segunda-feira, 13 de maio de 2019

Cães de espeto

Isto de virar frangos é coisa ibérica. Os europeus a sério, os do norte, há muito que inventaram os espetos rotativos. A peça de carne, ao rodar sobre as brasas ou metida num forno às voltinhas, deixa o assado muito mais homogéneo e permite guardar os sucos da carne. É por isso os ingleses criaram mecanismos complicados de rotação das peças de carne em espetos garantindo num assado lento e de rotação continua, uma degustação cinco estrelas. A chatice era estar ali a dar à manivela sempre a mesma velocidade durante horas seguidas, pois quanto mais lento é o assado, mais saborosa fica a carne... Os ingleses do renascimento, os ingleses ricos, entenda-se, tinham em casa umas gaiolas pregadas à chaminé com umas rodas grandes, tipo daquelas dos hamsters, mas com um metro de diâmetro onde punham cães a correr para rodarem a carne... Desenvolveu-se mesmo uma raça de caes especialistas nesse trabalho, que são os antepassados dos teckel, vulgarmente conhecidos pelos salsichas, cães de caça alemães descendentes esses canitos de pernas curtas e corpo comprido, adaptados para a roda do espeto. Mais tarde, já no século XVII, algumas casas inglesas, substituíram-se os cães pelos gansos. Menos inteligentes que os cães, não se escondiam ou fugiam, quando chegava à cozinha carne para assar. Os gansos eram mais lentos na roda, não davam tantos problemas como os cães. Na colónia norte americana, a introdução dos gansos não foi tão bem recebida, e nos estados americanos, sobretudo da costa leste, qualquer burguês que se presasse tinha na cozinha uma gaiola com dois ou trâs cães de porte pequeno, especializados na roda do espeto. Os cães ficavam fechados na jaula e quando saiam, já se sabia que era para assar a carne. Quando os estados unidos, entraram na modernidade, deixaram de ser uma colónia, tornara-se independentes, assinaram uma constituição e exterminaram os índios, mas continuaram a ser os cães a assar-lhes as peças de lombo. Entretanto apareceu o Henry Bergh, um cavalheiro que era empresário e embaixador, e que viveu cheio de boas intenções. Na sua carreira de diplomata, conheceu em Londres uma organização que tinha sido recentemente criada: Sociedade Real da Inglaterra para a Prevenção da Crueldade contra os Animais. Quando voltou lá à terrinha dele, o Bergh propôs à Assembleia Legislativa do Estado de Nova York o reconhecimento da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais. Isto aconteceu em 1866 no ano a seguir ao final da guerra civil. Esta associação que ainda hoje existe, foi quem fez aprovar uma das primeiras leis contra a crueldade sobre animais no mundo. Foram este activistas ligados ao Henry Bergh quem exigiu pela primeira vez a criação de ambulâncias para cavalos feridos e quem mais violentamente se manifestaram contra a utilização de cães nas cozinhas e rodas de espeto. Fez-se mesmo uma campanha contra os cães de trabalho nas cozinhas dos restaurantes. O Henry Bergh dominava bem as relações com a imprensa que fez com que pouco a pouco se deixassem de usar cães nas cozinhas para assar carne. Esta sociedade de protecção dos animais fazia visitas surpresas aos restaurantes e se verificasse que tinham cães nas cozinhas a fazer rodar os espetos, os jornais denunciavam a situação e o pessoal da defesa dos animais fazia campanha para que o publico boicotasse os restaurantes em causa. Finalmente, por volta de 1870, foi aprovada uma lei e os restaurantes e deixaram de usar cães nas cozinhas. Com o fim da guerra civil chegaram às grandes cidades do norte, dezenas de milhares de famílias que vinham dos campos do sul, agora arrasados. Pessoas que tinham sido escravizadas e chegavam sem nada de seu, em vagas, em busca de trabalho e um sitio para dormir. A lei contra os maus tratos dos animais pressionou os restaurantes, mas foi a economia com os seus argumentos de marreta esmagaram a questão: ficava mais barato ao dono do restaurante contratar crianças negras e pagar-lhes com os restos da comida que sobrava, do que ter gaiolas e cães a rodar o espeto! Os cães a trabalhar nas cozinhas passaram definitivamente a ser coisa do passado. A primeira lei contra o trabalho infantil nos estados unidos foi aprovada em 1938.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Maia datcha

