink Floy lançaram o Dark Side of The Moon". Dizia que morava ali porque gostava do ar da montanha e não já fazia Yoga... mas que mesmo não já não sendo praticante, os seus intestinos só trabalhavam depois do sury namaskar (saudaçao ao sol). O dinheiro chegava-lhe da segurança social da Austrália num esquema vagamente fraudolento que tentou explicar-me sem sucesso.
Uma noite, depois do jantar, o David entrou de repente na tasca, mais branco do que o costume, a tremer de medo e a dizer que se tinha cruzado com um leopardo. Andou frenetico a trancar todas as portas e janelas da pensão e a exigir que a patroa recolhesse o cãozarrão que vivia sarnoso do lado de fora da porta.
Depois de toda a agitação e dos avisos sérios a cada um dos presentes, foi a correr para a casa de banho. Mesmo sem sury namaskar. Voltou, ficou o resto da noite calado a olhar para as brasas.
O chá que este bacano bebeu ao jantar é dos rijos, até dá para ver leopardos....pensei.
Apesar do frio, ainda fiquei um bocado a olhar para as estrelas e a pensar na vida.
Na manhã seguinte, um leopardo tinha comido duas vacas.
Vem isto a proposito das tangas e dos intrujas.
Aquilo que é mesmo mesmo mau e chato nos intrujas e nos mentirosos é que, quase que conseguem roubar-nos a capacidade de acreditar. Só porque as verdades parecem mentiras, pensamos logo que é tanga, fabula ou alucinação...como o leopardo do australiano...
O milagre da luz
Apascentava eu cervejas e memórias quando apareceu uma senhora banhada de luz.
Luz forte e amarela que vinha do candeeiro pendurado na viela.
A senhora disse:
--- queres vir?
Por medo, vergonha, pudor e falta de dinheiro, sorri-lhe e balbuciei, qualquer coisa como: hoje não. Fica pra proxima.
Cravou-me um cigarro, pegou-me na mão e retribuiu o sorriso com simpatia.
-- prometes amor?
Respondi gingão que não faço promessas nem me ajoelho para rezar...
A gargalhada que soltou foi um grito de alegria na noite fria e triste de um Maio chuvoso.
-- a esta hora se aparecer alguem que me oriente para pagar a renda vinha caído dos céus... já estamos a dia 13...
Sem saber o que dizer, voltei a sorrir-lhe.
Foi então que aconteceu.
Aproximou-se um casal de ben-aventurados. Dois pombinhos. Novos, com dinheiro e curiosidade. Ele nuns imberbes dezoito anos e ela dois anos mais afoita.
-- E voces, meus lindos, alinham aqui com a Maria?
Afastei-me para dar espaço ao milagre.
Subiram juntos para o céu do terceiro andar, que diz quem conhece é o paraiso na terra.
Eu continuei o meu caminho satisfeito com o fenómeno da fé e lá segui a semear beatas pelas pedras da rua.
Ao nascer do dia o sol dançou para mim.
A generosidade dos homens ricos
Os poucos homens ricos que conheci são generosos.
Os que acumulam riqueza são quase todos miseráveis.
Explico.
Em outubro de 1999 quis ir a Tamarasset. Tinha 27 anos, um Renault clio e uma mochila cheia da ignorância necessária para fazer loucuras.
Do Altoseixalinho até Marrocos foi um pulo. Atravessei o Atlas e com a ingenuidade dos loucos passei a linha que separa Marrocos da Argélia sem outro controlo alem de uma estrada onde o alcatrão desaparecia e o deserto de pedras.
A meio da tarde parei para fazer chichi e dei boleia a um rapazito que não falava nenhuma lingua conhecida. Apenas apontava para leste. Seguimos umas horas. Ele a falar a lingua dele e eu a minha. Partilhamos cigarros, água e pêssegos. Quando a noite caiu continuamos a direito numa estrada e num cenário cada vez mais deserto. Seriam umas dez da noite fez-me simal para virar a esquerda. Cansado da monotonia obedeci. Andamos uns cinco minutos por uma estrada de terra e mandou-me encostar junto a uns casebres de pedra, mal iluminados no interior por candeiros a gaz. Era ali que morava com a familia.
Entramos e a festa começou. Abraços e cumprimentos. E chá. Muito chá. Percebo que foram buscar um cabrito. Apareceram mais pessoas. Tamaras pão quente. Salada de tomate e queijo de cabra.
Deviam ser umas duas da manhã na casa entrou um senhor vestido com um sobretudo por cima do pijama. Falava frances. Explicou-me que era professor e que o tinham ido chamar a casa e o tinham tirado da cama propositadamente para vir servir de tradutor.
Disse que eu era o convidado de honra daquela familia e que para me homenagear tinham morto um cabrito. O pai do miudo a quem eu tinha dado boleia era referencia local por ter participado na guerra de independência e estava muito satisfeito com a chegada do filho mais novo.
Nos dois dias e tres noites que fiquei com esta família conheci o verdadeiro significado da palavra hospitalidade. O professor passou o tempo todo comigo. Todos juntos convenceram-a desistir de ir a Tamarasset.
O professor acompanhou-me de volta até Marrocos evitando o controlo alfandegário e os transtornos de viajar sem visto.
Quando parei para por gasolina, percebi que já tinha o deposito cheio. Fiquei desconfortável com a situação mas o professor esclareceu:
--- o pai do rapaz é rico. Tem muitas cabras e muitos filhos. Vivem na pobreza mas é um homem suficientemente rico para ser generoso com os amigos.
Aprendi com o professor.
Percebi o que significa ser um homem rico.
Aqui na cidade onde vivo sei de um homem que tem várias padarias/pastelarias.
Trabalham para ele algumas dezenas de senhoras. Paga o salario mínimo com contratos a três meses. Despede e volta a contratar a mesma trabalhadora que emprega nas diferentes pastelarias. Assim mantem a logica do subemprego e precaridade. Não deixa as trabalhadoras levar o pão que não se vende para casa e deita as sobras no lixo depois de regar tudo com lixívia.
Tem carros grandes e duas casas apalaçadas.
Tem a conta bancária obesa e todos os anos compra um apartamentos para férias.
Os mais distraídos podem até pensar que é um homem rico, mas eu sei que este homem não passa de um completo miserável.
Padres, bancos e chefes de policia
Tinha 19 anos e acreditava num universo de possibilidades.
Meti um saco-cama e umas latas de sardinha numa mochila num grupo que éramos dois apanhei o comboio para o norte.
Atravessamos a ponte férrea sobre o rio Minho e ao entardecer e chegamos a Santiago.
Ano compostense e a cidade cheia. Jantamos sardinhas, pão galego e vinho verde num jardim. A ideia era apanhar um comboio regional até Lugo. Íamos ter com o Pedro Miguel Cabrita Feijao a Vilauxin. Na estação informaram que para Lugo só havia comboio as oito da manhã. Eram umas dez da noite e começou a chover. Ficamos até à meia noite. Fecharam a estação e só abriam às seis e meia da manhã...
A chuva carregou na força.
Procuramos um sítio para ficar.
À chuva batemos à porta de vários albergues para peregrinos. Completo, completo. Padres, freiras e beatos a dizerem nos que não. A chuva cada vez mais forte e fria.
Com o cartão multibanco entramos no átrio de uma agência da caja.
Tiramos as mochilas e estendemos os sacos cama.
Não era confortável mas estava seco.
Não passou nem meia hora. As camaras a trabalhar e o estado a servir os bancos.
Um carro da polícia parou do lado de fora e saíram três policiais para nos tirarem dali.
Explicações em português e portenhol
Pedimos estadia na esquadra até abrirem a estação dos comboios. Na polícia também há gente boa.
Deixaram nos por as mochilas num canto, usar as casas de banho e as toalhas secas. Estender os sacos camas não que já era abuso.
Dormitamos umas horas nos bancos de madeira.
A meio da noite chegou um carro patrulha. Era o chefe e vinha zangado. Tratou logo de nos por na rua e dar uma pissada nos agentes que nos desenrascaram.
Outra vez molhados e com frio.
Caminhamos à chuva mais de uma hora até à estação dos comboios. Ainda esperamos um bocado até nos abrirem a porta do chão seco.
O dia nasceu chuvoso e comemos ovos cozidos que sobraram do farnel.
Nessa noite aprendi uma lição para a vida, quando chegam as tempestades, nunca devemos contar com ajuda de padres, bancos ou chefes de polícia.
prohibido fumar
Tínhamos acordado bem cedo nesse dia.
Ao nascer do dia, apanhamos um autocarro em Valparaíso junto ao pacífico chileno e atravessamos os Andes.
Passamos a fronteira entre o Chile e a Argentina ao final da manhã e seguimos até Mendonza. Cidade mineira nos Andes argentinos. Chegamos ao meio da tarde e ficamos a fazer tempo e a beber cervejas numa tasca ao lado da estação da rodoviária. Igual a todas as tascas ao lado de todas as rodoviárias do mundo.
Compramos bilhetes para a proxima camioneta que seguia na direção de Córdoba. Saia as onze da noite. Teriamos de mudar as quatro da manhã e para fazer o transbordo. Chegaríamos as oito e meia.
A tasca da rodoviária fechou. Carregamos as mochilas e procuramos um sítio próximo para continuar a hidratar com cervejas e esperar pela hora da viagem.
Sentamos-nos na esplanada de um bar onde estavam mineiros índios a beber cerveja. Pedimos mais uma garrafa. Depois chegaram as prostitutas. Novas, quase adolescentes, indias, coloridas, ruidosas e algumas oxigenadas. As mãos de camponesas com unhas pintadas de cores vivas.
