quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Sessenta Verões

Conheci a Mariana em 1953, numa terça feira, na sala de matematica do Liceu Nacional de Faro. Tinhamos dez anos e passava das oito da manha. Era o primeiro dia no liceu mas o comboio que me levou Olhao, decidiu atrasar-se. Corri e entrei pela primeira porta que vi aberta. Procurei a sala 3...Pentei a franja e com a coragem dos resignados, bati e esperei. -- Entre. Entrei e vi-a. Vi a Mariana mais uma turma de meninas da minha idade e uma professora que depressa me corrijiu o erro. Aqui era a seccao feminina, tinha de sair para a rua, dar a volta ao edificio e entrar por outra porta. Tudo isto me foi dito em tom de raspanete. Eu muito ao longe porque toda a minha atençao, interesse e sentidos foram sugados pelos olhos escuros da Mariana. Ela era de muito longe lá da serra, para os lados de Alcoutim. Mais tarde fiquei a saber que estava a morar com a familia de um senhor chamado Alfredo que era chefe de qualquer coisa na Camara de Faro. O funcionario e a esposa eram devotos catolicos e tinham uma filha da nossa idade, a Maria da Luz. O padre Saraiva que tinha estado em Alcoutim, conhecia a Mariana e a inteligencia da menina e por isso convenceu o Alfredo e a Dona Gloria a aceitarem em casa a Mariana para que a menina pudesse estudar em Faro no liceu. A familia da Mariana, proprietarios de algumas terras na serra, nao tinham muito dinheiro, mas quinze em quinze dias faziam chegar um carregamento de generos alimenticios que suplantavam largamente o consumo da pequena. A Mariana era magra e seca como os serros à volta do Guadiana. Um sorriso cheio de luz e uns olhos que se riam mesmo quando ela nao se queria rir... Quando conheci a Mariana em 1953, conheci tambem o Luis. Meu melhor amigo do liceu e companheiro de aventuras. Desde aquela manha de outubro de 53 ate ao ano fatidico de 1958, todos crescemos juntos. Eu, a Mariana, o Luis e a Maria da Luz. Hoje sei que foram os melhores cinco anos das nossas vidas. A nós cresceram-nos quase bigodes e a elas cresceram as maminhas. A nós cresceram as pernas e os braços para nadar quando nos baldavamos às aulas. A elas cresceram as nadgas para nos enloquecerem quando dançavamos nos bailes da sede do Farense. Quando em outubro o Luis fez 15 anos o pai deu-lhe ordem para fumar e ofereceu-lhe uma chata. No primeiro sabado, saimos os quatro no barco pela ria com as raparigas clandestinas. Atravessamos a ria e aproamos à praia. O paraiso prometido em bilhetes ousados escritos nas folhas de caderno e segredinhos no saguao dos predios abriu-se quase em simultaneo para os quatro. Dois a dois, sem misturas nem confusões, que estavamos nos anos 50. Esse foi o inverno mais quente da minha vida. Sempre que nao chovia iamos os quatro para a ilha dos amores. Seguia com a Mariana por entre as dunas e os arbustos rasteiros até uma cama de areia branca onde descobrimos juntos e felizes o jogo de amar. As vezes ouviamos a Luz e o Luis. Imagino que tambem eles nos ouvissem a nós. Todos ouviamos o mar. Quando chovia, coisa rara, ficavamos no armazem onde estava o barco. Nesse ano, eu,a Mariana e a Luz preparamos-nos para o exame do 5° ano, com sessoes de intenso estudo. O Luis que em março já tinha decidido ficar no quinto ano outra vez, mas solidario no esforço, em imprescindivel no jogo a pares, tambem ele participava no estudo. Em maio, pela pascoa, a Luz começou a engordar. Ao mesmo tempo começaram os enjoos.. O Luis e a Luz estavam grávidos. Nalguma tarde de final de inverno a coisa acontecera. O Alfredo da Camara dizia que matava. A Maria da Luz chorava e a Dona Gloria calada a pensar. Isto contou-me a Mariana que se foi esconder no quintal quando a coisa se soube la em casa. A Dona Gloria conhecia uma parteira em Vila Real que fez o desmancho. O exame do quinto ano estava marcado para quarta-feira dia 4 de junho. No domingo dia 1 de junho, dia da crianca, a Maria da Luz foi abortar. A coisa correu mal e a Luz sangrou durante dois dias. Trouxeram-na para Faro na manha de segunda-feira. À