segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O bichinho filhodaputa

Há um bichinho filhadaputa que se mete nas fendas do peito e fermenta nas fendas do corpo, chama-se amor e serve a humanidade. Quando o Fonseca acabou o ato físico de amar, abraçou-se ao corpo da Lúcia. O quarto da pensão promovida a motel, pareceu-lhe ser um lar. Nesse preciso momento, sem que se apercebesse, a mulher com quem estava casado, passou à condição de ex. E foi então, que aquela que até ali era a outra, impulsionada pelo bichinho filhadaputa que é o amor, subiu de estatuto e passou a ser a sua. Naquele dia, à hora de almoço, o caso que era apenas um caso, deixou de ser um caso. Duas semanas depois daquele êxtase controlado entre a saída para o almoço e o café na copa, o Fonseca sairia de casa com duas malas e um entendimento mais ou menos resolvido com a mãe dos filhos, sobre dinheiro, educação das duas meninas e propriedade da casa hipotecada ao banco. Passariam dois meses e a Lúcia, seria assumida como namorada. Menos de um ano depois do encontro furtivo, estariam a viver juntos. O bichinho filhdaputa do amor, iria empurra-los um contra o outro como as pessoas são empurradas e apertadas nos autocarros às seis da tarde. Mas os amantes, àquela hora e naquele lugar, não sabiam de nada disso. Enquanto o Fonseca lhe beijava os ombros nus, ela deu-se conta que ao contrário do que era habitual nele, depois da função cumprida, não se levantou para ir fazer xixi. A Lúcia, aperceber-se dessa mudança assustou-se. As mulheres são mais sensitivas e percebem melhor as movimentações do bichinho filhadaputa que é o amor. Por pressentir o amor a instalar-se gelaram-lhe as costas e ela enroscou-se em si própria abraçando os joelhos a pensar que podia coordenar a secção de processos. O Fonseca abraçou-a e sentiu-se protetor e gostou. De olhos abertos, fitava uma mancha de bolor no abat-jour do candeeiro da loja dos 300, e o bichinho filhadaputa do amor, a abancar-se silencioso dentro dele. Estes minutos do pós coito, de cabeça vazia eram uma ginástica mental, uma ioga da hora de almoço... Espaço aberto para quebrar regras numa existência regrada e focada em objetivos. São estes espaços de cor e luz, precisamente os mais propícios para o bichinho filhadaputa do amor se desenvolver... O caso deles começou com uma proeza que o discreto Fonseca exibia a si próprio: a conquista do cobiçado rabo redondo da Lúcia. Para Lúcia era a junção agradável de uma necessidade fisiológica com a hipótese de incrementar a sua pontuação no complicado sistema de avaliação de desempenho. Passou a ser para os dois, um momento de escape diário. Naquele dia o Fonseca percebeu que afinal havia ali mais qualquer coisa do que uma mancha secreta de prazer na sua existência de fatos cinzentos, registos e assinaturas. Sem perceber bem porquê abraçou-se a essa coisa como um naufrago se agarra a uma boia ou um cão abandonado se apega a quem lhe der comida. Por isso, naquele inicio de tarde, sem saber dos efeitos secundários do bichinho filho da puta do amor, o Fonseca, persistia agarrado às costas da Lúcia que tinha noção que se ia atrasar, mas tinha a certeza absoluta que chegaria antes do chefe. Um carro buzinou na rua. Ele despertou da sua letargia e beijo-lhe a nuca. A Lúcia sentiu um beijo como um sinal da hierarquia para avançar com o processo: levantou-se, limpou-se com as toalhitas de aloé que tinha na mala, vestiu-se, beijou-o e saiu. Ele deixou-se ficar deitado mais três minutos contados no relógio que fez pipi, sem pensar em nada, apenas a padecer da febre do bichinho filhadaputa. Depois foi urinar, vestiu-se, agitou a gravata, pagou a pensão e voltou digno para a companhia. Meia hora depois, no escritório, os olhares deles cruzaram-se e ela disse: – Doutor Fonseca, vou lá a baixo a tesouraria, precisa de alguma coisa? – Deixe estar Lucia, vou descer consigo que tenho de falar com o Doutro Ferrão. Desceram juntos no elevador cheio com mais três colaboradores engravatados e uma senhora de uma empresa externa que fazia as limpezas e empurrava o carrinho e que era invisível para os outros cinco. Apensar do elevador sobrelotado, os amantes sentiram-se sozinhos no mundo. Lado a lado. As suas mãos tocaram-se. Sorriram para si mesmos e a vida continuou com o bichinho filhadaputa a fazer das suas. Ela continuou trata-lo por senhor doutor e ele continuava a pedir-lhe as fotocopias “por gentileza” mas entre os dois uma ponte feita de cuspo do bichinho filhadaputa do amor cresceu como os formigueiros em Africa. O que antes era apenas tesão, vaidade, e empenho na progressão da carreira, evoluiu mais qualquer coisa que não se sabe muito bem o que seja e que logo a começar por isso mesmo é muito melhor do que as coisas que se definem facilmente, se medem e se podem indexar. Viveram felizes para sempre durante cerca de dois anos. Então o Fonseca foi promovido a diretor de sinistros e a Lúcia coordenadora da secção de processos. A vida, o trabalho e o igualitarismo dos dias, enxotou o bichinho filhadaputa. A Lúcia reencontrou no facebook o David Santos seu ex-colega de liceu que voltou do Luxemburgo para abrir um stand de carros importados semi-novos. O Fonseca andou uns meses amargurado e revoltado com a facilidade com que se transferem as matriculas. Passou-lhe a revolta e voltou para casa da mãe das filhas no dia em que viu em que a ex-mulher lhe deixou as meninas em casa para para sair maquilhada com as colegas professoras. Ele ficou com as miúdas e o bichinho filhaputa instalou-se devagar. Meses depois voltava para a casa onde viviam a ex e as filhas, que de todas as formas nunca deixou de ser ele a pagar a hipoteca.

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