Quando a festa estava a ficar mesmo animada, tivemos que sair e entrar na camioneta.
Embalados pelos balanços da estrada que agitava o mar de cerveja que tínhamos mamado, adormecemos.
Acordaram nos a meio da noite. Precisamente no imenso nada da Argentina rural.
Tínhamos que mudar de autocarro. Vinha atrasado mas estava a chegar.
Carregamos as duas mochilas e arrastámos as duas inesperadas ressacas para a noite quente.
Não se podia fumar.
A minha companheira de viagem e de vida, tem, na generalidade despertares difíceis. Aquele estava a se-lo especialmente.
Pegou no cigarro.
Eu avisei:
-- olha que é proibido fumar...
-- aí é? Então olha para mim a prevaricar! Chama a polícia e manda-me prender.
Confesso que considerei a sugestão. Mas como não sou de alimentar discussães, disse-lhe:
-- É por isso que te amo.
Surpreendentemente sorriu.
Aproveitei para fotografa-la.
A cor das hortas
À e tal as hortas são modernas e todos deviam ter uma. A pessoa ouviu isto e tal como viu na internet, decidiu reciclar garrafas pet e fazer uma horta vertical na varanda.
Muito giro. A pessoa gosta da ideia. A pessoa não gosta é da horta onde o vizinho do bairro de baixo cultiva legumes para acompanhar a pobreza. A pessoa, a essa horta, já acha mal.
A pessoa fica na sua varanda de três por um a achar mal. Fica a ver ao longe o vizinho do bairro de baixo a cultivar o milho e a mandioca, a cultivar os tomates, couves, alhos e cebolas. Vê às vezes senhoras com bebes às costas a bater com um pilão dentro de latas. A pessoa fica zangada com as mamas que saltam livres e cheias debaixo do pano de chita e fica ofendida com o sono tranquilo do bebe embalado pelo balanço do pilão. A pessoa não gosta de ver ao longe o vizinho do bairro de baixo fazer uma coelheira com o que foi um frigorífico estragado.
Há uma raiva a germinar que lhe substitui o tédio, enquanto a pessoa, acende mais um cigarro que não fuma até ao fim. A pessoa volta para dentro para fazer zapping e gostos da face enquanto estoicamente ignora os gritos das crianças que são suas.
Passam os dias cinzentos e iguais.
O vizinho do bairro de baixo rega e poda a horta que fez. Dobrado sobre si mesmo enquanto fala alto e gesticula para os outros cultivadores de hortas. Falam e gritam numa língua desconhecida onde a pessoa identifica palavras.
É então que a pessoa faz o mail para a junta e para a câmara a dizer que não é admissível. A inveja e o ódio crescem como os legumes da horta clandestina do vizinho.
Meses de tédio e raiva contida decorrem.
Ao final do dia, sentada ao volante, a pessoa pará na passadeira para deixar passar os vizinhos do bairro de baixo. Vêm das hortas com latas à cabeça vazias de tinta e cheias de legumes e frutas. Às vezes trazem galinhas a bater as asas penduradas pelas patas. A pessoa não quer saber que a horta é um terreno privado nem quer saber que o dono do terreno se desresponsabilize da limpeza do espaço que é feito pelo hortelão. Não quer saber de nada disso. É pessoa é obrigada a parar na passadeira.
A pessoa comprou uma casa ali e está a pagar ao banco, mais cara do que no bairro quinhentos metros a baixo porque lhe prometeram viver em sistema de condómino quase quase fechado. Todos os meses leva a facada do banco que mal se aguenta com a prestação da casa mais a do cartão de crédito…
A pessoa diariamente vê a família do vizinho do bairro de baixo, passar com um avio tirou da horta e que nem sequer pagou. A pessoa reclama do viver do vizinho do bairro de baixo e do rendimento mínimo. Reclama dos refugiados e dos transportes. Mais uma vez manda email para a junta, telefona para a câmara, e ameaça com a julia pinheiro. A pessoa indigna-se.
Os dias continuam a passar. A horta do vizinho de baixo cresce enquanto os coentros e a hortelã agonizam na garrafa na varanda três por um.
Domingo de manha, a pessoa foi fazer a caminhada e viu impressionada o vizinho do bairro de baixo a fazer xixi junto da vedação da horta que construiu. Na volta da caminhada estava a vizinha do bairro de baixo a esfolar um coelho sentada numa cadeira que alguém pôs no lixo. Um fogareiro aceso e uma panela grande em cima que liberta odores a óleo de palma e especiarias.
A pessoa chega da cansada, suada com uma raiva surda de viver no 5º esquerdo. Carrega no botão com força. Sobe no elevador com outra pessoa clonada de si e igualmente insegura do seu suor das duas horas de caminhada. A pessoa sorri forçada um bom dia e segue em silêncio olhando para o smarphone.
A pessoa queria ter uma moradia sem vizinhos e com um jardim onde pudesse ficar sentada a beber um colonial gin com colegas do escritório. A pessoa fecha os olhos do sonho da moradia e por instantes vê a imagem do vizinho do bairro de baixo a fazer xixi.
-- Porcos! Desabafa entre dentes.
-- O quê? Perguntou outra pessoa de vida igual à sua.
-- Estes porcos das hortas.
-- E a polícia não faz nada.
As duas pessoas clonadas entraram nos seus apartamentos iguais e fecharam as idênticas portas reforçadas à chave. A raiva e o ódio a envenenar os almoços nas semelhantes cozinhas ikea. Bacalhau com natas do restaurante que serve para fora. E sopa feita na bimby.
Na horta do vizinho do bairro de baixo o almoço foi servido à sombra do telheiro na mesa comprida feita com uma tabua que foi uma porta em cima de tijolos. Bebe-se cerveja fria tirada de um bidom com gelo. Para o almoço chegaram parentes e família. E mais amigos. E mais vizinhos do bairro de baixo. Há um radio que canta alimentado pela bateria de um carro. A festa torna-se me farra. No sofá que outra pessoa deixou há dois meses encostado ao contentor há um casal a namorar e uma senhora velhota sentada a abanar-se coma tampa de um tacho.
A pessoa depois de almoço queria dormir a sesta. A pessoa fica na cama deitada a ouvir ao longe as gargalhadas das mulheres e os gritos de alegria das crianças. A pessoa não consegue dormir. Tem azia da comida de plástico. A raiva cresce porque não é podada e azeda-lhe o estômago. E o ódio aumenta-lhe nas veias.
A pessoa levanta-se e vai directa para a varanda. Zás. As garrafas pet e a terra mais os vasos, mais as sementes de morangos, tudo para o lixo. Acende um cigarro que não fuma até ao fim e vai sentar-se ao computador para mandar mais um email para a junta, para a câmara e para a julia pinheiro a reclamar das hortas.
A pessoa procura à volta um escape para despejar o ódio inveja e raiva. Não encontra e zanga-se. Falta sempre qualquer coisa à pessoa. Se ao menos pudesse ir às compras para passar esta neura…
Enquanto isto, longe. Muito longe dali. Um proprietário ignora que os terrenos que comprou com esperança de se valorizarem produzem mandioca, tomate e ódio
Dias de bruxas
Diz que é dia delas. Não lhes tenho medo. Às bruxas. Conheço bem o género.
De beber poções mágicas tenho vasta experiência e cicatrizes nos órgãos internos. E não fosse as vertigens já tinha a carta de condução de vassouras. Esconjuros já me fizeram de todas as maneiras e feitios, todos sem efeito. De pragas rogadas faço o meu pequeno-almoço.
Aprendi a viver com bruxas e no terror eminente da presença dos mortos-vivos. (É certo que para isso contribuíram os mandatos do Professor Cavaco Silva.) Agora se me faltando o bruxedo, até sinto saudades. Do Professor, nenhumas!
Mas chateia-me esta cena do dia delas, das bruxas. Chateia-me a violência da invasão americana. Às tantas e afinal, andamos todos mascarados de gringos a brincar às bruxas por dois ou três dias… quando bruxas e bruxos somos o ano inteiro.
Ta e qual elites financeiras latrino-americanas, há quem ache que se nos mascararmos de gringos e se fizermos o que eles fazem, nos transformamos neles. Mas não.
Por mais idiotas que nos forcemos todos para ser… temos todo este mar aqui à frente e o vento salgado que lava as ideias de trampa que tratam nos importar para nos servirem requentadas.
Por isso vos digo: querem celebrar as bruxas? Convidem a vossa bruxa (ou bruxo) favorito para jantar e procurem aproveitar a lua em crescente para fazerem todo o tipo de doces travessuras.
Deixem as crianças com os avós que aprendem mais numa noite de conversa com os mais velhos do que nos meses de copypaste onde os ensinam a ser uma coisa que não são.
Beijinhos e abraços às bruxas e bruxos.
Cuidado com a água benta e com os inquisidores.
No Rajastão com Lorca
No Rajastão com os herdeiros do Lorca. Em finais de 2003 inícios de 2004 voei para o norte da Índia. Era a terceira vez que pisava o chão da Mãe Índia que é assim que lhe chamam essa imensa multidão de indianos.
Cheguei tarde a meio da noite. Tinha feito umas quinhentas escalas para poupar uns trocos o que fez aterrar em Nova Déli pelas quatro da manhã.
As minhas anteriores experiências na Índia, tinham ensinado que Déli é uma cidade maravilhosa para chegar e para partir...mas não devemos ficar por lá muito mais tempo porque a cidade já está cheia com os 20 milhões de habitantes. Por isso, segui directo do aeroporto para a estação de comboios. A ideia era comprar bilhetes para o norte, no próximo comboio que saísse.