tarde veio o médico. Falou claro, repouso absoluto nos proximos tres dias. E o exame? Nem pensar em exame dizia o medico. Mais inteligente que o medico a Mariana decidiu: o exame para as meninas era de manha e o exame dos rapazes era feito à tarde... Entao o Senhor Alfredo. Pai da Luz só tinha de escrever uma carta a pedir para a filha ir exepcionalmente ir fazer o exame à tarde porque chegaria nessa manha de Lisboa. Ela, Mariana entregava a carta em mão ao reitor e à tarde ia fazer o exame, fazendo-se passar pela Maria da Luz levando o documentos da Luz. Fazia o mesmissimo exame que tinha feito de manha com o juri das professoras, desta vez num juri de professores e numa sala de rapazes. Os professores nao conheciam as alunas por isso nao havia problema. Assim foi. So que a cabra da professora de matematica das raparigas era a dignissima esposa do professor de frances dos rapazes e ja o exame ia a meio, entrou a docente pela sala para levar uma sandes ao marido e imediatamente reconheceu a Mariana, sua aluna que tinha feito exame durante a manha. Chamaram o reitor. O reitor, zangado por ser incomodado, chamou o policia. O policia,sem saber o que fazer, chamou o conissario. O senhor comissário, sem se intimidar com os doutores, chamou criminosa à Mariana. porque identidade falsa é crime na republica portugesa. A Mariana foi expulsa do liceu e voltou para Alcoutim. Nunca mais a vi. A Luz ficou esse verão em casa, recuperou mas não teve filhos. Foi trabalhar para a loja de uma tia em Lagos e casou-se com um ingles mais velho que tinha um veleiro. O Luis desistiu de estudar e continou o negocio do pai com traineiras. Eu fui trabalhar como escriturário na CP.Saí de Olhão, vim para Santa Apolonia e cheguei a chefe de seccao. Casei, tenho dois filhos e tres netos. Vivo na Amadora e estou viuvo ha dois anos. Nao durmo as noites porque fico acordado a sonhar com a Mariana. Se por acaso a virem por aí, digam que o Artur gostava de se encontrar com ela, para tonarmos uma cafe ou coisa assim. Afinal só passaram sessenta verões.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Quando o sporting joga fora

Trabalhavam as duas na secção de recuperação de crédito. Tinham a mesma idade com diferença de 3 dias, uma nascida a 5 a outra a 8 de Fevereiro. Começaram novinhas no banco mais ou menos ao mesmo tempo. A vida fê-las colegas e elas tronaram-se amigas. Depois, porque foram educadas para isso, uma delas casou-se com um rapaz que trabalhava nas finanças, e a outra, um ano depois casou-se com um moço sargento da marinha em permanência no Alfeite. Uma delas católica quase quase praticante, tinha sido catequista e tudo. A outra menos praticante, mas igualmente conservadora filha de um gnr e de uma senhora jeová. Escolherem maridos do tipo bom moço trabalhador, moderadamente ciumentos e luso-machistas sem excessos. Os maridos tornaram-se também eles grandes amigos. Por alem das esposas trabalharem no mesmo sitio, os rapazes tinham em comum um grande amor ao sporting. Ambos sócios encartonados com cotas em dia. Assíduos nos jogos a puxarem um pelo outro assim como puxavam pela equipa. Vieram as crianças: dois meninos gémeos com a trombinha do sargento e uma menina que era a alegria do gajo das finanças. As gravidezes quase simultâneas aproximaram ainda mais as duas amigas. Os dois casais começaram a passar ainda mais tempo juntos. Juntavam-se todos os fins de semana. Quando o sporting joga em Alvalade jantam no sábado e no domingo eles vão os dois à bola e elas ficam juntas em casa, porque não são de sair. Quando o sporting joga fora, eles vão no sábado e elas ficam com as crianças alternadamente na casa de uma da outra. Um domingo em Alvalade, o outro domingo em viagem por este imenso pais de futebóis. Os homens chegam ao final do domingo, eufóricos ou lamentando arbitro, a equipa o presidente... Depois eles ficam a ver os comentários na televisão e elas arrumam a cozinha. Moram a dois quarteirões de distancia. No segunda-feira voltam a encontrar-se as duas na copa, para beber café e