Acontece que a bilheteira da estação estava fechada mas estavam abertas as quinhentas mil micro agências de viagem a funcionarem 24 horas por dia à volta da estação.
Entrei numa dessas casas que eram agência de viagens, loja de fotocópias, ciber café, pensão, armazém e outras valências inarráveis.
Não dormia há uns dois dias...tinha fome sono e frio, mas também tinha a noção que quanto mais conseguisse centralizar as compras dos bilhetes de comboio maior seria o desconto... A pessoa que ia comigo, aterrou em cima da mochila e adormeceu no chão. Eu fiquei sentado numa mesa baixinha com o gajo da agência a negociar e planificar os preços dos bilhetes de comboios para três semanas de viagens. Lugares, percursos, horários, paragens e preços.
Pelas dez da manhã saímos da agência no caos de Déli num Tata, um carro indiano que fazia lembrar o antigo Renault 5 mas todo em plástico. Por menos rúpias do que as viagens de comboio, aluguei o carro mais o seguro.
Conduzir à esquerda no caos de Déli e sair da cidade tiraram me completamente o sono.
No carro havia um rádio com leitor de cassetes. No leitor uma cassete. E na cassete estavam os Aguaviva.
Rodamos quase quatro mil quilómetros entre o Rajastão e os estados do Norte da Índia. E a banda sonora foi sempre a mesma.
Por uma estranha alquimia de memórias, associo o Rajastão aos aguaviva. Quando ouço esta música particularmente, fecho os olhos e cheira me a caril.
picnic
Estava sol e ela tricotava com os dedos. Foi dos primeiros dias quentes do ano. Práí Abril ou Maio.
As crianças que já não são crianças, tambem estavam: o mais velho, dormia e a mais nova, na pré-adolescência, exagerava num recem-adquirido pânico das formigas. Os cães que ainda era só a cadela, delirava com os cheiros da mata e com todo aquele espaço para correr e saltar.
Foi num sábado. Saí do trabalho à uma, passei por casa e apanhei todos. Tínhamos combinado ir almoçar no mato.
Levamos farnel e comemos sentados na manta. Depois tirei fotografias, apanhei pinhas e brinquei com a cadela.
Tinha acordado cedo e deixei-me adormecer. Ao sol. Ignorando as moscas, os protestos por causa das formigas e os apelos da cadela para passear.
Acordaram-me para ir para casa nem meia hora depois de me ter deitado. Mesmo no melhor do sono.
Porque está muito calor, diziam.
Levantei-me e disse profético:
-- Pois ainda vão sentir muito, a falta deste calorzinho!
Passaram meia dúzia de meses.
Agora chegou Dezembro a dar-me razão.
Eu bem avisei.
conversa do santeiro
Há nove anos atrás estava em Cuba no Festival Internacional de Cinema de Havana.
Foram uns dias intensos.
Como fui convidado a participar no Festival e fiquei mais uns dias, quando me pediram para dar uma ajuda na produção de um documentário disse logo que sim.
Era uma coisa para a Cubavision e fomos filmar para Habana Vieja. O tema era um projecto social de apoio a crianças e jovens desenvolvido num terreiro de Santeria. Os técnicos andavam a por as luzes e a testar o som e eu fiquei a falar com o Santeiro. Ao contrário do que esperava, não era negro, velho e de sotaque serrado, mas antes louro de olhos azuis e de sotaque claro como a sua pele.
Ficamos a falar das dez da manhã às três da tarde. Álvaro, que além de babalaorixa é também pediatra falava de tudo incluindo política e Orixás.
Antes de sair e do último trago profetizou:
-- companheiro vais conhecer uma filha de Oxum que vai mudar a tua vida. Dentro de seis meses estão a viver juntos....
Na altura estava solteiro e como se diz agora tinha saído há meses de um relacionamento tóxico. Não andava à procura de nenhuma Princesa para o Castelo...
Sai do terreiro meio cambaleando e contente com a vida. Fui almoçar com amigos.
Foi depois desse almoço que tiraram a fotografia que publico.
Estive em Cuba mais umas semanas. A trabalhar e a "gorachar". Em Portugal tinha os filhos, família e projecto profissional.
Conheci muitas pessoas interessantes.
Durante o dia ia resolvendo, pela internet incipiente, questões em Portugal. À noite vivia La Habana.
Reconheci em decotes vários a medalha da Caridad del Cobre que sendo a padroeira de Cuba é a marca de Oxum.
Estive atento aos encontros.
Nada com perspectivas de continuidade.
Voltei a Portugal.
À chegada, tal como tinha combinado enquanto estava em Cuba, vou encontrar-me com alguém, que não conhecia, para lhe entregar uns documentos que estavam em falta. Era gira. (É gira!) Sentamos-nos à mesa de um café e a conversa corre interessante. Num saco de pano que trazia reluzia uma linda Oxum estampada.
Perguntei:
-- és de Oxum?
Ainda estamos juntos. A conversa no Santeiro foi há precisamente nove anos.
A tampa do Mike
O dia em que o Mike Jagger levou uma tampa da Marianne Faithfull.
A foto regista esse momento histórico. Foi num daqueles eventos sociais do Sul de França na segunda metade da decada de 60 do seculo passado.
O Mike Jagger na altura, era (e ainda é um bocado) um sex simbol masculino. A Marianne Faithfull era ainda uma desconhecida e apareceu como uma das várias apaixonadas com quem o Mike Jagger constumava sair. Ele, Mike, o convidado, levou-a a ela, Marianne, como acompanhante.
Mas acontece que os corações das donzelas são mais imprevisiveis que o vento sudoeste que às vezes traz chuva outras vezes traz charrocos.
O Mike que chegou vitorioso com uma loura lindissima exibida debaixo do braço como conquista, minutos depois, era apenas um timido miudo ingles, com a pele demasiado branca que não sabia como comportar-se perante a corte da cote de azur. A loura fugiu-lhe da mão porque tinha vontade própria e com ela levou a sua coroa de estrela.
A fotografia está ai a provar o que digo. Até causa um certo dó.
A loura inglesa, ao centro, rendida ao charme latino do actor frances, à esquerda. Abençoados pela taça dos girasois, que parece saída do quadro do Van Gogh. No chão, entre as pernas, penas caidas do vestido da diva em botão, a prometerem nudez. À direita o menino triste fuma e baixa os olhos derrotado.
Claro que o charme do Alan Delon terá tambem contribuido para o virar da tortilha vermelha que é o coração de cada mulher.
De qualquer maneira, a foto ilustra bem, que mesmo aqueles que se acham a ultima bolacha do pacote e simultaneamente o rei da cocada preta, mesmo esses, estão sujeitos à inevitabilidade da perda. Por isso, amigos e conhecidos, quando se acharem invenciveis, aí sim, devem começar a ter cuidado, porque é nesse momento que começa a virar a tombola dos dias e as pedras começam a rolar.
Porque as pedras tambem rolam. Assim como os olhos castos das esposas entediadas. E como as cabeças dos reis.
Natureza em Execsso
Estava muito frio.
Subimos na direcção dos Lagos da Covadonga, naquela estrada estreitinha e inclinada que causa vertigens a quem é de sentir vertigens.
Largamos o carro e continuamos a pé pela montanha.
Um bocado, devagar, sem exageros.
Depois vimos o Lago.
Entre nós e o lago, um enorme prado verde.
O céu estava enevoado naquele cinzento metálico a ameaçar neve mas quando chegamos ao prado o sol abriu tornando ainda mais apetecível o caminho. Seguimos a direito aquela extensão do único quilometro plano do passeio.
O prado, a meio fez-se um lodaçal e de um momento para o outro ficamos enterrados em lama gelada até às canelas.
Voltar para trás ou avançar.
Quando mais andávamos na direcção do lago, mais fundo o lamaçal ia ficando. Com lama gelado pelos joelhos sugeriste, suavemente e emocionada, que se calhar era melhor voltarmos para trás que a lama, a agua e o gelo nas pernas e pés te eram desconfortáveis.... Também disseste qualquer coisa como não tínhamos condições de lavar roupa e estávamos ja cheios de lama....
Como não sou de conflitos, acedi e retiramos.
Molhados e com fome, caminhamos até ao supé do monte atrás do qual tínhamos deixado o carro.
Subimos outra vez.
La em cima, sentamos-nos virados para aquela mancha clara no cinzento do céu que devia ser o sol.
Tirei o farnel da mochila e dispus a mesa em cima de uma pedra. Atrás de nós uma murada construída não sei por quem nem para que efeito, protegia do vento.
comemos tâmaras, amêndoas, passas de figos, triangulos de queijo e chouriço que cortei com a navalha. Bebemos chá bem quente que tirei de um termo agasalhado dentro de várias meias de lã (ainda estão para inventar melhor forma de proteger os termos!!).
Depois de limpar a navalha, fui fazer xixi e tirei-te a fotografia.
Apesar das botas não deixarem entrar água, as calças entre os joelhos e os tornozelos estavam ensopadas... e agora que tínhamos parado fazia realmente frio...
Quando voltei a sentar-me ao teu lado, entre o zangada e o cansada, num tom que não admitia mais conversa, disseste:
-- Helder, já chega de Mãe Natureza, está bem?!?!?
Mobuto
A tasca deve continuar sebosa e com serradura no chão. Já passaram mais de vinte anos.
Estava calor lá fora e na sombra fresca do interior sentei-me a beber cerveja e pensar na vida.
Um cota puxou da cadeira e sentou-se na minha mesa. Era um homem enorme e velho.
-- Tu sabe quem é o Mobuto Sese Seko? Eu conhece ele bem. Se queres que lhe conte a verdade mesmo, põe uma cerveja.
O velho continuava sério e calado debaixo do olhar do patrão, que em silencio dizia: “este-ja-enganou-outro”...
-- Eu não sou o Mobutu.. Mais sou o pai de todos os filhos do presidente Mobuto. (pausa e soluço cambaleado para a frente) comé que pode? Pode porque pode e é verdade. Eu vai lhe contar só.
Pedi mais duas cervejas:
-- Dá mais uma para mim e outra aqui para este mais-velho!!
A cerveja chegou à mesa e em silencio pegamos nas garrafas geladas. Quando olhei o velho pela primeira vez pareceu-me sujo e esfomeado. Estava errado... afinal o homem tinha era sede. Percebi isso pela forma como emborcou a média inteira num só golo.
Também eu emborquei a minha cerveja. Grogue do calor das duas da tarde apesar de já passarem das oito da noite, disparei:
--- Então tu és o soba Mobuto? muito prazer, eu sou o Patrice Lumumba disfarçado de branco e ali o cantanhó atrás do balcão é o Techombé disfarçado de taberneiro.
O cota indignou-se:
--- O quê?? Você não me acreditas? Pois podes acreditar mesmo. O pai dos filhos do presidente Mobuto é este mesmo pai do meus filhos que é eu mesmo na minha pessoa!!!
Perfilou-se e cresceu.
-- Feitinhos todo por mim Diamantino Proença da Purificação, nome de casa Giga. Filho quase preto de pai quase branco em mãe preta. Avô português merceeiro e mãe preta terceira esposa. Nascido em Lisala.
--Tu sabe onde é Lisala?
Eu não sabia onde era Lisala, por isso continuei calado.
-- É a terra mesmo do presidente Mobuto. Terra velha do Congo. Sou mais novo que o Mobotu sete anos e conheço ele desde que conheço eu.
Mandei vir mais duas. Apaziguado o mais-velho, continuou a falar.
-- Então?? Tu não sabe, mas eu vai lhe dizer: o Mobuto tem doença na força que levanta o pau de pilão. Falta força nele para cobrir mulher e por isso não pode faz filhos. É!
A pausa deu dramatismo à conversa e foi aproveitada para beber.
-- Ele com trinta anos já força quase nenhuma não tinha mesmo. Quando percebeu doença que tinha, o curandeiro disse nele que não tinha cura. É coisa de herança de antepassados que só termina quando o corpo morre. E disse nele que se Mobutu quiser filho vai ter procurar quem conhece que fode forte. Só assim podia para engravidar as esposa dele...
-- Como o Mobuto conhecia eu desde que nasci e sabe que eu desde canuquinho tem saúde e força muita para fudê mandou chamar eu. Eu foi lá no palácio e nós fez trabalho com o bruxo.
-- Eu vai dizer-te que tu és sério e não goza: eu e Mobuto fizemos segredo juramento com terra dos mortos e sangue de nós mais sangue de dois touro. Teve de jurar que não falava nem eu nem ele pra ninguém mesmo. Eu só fala porque ele quebrou juramento. Depois do trabalho do curandeiro fiquei viver no palácio dele. Tinha falta de mais nada.
-- E agora ficaste bêbado e sem tesão e o gajo pôs-te a andar... – cortou o taberneiro que era caboverdiano, tinha andado embarcado e quase que não acreditava em feitiços.
-- Negativo Camarada. Negativo. O Presidente Mobutu só rompeu o trato porque arranjou amante do Catanga com mamas assim de grandes e cheia de maldade dentro do peito. E também é bruxa e fez feitiço nele.
O silencio voltou a cair dentro do tasco. Na rua passavam camiões levantando poeira. Ficamos calados a ouvir as moscas a fritar na resistência azul durante uns segundos. Pedi mais duas.
-- Eu conta tudo porque presidente desfez a jura antes de eu! Eu sempre cobri as duas esposa e as três amantes dele com força mas sem abusar. Todos os anos enchia elas cinco com filhos feito por eu. Filho homem crescido tem 18 e mulher crescida tem 12. Não conta os que morreram pequeno nem os netos porque é muitos.
Então presidente Mobutu arranjou amante para fazer politica. Arranjou amante parente de falecido Tchombén e tambem queria que eu engravidasse ela para reforçar a aliança com os do Catanga. Só que a mulher que arranjaram para ele tinha doença dentro do barriga e criança que eu punha lá dentro não agarrava!!! Então presidente levou mulher nos curandeiro é nada. Levou nos médicos brancos e nada. Levou na magia da Nigéria e nada. Todos disseram-lhe o mesmo: que a doença é na barriga do mulher sem cura. Então eu disse nele: Querido presidente, meu mais velho, porque você não pega nessa mulher que barriga não cresce e faz desaparecer ela no tanque que ferve sem fogo? (É ácido pá! Desfaz tudo assim de repente a ferver)
O presidente não gostou que eu falasse no tanque do acido e mandou os segurança baterem em eu. E bateram mesmo. Bateram muito. Bateram tanto que já era desperdício. Como Giga não gosta de apanhar vim embora nesse dia e tenho andado sempre sempre só neste mundo.
O taberneiro, ja também ele interessado na conversa, perguntou:
-- Olhe lá Giga, depois o Mobutu não mandou dar-te caça e apanhar?
-- Não porque ele sabe que fica doente e morre se eu fica doente ou morre. Nós dois está ligado por magia muito forte. Magia da terra. Quando os segurança baterem neu Mobutu caiu na cama três dias que desconseguia de se mexer.
Estava na minha hora, pedi mais duas , meti uns trocos nas mãos do velho e saí para a rua, para o calor e para a minha vida.
Durante um tempo não me lembrei mais do pai dos filhos do Mobuto.
Semanas mais tarde, ao cair da noite, estava reunida uma multidão à porta da tasca do cabo-verdiano. Um camião parado e um corpo imóvel no chão. Assim deitado no chão ainda parecia maior. O motorista do camião disse que não teve hipóteses de parar. Os populares concordaram. O Giga ia completamente bêbado, diziam, nem sentiu a morte chegar.
Bebi uma na tasca, lamentei o cota e fui para casa sem pensar mais no assunto.
Na manhã seguinte, a RDP Africa anunciava que o Mobutu Sese Seko tinha morrido ao início da noite anterior.
Nepal
Está por estes dias a fazer dezoito anos que conheci o Nepal.
Cheguei sujo e catingoso. Foram três dias e duas noites dentro de uma camionete terceiromundista. No mapa da Índia a estrada que separa Varanasi na India de Katmandu no Nepal é um cabelinho curto encaracolado. São segundo o mapa 501km.
Lembro me de entrar no autocarro na estação da rodoviária em Varanasi lavadinho de fresco e bem alimentado. Banhinho quente tomado e pequeno almoço robusto. Levava um farnel substancial para aguentar as quarenta e oito horas previstas para a viagem. Bananas, pão, duas garrafas de dois litro de água, chocolates bouty, duas latas de sardinhas e quatro maços de Camel que ainda sobravam do pacote de dez que há uma semana atrás tinha comprado na free shop em Delhi.
Os primeiros 100 km foram tranquilos. Tranquilos...para estradas da Índia, claro. Com elefantes, vacas sagradas, mercados e paragens em todas as tascas onde o motorista tinha comissão. Entravam e saíam passageiros e mercadorias. A mochila debaixo do banco não incomodava e fui dormitando ao longo do dia.
A camionete ia cheia. Indianos em viagem de turismo ao Nepal, emigrantes nepaleses de regresso, três australianas ruidosas, quatro japoneses silenciosos e este vosso amigo.
A noite caiu e a viagem prossegue. Cada vez mais frio. Tirei a camisola de lã da Nazaré de dentro da mochila. No ano 2000 os polares eram raros.
Começamos a subir.
Esses nas curvas apertadas.
Na manhã do segundo dia já íamos em alta montanha. Os Himalaias.
Um frio do caraças e mais curvas.
Sempre a subir.
Numa curva da montanha, a fronteira.
Mais umas horas de burocracia e vistos e revistas.
Seguimos viagem.
As vezes, quando nos cruzavamos com outro autocarro, porque a estrada é estreita e o precipício ao lado é assustador, saiamos todos do autocarro, para os motoristas com os carros vazios fazerem as manobras necessárias para passarem os dois... Depois voltavamos todos a entrar e seguiamos viagem.
Cada vez mais alto e cada vez mais frio.
Vesti toda a roupa que levava em camadas sobrepostas e embrulhei-me no saco cama.
Houve alguém que me convenceu a levar pouca roupa porque no Nepal a roupa quente é muito barata.
Mais uma noite e mais um dia. Mais frio.
Três dias e duas noites depois de ter saído cheguei finalmente a Katmandu.
Ao final da tarde comprei um casaco bem quente de inverno. Paguei tutimeia. Depois, procurei uma pensão barata em Freakstreet. (Onde havia de ser?!)
Larguei a mochila e pedi para tomar um banho quente. Mais caro, mas as circunstâncias justificavam o luxo.
Lavado e renascido, desci para comer numa salinha de teto baixo e forrada a peles aquecida por uma lareira. Bem aquecida. Tirei a camisola de lã e fiquei com uma t-shirt branca onde tinha uma foice é um martelo.
O empregado ficou a olhar para mim e foi chamar o patrão.
Chegou o dono em pessoa e num inglês de Inglaterra começou a fazer me perguntas sobre a t shirt... E sobre a foice e o martelo.