arrumar no frigorifico pequenino, as caixas de plástico com o almoço que partilhavam. A coisa é assim há mais de quinze anos. Até que um dia, uma quinta-feira de manha, estava eu na garagem do banco entretido a ler a bola quando desceu o Senhor Gonçalves responsável pela logística e chefe da manutenção, por isso meu chefe. Vinha de cenho fechado e sem dizer bom dia perguntou logo de mau humor: Não tem nada para fazer? A manutenção deste edifício está em pausa? -- Senhor Gonçalves, estou a espera que cheguem as tomadas para ir substituir la em cima na administração... devem estar ai a chegar. Respondi modesto mas rápido, afinal de contas, trabalhava na manutenção há tempo suficiente para ter sempre umas cuecas de aço vestidas quando o chefe chega de mau humor... -- Olhe homem, vá mazé lá a baixo à subcave onde temos o arquivo-morto e veja la o que se passa com a luz, porque já se mudou a lâmpada e não é da lâmpada... O arquivo morto estava sem luz há três semanas. Tínhamos ficado e substituir toda a infraestrutura elétrica no próximo mês de agosto. O cabrão do Gonçalves sabia isso muito bem... Mas chefe é chefe, dobrei o jornal e fui. Desci pelas escadas para fazer tempo e com a lanterna grande na mão. Agora é que lhes deu a pressa!!! Abri a porta com um encontrão, zangado de estarem a inventar coisas para me mandarem trabalhar. Foi então que as vi. No canto entre prateleiras cheias de dossiers. Estavam as duas despidas da cintura para cima. Abraçadas, uma com a mão direita debaixo da saia da amiga que tinha as cuecas junto aos sapatos de médio salto. A outra com os cabelos soltos e a cabeça deitada para trás. Ficaram tão chocadas quanto eu. Ou melhor ficaram mais chocadas que eu...alem de chocadas, encadeadas pela luz da lanterna e gelaram pela travagem brusca na auto-estrada amor que seguia em excesso de velocidade. Sai tão depressa como entrei. Fui chamar o elevador que se chama monta-cargas porque é maior e menos limpo. O monta cargas demorou o tempo suficiente para que elas chegasse ao pé de mim. --Não vi nada. E têm a minha palavra que vou guardar o segredo do que não vi. Guardei. Não falei disto a ninguém. Entre nós os três cimentou-se uma profunda amizade e respeito mutuo. Ficamos amigos até eu me reformar do banco. Mas brincadeiras à parte, digo-vos uma coisa: eu sabia sempre que o sporting jogava fora pelo despertar do leve sorriso de satisfação nos rostos sério e contidos das duas amigas.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O bichinho filhodaputa

Há um bichinho filhadaputa que se mete nas fendas do peito e fermenta nas fendas do corpo, chama-se amor e serve a humanidade. Quando o Fonseca acabou o ato físico de amar, abraçou-se ao corpo da Lúcia. O quarto da pensão promovida a motel, pareceu-lhe ser um lar. Nesse preciso momento, sem que se apercebesse, a mulher com quem estava casado, passou à condição de ex. E foi então, que aquela que até ali era a outra, impulsionada pelo bichinho filhadaputa que é o amor, subiu de estatuto e passou a ser a sua. Naquele dia, à hora de almoço, o caso que era apenas um caso, deixou de ser um caso. Duas semanas depois daquele êxtase controlado entre a saída para o almoço e o café na copa, o Fonseca sairia de casa com duas malas e um entendimento mais ou menos resolvido com a mãe dos filhos, sobre dinheiro, educação das duas meninas e propriedade da casa hipotecada ao banco. Passariam dois meses e a Lúcia, seria assumida como namorada. Menos de um ano depois do encontro furtivo, estariam a viver juntos. O bichinho filhdaputa do amor, iria empurra-los um contra o outro como as pessoas são empurradas e apertadas nos autocarros às seis da tarde. Mas os amantes, àquela hora e naquele lugar, não sabiam de nada disso. Enquanto o Fonseca lhe beijava os ombros nus, ela deu-se conta que ao contrário do que era habitual nele, depois da função cumprida, não se levantou para ir fazer xixi. A Lúcia, aperceber-se dessa mudança assustou-se. As mulheres são mais sensitivas e percebem melhor as movimentações do bichinho filhadaputa