Claro que lhe espetei logo com o cartão do PCP com as cotas em dia.
O ambiente aliviou mas percebi que estava num país onde podia ser preso por ser comunista. E que o dono da pensão podia ter problemas se a polícia política visse símbolos de comunismo dentro do seu estabelecimento.
Foram dias muito intensos e aprendi muito sobre o Nepal. A mesma história de todas ditaduras militares. Aqui com um rei fantoche, que já não era rei mas que governava, mais a polícia política, mais as prisões arbitrárias, mais as torturas, as mortes e os desaparecidos. A resistência dos intelectuais, as organizações de estudantes e operários e a guerrilha na montanha.
Conheci vários simpatizantes comunistas. Depois de muitas noites de conversa com o dono da pensão, percebi que era um professor de liceu e que estava proibido de dar aulas pelas suas opções políticas. Tinha estado preso. Deixei-lhe a t shirt do PCP. Acho que de uma campanha de fundos para obras num centro de trabalho.
Voltei à Europa e à Tuga.
De longe fui acompanhando a vida política no Nepal.
Vivi remotamente a chegada da democracia e as primeiras eleições.
Agora fiquei especialmente feliz depois da vitória dos camaradas.
Sinto que está na hora de voltar a subir lá acima a Katmandu para ir buscar uma t shirt.
O almirante negro
Brasil 1910. A escravatura tinha sido abolida oficialmente há 22 anos mas a condição das pessoas não se muda por decreto. Apesar da modernidade da lei a sociedade continuava a ser completamente escravatura. Vivências de um Brasil de elites racistas e reaccionárias, uma realidade completamente diferente da actual....
A Marinha de Guerra do Brasil, com todos os pergaminhos e a pompa, foi uma das instituições que mais resistiu ao final do esclavagismo. O uso do açoite como medida disciplinar continuou a ser aplicado aos marinheiros mesmo depois de já entrado o século XX, acontece que a esmagadora maioria dos marinheiros eram negros e do castigo disciplinar previsto em regulamento, fazia-se espectáculo publico abordo dos navios. Tínhamos pois em pleno século XX, oficiais brancos, a mandar chicotear marinheiros negros. A acrescentar à novela da Escreva Isaura é preciso dizer que geralmente este castigo era aplicado por outros marinheiros também eles negros por determinação dos oficiais que eram exclusivamente brancos. O pelourinho continuava a existir nos navios da marinha do Brasil.
Quando algum marinheiro era condenado a açoites os outros marujos eram obrigados por regulamento a assistir à punição.
Em 1910 é a viagem inaugural do navio novo, o Minas Gerais. O Ministério da Marinha decide que devem ir mostrar o poderio naval do Brasil a Inglaterra. É sabido que quando o brasileiro que se acha elite, só de saber que vai na Europa, cresce mais três centímetros em racismo e arrogância. (Vá agora acusem-me de xenofobia a ver se me ralo!!) Aos oficiais, não cabia uma palha no cu de tão inchados que andavam na sua fardinha branca engomada por mãos negras.
Acontece que nessa mesma viagem inaugural, com tanta pompa e circunstancia, os marinheiros não quiseram ficar à porta do progresso e reivindicaram melhores condições de trabalho. Onde já se viu, uma navio todo equipado com o mais moderno em tecnologia da época, com todas as condições e comodidades para o oficalato, e onde os marinheiros, afinal essenciais para o seu funcionamento daquela maquina gigante, continuavam condenados a um porão de galé! Claro que não se pode isolar estas reivindicações do movimento pela melhoria das condições de trabalho levado a cabo pelos marinheiros britânicos entre 1903 e 1906. Isto para não falar na insurreição dos russos embarcados no couraçado Potemkin, em 1905.
Calhou em sorte ao um marinheiro, de nome Marcelino ir falar com o comandante daquele unidade flutuante para lhe apresentar as reivindicações dos outros marinheiros.
Como resposta, foi feita uma provocação num corredor, e por pretensamente ter participado numa briga, no dia 20 de Novembro de 1910 abordo do Minas Gerais, o Marinheiro Marcelino recebeu 250 chibatadas. Em frente a toda a tripulação, formada propositada e obrigatoriamente no convés. Parece que o homem desmaiou, mas os açoites continuaram. Era um recado para todos os que reivindicavam.
Os marinheiros revoltaram-se. A liderar o movimento, emergiu o Marinheiro João Cândido, que organizou os camaradas de armas em comités e se propuseram a fazer uma greve até serem abolidos definitivamente todos os castigos físicos. Os oficias responderam com ameaças e mais repressão. João Cândido tomou o navio.
Nos outros navios da esquadra a marujada também aderiu à revota.
O cabo Gregório liderava no São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.
A revolta alastrou na classe esclarecida dos marinheiros.
Comandado pelo João Cândido, os marinheiros, apoderam-se dos principais navios da marinha de guerra do Brasil
Cândido que ficou conhecido como o Almirante Negro, aproximou a sua esquadra de navios de guerra do Rio de Janeiro, entrou na baía de Guanabara com o Minas Gerais e mandou uma mensagem ao presidente da república exigindo a extinção do uso da chibata.
A capital de então era no Rio, o governo de brancos borrou-se de medo. Negros e ainda por cima vermelhos com armas na mão...A classe politica nas suas rivalidades das nomeações, uniu-se no cagaço. O governo e a oposição parlamentar tornaram-se momentaneamente solidários. Os jornalistas de serviço, obedientes lançaram uma campanha de terror. Fizeram correr todo o tipo de boatos sobre os revoltosos e o pânico espalhou-se pela população do Rio. Os negros no navio iam matar todos os brancos, violar todas as mulheres e queimar todas as igrejas...
Para dar mais colorido aos relatos, os navios amotinados, tinha hasteado bandeiras vermelhas e nos jornais cariocas falava-se na “Comuna do Almirante Negro”.
Neste impasse o governo negociou com os marinheiros e proibiu oficialmente o uso da chibata nos navios de guerra.
Foi negociada também uma rendição com amnistia para todos os amotinados.
Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos seus navios. A revolta havia durado cinco dias e terminava. Aparentemente vitoriosa. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.
No entanto, a amnistia fora uma farsa para desarmá-los.
Assim que os marinheiros depõem as armas são presos imediatamente
A guarnição da ilha das Cobras que também se havia se sublevado é atacada. Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional, o que não é aceite. Segue-se uma verdadeira chacina. A ilha é bombardeada até ser arrasada.
Foram centenas os mortos e durante semanas deram à costa das praias corpos de marinheiros em decomposição com marcas de tortura.
Estava restaurada a honra da Marinha.
O presidente Hermes da Fonseca, aproveitou a ocasião e decretou o estado de sítio, para poder com a policia politica sufocar os movimentos democráticos que se organizavam.
João Cândido, o marinheiro eleito almirante, sobreviveu à chacina e foi encerrado numa masmorra da ilha das Cobras. Dos 18 reclusos da sua cela 16 morreram a maior parte, fuzilados sem julgamento.
João Cândido enlouqueceu, e acabou por ser internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e demente, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Em 1943, com sessenta e três anos, é-lhe concedida uma amnistia que lhe permite “ir morrer a casa”.
Assim que cruza as portas do presídio passa imediatamente à clandestinidade.
O Almirante só vem a morrer em 1969, com 89 anos.
Os últimos anos da sua vida foi peixeiro no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente e sem reforma.
Foi Ogan no Candomblé e até aos últimos dias, não deixou de cantar e tocar para os Orixas. Vivia com a sua família carnal e de santo, perto do mercado. Gostava de se sentar com os amigos para falarem de politica, de mar, de peixe e de admirar os rabos que passam. Gostava tomar cachaça e fazer samba em caixa de fósforos. Fizeram canções em sua homenagem. Gostava de falar com pessoas e de contar historias, sobretudo a historia do medo escarrado na cara dos oficiais.
Campismo
Iamos por meados de um março seco e frio. Saímos do barreiro depois de almoço. Era um sábado. Material, cadela e criança arrumada no carro. O mais velho não foi por alguma razão dos seus compromissos. O Dylan a cantar e os quilometros a escorrerem debaixo das rodas. Chegamos à Serra ao final da tarde. Escolhemos um sitio fixe junto a uma lagoa com arvores num terreno plano. Afastado da estrada de alcatrão e numa aberta entre os pinheiros.
Montamos a tenda já quase de noite. As meninas tiraram as coisas de dentro do carro e eu fui apanhar lenha com a cadela, essa sim, que parecia desfrutar tanto como eu do contacto com a natureza. Acendi já no escuro, um lume que fizesse o jantar e aquecesse a noite que se previa fria.
Noite cerrada jantamos à luz das lanternas. Peitinhos de frango temperados dentro do saco de plastico e grelhados nas brasas ali aos nossos pés. Café e chá feito na fogueira. Estrelas num mágnifico céu e frio. Depois tirei a fotografia que partilho.
-- Pai, não há televisão e não tenho luz para ler...
-- Amor, tá um bocado de frio...
-- Pai, se vier um lobo a Luna luta com ele?
-- Amor, a louça suja vaia atrair formigas e outros insectos.
-- Pai, quero ir fazer xixi, vou aonde?
-- Amor, já pensaste que romantico que é um quartinho quentinho num hotel ou numa pensão, mesmo baratinha?
-- Pai, podiamos ir para dentro do carro e eu dormia la atrás.
O proprio céu, contrariado, começou a ficar carregado de nuvens.
Eu ia falando e contando historias. Tentava entreter a dificil audiência. Falava sobre ursula menor e sobre as dimensões do universo, a distancia das estrelas e os cosmonautas. Sobre o encontro entre o Che e o Fidel na Cidade do Mexico. O conflito entre o nobel Cholokhov e o Stalin. A brilhante estratégia do heroico Ho Chi Min. O papel do Bougard no casablanca. A infancia do Charlie Chaplin. Anedotas velhas de elefantes e de cocó nas paredes. Nada parecia anima-las...
Estoicamente ignorei as primeiras gotas que cairam.
– Tá a chover! Vamos para dentro da tenda.
Disseram as duas em coro.
A cadela concordou e tambem se levantou.
Foram para dentro da tenda e eu fiquei a arrumar as coisas na mala do carro.
Quando cheguei ensopado à tenda, vesti o saco-cama e deitei-me. A cadela ficou num tapete abrigada pelo avançado.
A chuva aumentou o ritmo de batidas no tecido. Dormimos embalados pelo bater da chuva nos pinheiros.
Amanhaceu e continuou a chover. Torrentes.
Fui ao carro buscar coisas para o pequeno almoço, mas ao contrário do previsto e desejado, o ambiente não era de festa.
Fiz-lhes a vontade: viemos embora!
Quando se ama, é assim, fazemos sacrificios... uns fazem o sacrificio de ir, outros fazem o sacrificio de vir embora... a chuva simplesmente forçou o equilibrio da coisa!
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Animais nos restaurantes
Há muito que os animais são presença assidua nos restaurantes. Não se justifica tanta polemica.
Da sala de jantar à cozinha, da parte de trás do balcão à parte de dentro dos pratos, atrás das maquinas, nas gavetas dos talheres, no interior dos fornos, dentro dos frigorificos, no cotão do umbigo do proprietario ou atrás das orelhas da empregada, sentados em cadeiras ou deitados no chão...por todo o lado, dentro do restaurante estão os animais.
Há animais na ementa, nos pratos e travessas, sob a forma de bitoque ou assados no forno. Nas bifanas e nos ensopados há animais. Há animais na cozinha na forma latente de cadáver, desmanchados e já arrumadinhos dentro dos frigorificos e das arcas. Há animais escondidos, vivos de olhos espertos, pequeninos e com pelo cinzento e que correm depressa para se abrigarem atrás dos fogões. Há animais presistentes que evitam os venenos deixados estrategimante. Há animais que vivem no panico da chegada periódica e obrigatória do gajo do controlo de pragas. Há animais a abrigarem-se no calor das traseiras das maquinas de café, a por os ovinhos minusculos pretos e a comer tudo o que vai caíndo. Há o animal que se levanta antes do sol nascer para fazer as compras e trazer a comida que vai alimentar os outros animais. Há animais que contratam as pessoas que chegaram sem papeis, há animais que pagam com comida e a promessa de um contrato, há animais que deixam familias recem chegados ao trabalho-escravo, a dormir no chão dos restaurantes, em cima de umas mantas, como animais. Há homens e mulheres, tratados como animais, alojados nos armazens entre grades de refrietente e a alimentarem-se das sobras dos jantares. Há animais mortos a apodrecer entre o pó que se acumula em cima dos tetos falsos. Ha animais que vivem nas caxias de esgoto que esperam os despejos de comidas azedas para se alimentarem. Há animais a contar as notas depois fazer a caixa. Há visceras de animais dentro de uma panela ao lume. Há animais que chegam sedentos pela manha para beber bagaços entre os dedos tremulos antes de irem trabalhar como animais. Há animais voadores a fritar num quadro com lampadas florescentes azuis que se pendura por cima da porta. Há animais sebosos a passar a mão sapuda no rabo da adolescente que veio trabalhar umas horas a servir as mesas. Há animais a boiar dentro da caixa de metal por baixo da grelha da maquina de tirar imperiais. Há animais minusculos a fazer carreiro entre um buraco na parede e as cascas de ovos e outros restos de comida dentro dos baldes homologados para residuos alimentares. Há animais encostados ao balcao a beber café e tomar copos de agua, animais que olham gulosos para os bolos debaixo do vidro gasto do balcão. Há animais que passam na rua olhando de relance a ementa escrita a marcador numa toalha de papel com preços demasiados longincuos para depois do dia dez. São estes os animais que querem entrar e não podem. Há animais a viverem nos cabelos (publicos e privados) da senhora que se sentou na mesa a fazer olhinhos ao empregado ele próprio um belo exemplar animal. Há animais que chegam engravatados a exibir cartões oficias e a fazer vistorias. Há animais a comer sentados à espera que outro animal lhe pague o almoço. Há animais a fugir de fininho. Há o fucinho de animail raivoso do iva a devorar tudo. Há animais a pedir a conta e pasme-se, há animais, a pagar por tudo!!!
São estas as razões porque te digo, meu afectusoso animal de estimação, que não te espantes com os animais nos restaurantes, porque não são novidade. Aliás, fica já aqui sabendo que quase não há novidades. A polemica dos animais no restaurantes serve apenas para entreter os borregos. São estorias que te contam para te manter assim mansinho e para que continues a viver alheado do sarrabulho que vão cozinhando com o sangue que pinga das tuas oito horas de doações diárias!
A branca
Ela saiu de casa porque ele abusava da branca. Muitos riscos para uma relação que sempre desejou estável. Saiu de casa na esperança dele mudar de vida. Deixou no apartamento a vontade de regressar numa mala com roupa de verão, sonhos desfeitos e a memória de cinco anos vividos em cima da linha branca que divide a excitação da ansiedade.
Ontem ao final da tarde falou com ele.
Ele voltou a dizer que ia parar. Ontem nem saiu a noite.
Ela teve um jantar com amigas. Eram quatro senhoras entre os trinta e os quarenta e despejaram quatro garrafas de Mateus Rosé. Voltou para casa passando à porta dele.
Estava a nevar e ele estava em casa como prometido: tinha o carro cá em baixo.
Foi por isso que ela, apaixonada e bebeda lhe escreveu esta mensagem inspirada pelo Mateus Rosé e pelo cheiro que alguns amores deixam no ar.
Mulheres
Nada é por acaso. Como não é por acaso que “justiça”, “resistencia” e “luta” são todas palavras nascidas meninas com nomes de mulheres. Porque as mulheres são, como nunca deixaram, nem deixarão de o ser, o corpo da palavra LIBERDADE, que é, a palavra mais linda que os labios tocam.
Os homens são apenas os meninos que as mulheres têm de carregar. As mulheres carregam os homens na barriga por nove meses e, depois de paridos (alguns mal paridos inclusive), carregam-nos pela vida toda. As mulheres têm de nos ensinar tudo. As mulheres têm de nos ensinar como se aquece a sopa, onde estão os lençóis, onde mora o clitóris, como funciona a máquina de lavar roupa, como é ficar em silencio de mãos dadas, como se dobra uma camisa, como se beija na boca sem pressa, como se preenche o impresso, como se abraçam os que sofrem, como se acalma uma dor…
Até a comer são as mulheres que ensinam os homens, metendo o bico da mama na boca do bebé chorão, coitados dos homens!
Serão sempre as mulheres a carregar nas suas malas ao ombro a carga do valores que sustentam o melhor da humanidade. Ser mulher, é além de ser professora universal de todas as disciplinas, ser também a carregadora de todas as coisas misteriosas, uteis e inuteis. Entre escovas de cabelo, analgésicos fora do prazo, pensos rapidos e dos que se fazem esperar, as fotografias dos filhos e dos sobrinhos e de outras crianças da vizinhança, amostras de perfume, uma parte partida de um batom, lenços de papel, um porta-moedas quase sempre vazio, as chaves de uma casa onde não vai há mil anos, a carteira com os documentos, os folhetos de promoções do hipermercado, a conta da luz que tem de ser paga e todos os sonhos desfeitos de quem nasceu princesa num castelo onde mandam os reis e os moços de estrebaria. Entre tudo isso, trazem tambem nas malas ao ombro misturados entre os lenços de linho, remotos e herdados, bordados à mão com ternura, toda a força e resistencia necessaria para viver os dias, as semanas, os meses e os anos. Porque ser mulher é ser a guardiã do segredo que empurra para a frente a humanidade.
Essa mesma humanidade bastarda, feita de mais mulheres que homens, mas que eles gostam de chamar por O Homem.
Isso de ser mulher é ter nacisdo com a capacidade de ser mãe do mundo. Ser mãe de um mundo que os homens acham que lhes pertence. Um mundo onde as mulheres ganham menos trabalhando mais horas. Um mundo tão injusto, em que os homens são valorizados pelo número de mulheres com quem fodem (incluindo as que comem mal comidas) e as mulheres são desvalorizadas pela mesmissima razão. Precisamente nesse mundo de guerras justas e injustas, onde vivemos enquanto humanidade. Uma humanidade desesperada por colinho.
Porque os homens tambem não sabem pedir colo... Por isso inventam, fabricam, vendem, cobram, emprestam e roubam coisas que lhe compensem a falta do aconchego de uma mae quente e segura.
Cada mulher traz dentro de si toda a humanidade, por isso o óvulo é mil vezes maior que o espermatozóide. Porque cada mulher traz em si todos os sentimentos e cores do mundo. Por isso, o mundo das mulheres muda com um telefonema, uma música que se ouve por acaso na rua ou com a memória de um perfume. O mundo das mulheres muda em função de um sonho bom que se teve na noite pouco dormida e que se quer construir como futuro. É por isso que as mulheres se juntam para lutar com a mesma certeza com que cozinham para a família. É por isso as mulheres saem de casa antes do sol nascer para colocar comida na mesa com a mesma determinação que saem para ir buscar o futuro.