que é o amor. Por pressentir o amor a instalar-se gelaram-lhe as costas e ela enroscou-se em si própria abraçando os joelhos a pensar que podia coordenar a secção de processos. O Fonseca abraçou-a e sentiu-se protetor e gostou. De olhos abertos, fitava uma mancha de bolor no abat-jour do candeeiro da loja dos 300, e o bichinho filhadaputa do amor, a abancar-se silencioso dentro dele. Estes minutos do pós coito, de cabeça vazia eram uma ginástica mental, uma ioga da hora de almoço... Espaço aberto para quebrar regras numa existência regrada e focada em objetivos. São estes espaços de cor e luz, precisamente os mais propícios para o bichinho filhadaputa do amor se desenvolver... O caso deles começou com uma proeza que o discreto Fonseca exibia a si próprio: a conquista do cobiçado rabo redondo da Lúcia. Para Lúcia era a junção agradável de uma necessidade fisiológica com a hipótese de incrementar a sua pontuação no complicado sistema de avaliação de desempenho. Passou a ser para os dois, um momento de escape diário. Naquele dia o Fonseca percebeu que afinal havia ali mais qualquer coisa do que uma mancha secreta de prazer na sua existência de fatos cinzentos, registos e assinaturas. Sem perceber bem porquê abraçou-se a essa coisa como um naufrago se agarra a uma boia ou um cão abandonado se apega a quem lhe der comida. Por isso, naquele inicio de tarde, sem saber dos efeitos secundários do bichinho filho da puta do amor, o Fonseca, persistia agarrado às costas da Lúcia que tinha noção que se ia atrasar, mas tinha a certeza absoluta que chegaria antes do chefe. Um carro buzinou na rua. Ele despertou da sua letargia e beijo-lhe a nuca. A Lúcia sentiu um beijo como um sinal da hierarquia para avançar com o processo: levantou-se, limpou-se com as toalhitas de aloé que tinha na mala, vestiu-se, beijou-o e saiu. Ele deixou-se ficar deitado mais três minutos contados no relógio que fez pipi, sem pensar em nada, apenas a padecer da febre do bichinho filhadaputa. Depois foi urinar, vestiu-se, agitou a gravata, pagou a pensão e voltou digno para a companhia. Meia hora depois, no escritório, os olhares deles cruzaram-se e ela disse: – Doutor Fonseca, vou lá a baixo a tesouraria, precisa de alguma coisa? – Deixe estar Lucia, vou descer consigo que tenho de falar com o Doutro Ferrão. Desceram juntos no elevador cheio com mais três colaboradores engravatados e uma senhora de uma empresa externa que fazia as limpezas e empurrava o carrinho e que era invisível para os outros cinco. Apensar do elevador sobrelotado, os amantes sentiram-se sozinhos no mundo. Lado a lado. As suas mãos tocaram-se. Sorriram para si mesmos e a vida continuou com o bichinho filhadaputa a fazer das suas. Ela continuou trata-lo por senhor doutor e ele continuava a pedir-lhe as fotocopias “por gentileza” mas entre os dois uma ponte feita de cuspo do bichinho filhadaputa do amor cresceu como os formigueiros em Africa. O que antes era apenas tesão, vaidade, e empenho na progressão da carreira, evoluiu mais qualquer coisa que não se sabe muito bem o que seja e que logo a começar por isso mesmo é muito melhor do que as coisas que se definem facilmente, se medem e se podem indexar. Viveram felizes para sempre durante cerca de dois anos. Então o Fonseca foi promovido a diretor de sinistros e a Lúcia coordenadora da secção de processos. A vida, o trabalho e o igualitarismo dos dias, enxotou o bichinho filhadaputa. A Lúcia reencontrou no facebook o David Santos seu ex-colega de liceu que voltou do Luxemburgo para abrir um stand de carros importados semi-novos. O Fonseca andou uns meses amargurado e revoltado com a facilidade com que se transferem as matriculas. Passou-lhe a revolta e voltou para casa da mãe das filhas no dia em que viu em que a ex-mulher lhe deixou as meninas em casa para para sair maquilhada com as colegas professoras. Ele ficou com as miúdas e o bichinho filhaputa instalou-se devagar. Meses depois voltava para a casa onde viviam a ex e as filhas, que de todas as formas nunca deixou de ser ele a pagar a hipoteca.