Ser mulher é ser mãe do futuro. Os homens esperam o futuro que as mulheres trazem no bucho e na alma.
Porque todas mulheres estão geneticamente preparadas para a partilha e pensam naturalmente em coletivo. Uma mulher sabe por instinto fazer os milagres de crescimento económico tal como sabe divir a galinha assada em tantos pedaços como as bocas sentadas à mesa.
Alguns homens dizem que o lugar da mulher é ao lado do homem. Mentira. Toda as mulheres sabem que os homens se dispersam. O homem precisa de ser conduzido. E como todos os homens são apenas meninos grandes, só vão em frente se forem levados pela mão, mas convencidos que são eles quem decide por onde se vai.
Menstruação masculina
Num destes fins-de-semana, o ultimo antes da chuva, enquanto servíamos a Causa, dois camaradas e amigos conversávamos.
Falávamos sobre as nossas mulheres. De como recorrentemente eramos vitimas inocentes dos transtornos pré-menstruais, menstruais e pós menstruais. Falávamos de como sofríamos com as variações de humor a eles associados. Falávamos desses seres misteriosos e mágicos que são as mulheres, capazes de discutir e gritar como se o mundo fosse acabar porque o prato não ficou arrumado à esquadria dentro armário e no momento seguinte estão a chorar a baba e ranho porque o cãozinho do anúncio do papel higiênico tropeça quando corre.
Não é nada fácil e nós temos que nos aguentar.
Temos que ser compreensivos e racionais. É preciso sermos seguros e sensíveis. Avisar quando se vai chegar tarde, mas se ela estiver a dormir não podemos acorda-la com um telefonema para dizer o obvio que é que não estamos. Ser conciliador mas não se lhes pode dar razão para acabar com a discussão que elas não gostam. Ter calma para as ouvir e entender que depois de falarem elas não estão dispostas a continuar a discussão. Ser capaz de pregar um prego a direito sem desfazer o estuque, desmontar um esquentador e voltar a montar tudo outra vez em dez minutos porque elas precisam de tomar banho, carregar uma comoda de mogno da bisavó 26 vezes pelo quatro porque fica melhor noutro sitio, montar uma cadeira tipo puzzle com uma chavezinha em L e ter sempre presente e entender que não há essa coisa de tarefas de homens e tarefas de mulheres. Escolher de livre vontade com um sorriso nos lábios ficar sentado num domingo à tarde em frente a televisão a ver uma comédia romântica em vez de ir à pesca, de ir andar de mota, de ir jogar a bola, ou de ir para a praia, ou fazer outra coisa qualquer que seja fixe! Ser capaz de as defender se algum gajo lhes manda uma boca mais feia no trânsito, mas estando absolutamente proibidos de parar o carro, tirar o cinto e abrir a porta, porque corremos risco de se juntarem os dois para nos dar porrada… ela e o gajo que mandou a boca! Temos de ser especialistas e consultores de moda e capazes de dizer que uma determinada roupa lhes fica bem, mas ai de nós se comentarmos que a sua amiga a ou b tá a ficar com um belo rabo, ou o decote da vizinha mostra a curva bem definida da mama.
Pois … é complicado. Ainda por cima a menstruação afeta tudo. É a semana do antes, é a semana em que sim e é a semana a seguir… Num mês, só ficamos uma semanita para estar na boa… mas como as probabilidades de ter discutido nas semanas anteriores são elevadas… a coisa fica difícil.
Ambos concordamos e cumprimos, um minuto de silêncio em homenagem a todos os homens vitima das variações hormonais das mulheres.
Chegamos então à conclusão que, se fossemos nós a estar menstruados as coisas seriam ainda mais complicadas… Se três ou quatro dias por mês, e sangrássemos do dito, se nos doessem os tomates três dias antes, mais os rins e a cabeça durante o sangramento, se nos dessem cólicas e falta de apetite, se viessem caibras e diarreias para piorarem… as coisas seriam muito diferentes.
Para já, sangrar do amiguinho-da-cave, dava direito ir a soro para o hospital numa ambulância a fazer tinóni… Não andávamos por ai de um lado para o outro, trabalhar e a fazer coisas. Se menstruássemos, passávamos os três ou quatro dias deitados com a pila enrolada em ligaduras, a tomar medicamentos por via intravenosa para as dores com pena de nos próprios a ligar aos amigos a contar o que nos tinha acontecido. Enquanto coisa durasse estávamos de baixa. Claro que não íamos chatear ninguém com maus humores e hipersensibilidade emocional, dada a grave situação de saúde em que nos encontrávamos… Quando a coisa passasse, ai sim, devagar íamos retomando ao ritmo normal dos dias…mas com a calma necessária aos heróis convalescentes.
Depois desta elevada reflexão, ainda pálidos do pânico que chegou com a ideia de ter de desenrolar o bicho só para fazer xixi… sem combinarmos, pegamos ambos nos telefones e ligamos para as respetivas super-mulheres que nos acompanham!
-- Tou mor? Era só para mandar um beijinho e saber que esta tudo bem! Precisas de alguma coisa?
Brasil
Entramos no Brasil num domingo ao amanhecer. Vinhamos de Assuncion e era ainda noite cerrada quando atravessamos o Rio Paraná. Atrás, a mitica Ciudad de Leste capital do contrabando e outros tráficos, à frente todo o Brasilão a começar ali na Foz de Iguaçu. Mais de metade de um continente e toda esta imensidão à nossa frente antes de chegar ao Atlantico.
Na fronteira falaram-nos em português pela primeira vez depois de semanas em castelhano de muitos e variados sotoques. Mesmo com a tensão da fronteira e os guardas armados quase que nos sentimos em casa.
Na estação dos "onibus" não havia autocarros, nem bilheteiras, nem um quiosque aberto. Ninguem. Começou a chover.
Entramos no unico taxi que ali estava parado. Acordamos o preço e seguimos viagem.
Em conversa de circunstancia e porque continuava a chover perguntei:
-- Tem chovido muito?
-- Pensi em chuva! Pensi em chuva bem forti. Pois olhi qui aqui tem chovido mais!
Rimos-nos os tres. Estavamos apresentados.
Tentei falar de política.
Esclareceu que nao tinha partido, mas deixou claro que estava com o Lula.
-- Sabe moço, depois do Lula comprei minha primeira geladeira. Sabe o que é viver no brasil sem geladeira? Hoje é domingo e tou aqui trabalhando, mas tenho um filho fazendo o vestibular e minha filha tá fazendo a faculdade de medicina. Sem o Lula não tinha jeito não. Filho de trabalhador estudar qui nem filho de rico...Isso aí é benção di Lula!
Depois de Foz de Iguaçu muitos quilometros, muitas estradas, muitas cidades.
Tres mil quilometros a norte, em Salvador, Cuiuba Daltro, um amigo mais atento à situaçao politica e às manobras da direita dizia:
-- Ou o Lula dá um jeito, ou o Brasil não tem jeito.
Não tem jeito mesmo, concluo.
Horas de mágoa e melancolia a pensar nesse Brasilão. Nesse Brasilão de gente humilde e trabalhadora com essa secreta e preciosa qualidade de nas piores circunstancias encontrar a alegria necessária para sorrir e ir levando.
Tamo aí.
Camões
Andou anos de caganeira em terras estranhas, com armas na mão a servir a pátria que o pariu. Veterano e mutilado, voltou desfeito para Lisboa.
Depois de um cálvario de petições, requerimentos, pedidos, cunhas e empenhos lá lhe arranjaram um obscuro e modesto lugar como funcionário público com um salário miserável que mal dava para pagar a conta dos fiados nas tabernas da Mouraria.
Parece que tinha tendencia para os copos, para jogar aos dados e para os outros prazeres da vida. Escrevia cartas, função que cobrava a quem lhe pagasse e poemas de amor que oferecia a quem os inspirasse.
Pra ver se se safava, escreveu um calhamaço a falar bem do governo e da familia de quem mandava. Uma coisa maçuda que nem com todo o seu talento se torna ligeira. Um livro sério a apelar a um sentimento patriótico que estava longe de sentir. Um texto para a agradar aos reis e funcionários da corte.
Mais papeis e requerimentos e editaram o livro ao homem. Por fim, já moribundo de tuberculose e cirrose, com o figado desfeito, os pulmões disfuncionais e a alma esburacada, lá saiu o livro. Meses depois, meia duzia de moedas para pagar dividas, juros e favores.
Apagou-se com cinquenta e seis anos, pelas vesperas dos santos populares. Enterraram-no onde calhou e o senhorio ficou com a pobre mobilia para pagar as rendas em atraso.
Quinhentos anos depois, cruzaram-lhe o nome com a pátria. Remexeram, juntaram e roubaram uns ossos de uma vala comum e fizeram um funeral com pompa e circuntancia. Ao certo sabe-se que são as ossadas de meia duzia de desgraçados enterrados na Mouraria. Parece que a unica coisa que é certo que era dele e que levaram para os jeronimos foi a caveira. Ou então levaram a caveira de outro zarolho pobre...hipotese sempre possivel...Seja como for, escreveram na pedra de um tumulo, o nome com que assinava.
Hoje, o poder celebra-se a sí próprio em nome dele.
O país continua igual com os seus poderosos burocratas, com analfabetas elites alapadas a um poder instituido que tudo faz para se prepetuar à tona da poça de vomito a que chama casa. O país continua com um povo de devotos miseraveis a agonizar em pobreza das dividas do que não tem. Um povo que tem como unico consolo a fanatismo da fé e a embriagues vinho. Agora alem do tinto, branco e verde, tambem há futebol e televisão.
Celebrar o quê?
Estou convencido que se o Camões fosse vivo mandava-vos a todos enfiar as comemorações do dez de Junho no buraco do olho que não vê.
O polvo
É ela que leva o polvo ou o é o polvo que vai com ela?
Definitivamente, que foi ela quem entrou no quintal do polvo.
Temporariamente sereia permanentemente mulher. O corpo é a tela de um pintor de agulhas. Tem um soberbo rabo onde o polvo aplica beijos de ventosa.
Uma boca desenhada na nadega esquerda trinca uma bala.
O polvo esse, viajou na prisão do aquário e foi lá posto para a composição. De propósito para te mostrar melhor o desenhado rabo da sereia. E te fazer invejar ter ventosas na boca e mãos tentaculares para abraçares determinados rabos.
O fotografo, molhado, carregado de equipamento e em subaquático equilibrio instável põe os olhos profissionais e a camara onde muitos desejavam por as unhas.
Para me vingar do Inverno, hoje planeio comer salada de polvo e com sorte dormir a sesta com uma sereia.
Invisivel
Contou-me que veio da Serra Leoa sem papeis.
Encontramos-nos ao final da tarde junto à seca do bacalhau. Eu fui pescar. Ele acabava a faina de mariscador fugindo à maré que subia.
Estava frio e o homem vinha molhado. Arrastava atrás de si uma saca de rede com uns quinze quilos de ameijoa.
Num frances manhoso perguntou-me se tinha um cigarro.
Eu tinha.
Ficamos ali os dois a fumar e a olhar o poente.
Um minuto de silencio pelo dia que morria. Depois falamos. Da vida, de barcos, de cães, marés e mulheres.
Ficou de noite.
-- Já posso ir embora, já está escuro.
-- Porquê?
-- Porque lá em cima não gostam de ver um homem negro a passar à porta das casas. Têm medo. Por isso vou quando fica escuro, para as pessoas não me verem.
E assim seguiu invisível na noite gelada.
segunda-feira, 29 de abril de 2019
sobre o mal
Aqui há uns dias, vi numa madrugada improvável, prá i, no noticiário de sábado ou domingo das sete da manha, uma noticia em que o Papa Francisco, alertava para o perigo do Demónio e das suas tentações. Não, não estou a brincar...Vi mesmo.
Dizia o Papa Chico para as camaras e microfenes, e dizia a sério, sem ter cara de ter bebido, fumado ou cheirado o que quer que seja, que o Diabo "sussurra tentações ao ouvido e que é preciso muito força para lhes resistir"...
A coisa, talvez pela hora, talvez pela desproporcionalidade de época, ficou-me na cabeça a remoer...
E não foi tanto o tema do Diabo, esse não me assusta especialmente. O Chico terá o dele tal como eu tenho o meu e tu tens o teu. Há por Diabos disponiveis para todos nós...
Nem sequer a dentada apetecida na maçã madura das tentações.
O que despertou a minha inquieta refleção foi o sussuro. Ou melhor, as tentaçõe susurradas.
É que eu, tal como o resto da humanidade, tambem padeço do mal das tentações, mas é que a mim, o Diabo não me sussura. A mim o Mal grita-me e agita-me com os apelos das tentações. Não há cá subtilezas de susurros e segredinhos:é mesmo à bruta.
Quando as sete e meia da manhã o alarme começa o dia ao lada da cama, lá vem o Demonio tentar-me e gritar as suas ideias malignas: deliga essa merda que está a fazer um granel do caraças, fica mais um bocadinho e se saires atrasado, vai em exesso de velocidade...
Se por exemplo aparece na visão do meu casto olhar, um decote mais profundo, ou um rabo apelativo a a subir as escadas a dois palmos da minha cara, é mais que certo que há-de vir o diabo gritar-me: mete a mão, mete a mão, mete a mão a ver se está quente!!!
Tambem é frequente, ao folhear do facebook, ler uma ou outra aleivosia de direita, racista e fascisoide. Quando isto acontece, salta o Diabinho Vermelho, esquerdista e agitador, lá do fundo das minhas entranhas, a tentar-me com as suas sugetões e falar-me grosso: arrasa ja esse cabrão desse fascista, chama-lhe grulho e quando o apanhares, parte-lhe os cornos...
Ou quando na fila do supermercado, uma daquelas velhinhas arqui-megeras vem subtil meter o carrinho das compras à frente do meu..., de certeza que vem o Diabo justiceiro tentar-me, falando alto na minha cabeça, com a insistente ideia: avança com o carro das compras e manda a velha mais o carrinho e as mercearias todas com o caraças e vai-te embora sem pagar!!!
Claro que eu, contido e bem-comportado como sou, resisto quase sempre as tentações do maligno. Mas de qualquer maneira, não são tentações sussurradas, são tentações ditas em alta voz interna, com o megafone da ressonancia de toda a caverna onde o Diabo vive.
Sem me querer vangloriar, nem acho que isso faz de mim candidato a santo, devo dizer-vos que este vosso amigo, resiste quase sempre, a quase todas as tentações.
Ora, pela noticia percebemos todos, que ao Papa Chico de Roma, o Diabo vai tentar com sussurrozinhos e em vozinha baixa. Até parece que o Diabo vai envergonhado. E não sou eu que digo... é o proprio Chico. E isto meus amigos, é muito grave, porque, se na escala das tentações, o Chico ainda só vai na fase dos sussuros, isto só pode querer dizer duas coisas: Ou alguem dentro do vaticano anda a mandar remessas de ouro tirado do saco azul para os aquecidos cofres do Inferno, untando assim as unhas ao Diabo para facilitar a vida ao Papa... Ou quer dizer que o Diabo, fala baixo em sussurros porque, simplesmente, não precisa de falar alto para ser compreendido e obedecido...
Isto, não é um assunto de somenos importancia. Na realidade levanta uma questão teologica grave: assim que o Diabo começar a falar um bocadinho mais grosso, ou se gritar com voz de comando, a cristandade corre graves riscos que Sua Santidade mije no medo do halito de enxofre e vá a correr fazer o que o Esquerdino lhe manda...
Até porque, sejamos honestos, para o Papa resistir tentações, não precisa de fazer grande esforço: aquilo é canja. Vejamos: Acorda quando quer e sem despertador, mal fecha os olhinhos e a respiração se torna mais pesa, começa logo a pradaria toda naqueles corredores encerados a andar em bicos de pés para deixarem sua santidade arrochar. Decotes no vaticano, bem...estamos falados. Rabos, só os ressequidos traseiros dos cardeais e por pudor, não quero desenvolver o tema. Com o facebook não tem arrelias, há dezenas de gajos especialistas em qualquer coisa, sentados à frente de computadores topo de gama, no imenso gabinete de imprensa, a tratar da comunicaçao de sua santidade, prepar-lhe as noticiazinhas para ler e a filtar as opiniões que Sua Santidade deverá conhecer. Compras não existem e as mercearias, é um padre que as traz e lhas arruma directamente no frigorifico, sua santidade nem sequer tem de pagar os dez centimos do saquinho de plástico...
Que tentações tem este homem? vá lá, digam-me, que tentações tem o papa?
Nesta minha mente de suburbano que sobrevive num país de católicos, começou a desenhar-se uma ideia: sem querer fazer auto-promoção, sem querer abrir um processo de campanha, sem me querer canditatar-me, nem sequer prefilar-me para um proximo conclave, não posso deixar de pensar, e de partilhar convosoco, que, perdoem-me a imodestia, este vosso amigo, daria um Papa muito melhor do que o Chico, porque se o problema é resistir às tentações, estou muito mais capacitado para faze-lo. Mais que não seja porque estou mais habituado à presistencia do Mal
Pablo e Dora
Um amigo comum apresentou a Dora ao Pablo. O gajo ficou completamente apanhado pelo encanto treslocado dela. Entre a menina-bem parisiense e as atitudes de uma passionaria, era impossivel ficar indiferente à Dora.
O Pablo era um quarentão maduro a viver a agonia de um casamento moribundo e o romance com a Dora foi intenso e fulminante.
Separou-se da Marie e foi viver com a Dora. Casaram-se um contra o outro e ao contrário do previsto o amor prosseguiu mais que tres dias. Ele pintava quadros e ela tirava fotografias.
Em Madrid, o Pablo foi nomeado pelos republicanos director do Prado.
Ela foi com ele para uma Espanha a ferro e fogo.
Ele pintava os bombardeamentos e os olhos da Dora, a violencia e as mamas da Dora, a opressão e braços da Dora... Ela fotografava-o a ele, os quadros dele e às vezes experimentava a maquina em diferentes cenários no atellier dele. A estas fotografias, à falta de outro nome, chamaram-lhe surrealistas.
Depois da guerra em Espanha, da mortandade iberica foi o nazismo e a generalização da nausea da pelo mundo. A grande guerra.
Acabada esta segunda, o mundo não voltou a ser o que era.
O Pablo repugnado com tanta morte e injustiça militou-se no PCF. A Dora agoniada com o mundo tornou-se pintora.
Separaram-se.
Ele, agora destacado intlectual comunista, vendia como nunca e enriqueceu um bocadinho mais todos os dias que passaram desde então.
Ela levou o surrealismo ao extremo e internaram-na na psiquiatria.
Ele morreu em 73 e ela 97.
O amor dos dois persiste na assimetria das mulheres pintadas por ele e nas fotografias capturadas por ela.
A foto chama-se "Picasso com craneo de cabra" a autora é a Dora Maar
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