Aqui há umas duas semanas tive uma reunião de trabalho num daqueles edifícios antigos e remodelados da Graça. Fantástica vista sobre o rio e margem sul. Mesmo por cima da estação de Stª. Apolónia. Atravessei o rio cedinho e decidi-me por andar até à estação de comboios que era ponto de encontro marcado. O sol de finais de Julho por volta das oito da manhã ainda não queima e Lisboa de manhã convida ao passeio. Cruzei o Jardim do Campo das cebolas na direcção à casa dos bicos. Entre duas palmeiras crescidas e protegida pelos contentores do lixo ficou organizada a instalação – arte pós moderna: Um carro de supermercado cheio de garrafas vazias. A estrutura que resta do que foi um aparador de sala. Uma mesa de esplanada da em plástico branco com uma perna partida. Caixotes de papelão dobrados a fazer de cama e um cobertor imundo em cima. Sentado sobre uma lata de tinta vazia estava um eslavo enorme com uma bebedeira ainda maior que ele.  Descontente com a organização do mobiliário urbano, empertigava-se um policia. Indiferente e à espera, uma equipe de trabalhadores câmara de Lisboa. Pressionado pelos taxistas e na insegurança dos seus vinte anos e estatura mediterrânea o jovem policia com sotaque do porto que disfarçava, tentava impor respeito ao gigante russo: -- Bamos lá a desocupar a bia que as funcionarias camarárias querem fazer o trabalhinho delas!!! As três senhoras fardadas de verde da CML falavam entre si em crioulo e assistiam à cena como se fosse uma telenovela. O russo fingia que não ouvia o bófia e ia-se rindo... Por insistência dos taxistas, lá abandonou o seu posto permitindo às empregadas da limpeza armadas de ancinhos arrancarem a merda de pombo à relva do jardim!!! O policia impressionado com a insolência do russo que se foi sentar num dos bancos do jardim a despejar um pacote de vinho pôs-se na conversa com os taxistas. Um fogareiro dos mais velhos, desabituado de ter a autoridade tão próxima sem ser para passar multas, ia comentando: -- Olhem para isto, até tem limpeza ao domicilio de borla!!! Casa com jardim , vista para o Tejo, um policia a fazer segurança e três pretas para lhe limparem o jardim. Parece um ministro!!! É para isto é que eu ando a pagar impostos!!! Solidário com a gargalhada geral dos taxistas e do bófia, o russo respondeu; -- Eta maia datcha bled, eta maia datacha!!! Como nem o policia nem os taxistas percebem russo continuaram com as gargalhadas de sarcasmo. -- O russo traduziu: é minha casa de campo, pá, é minha casa de campo!!!! Todos rimos. Com esta ideia de casa de campo do mendigo eslavo segui para o meu trabalho deixando os taxistas mais o policia e as jardineiras a rirem ao sol... À medida que a manhã foi aquecendo a gravata foi sufocando. À minha memória voltou várias vezes o russo bebado e sorridente. Com a subida da temperatura à hora de almoço, desenvolvi uma inveja furiosa do russo privilegiado que acorda para beber!!! Com esta ideia politicamente incorrecta e com ganas de auto agressões hepáticas continuei a trabalhar o resto do mes para pagar ao banco a hipoteca da casa onde moro. Mas há uma vozinha dentro de mim que me manda correr para a casa de campo em frente à casa dos bicos. Sinto uma vontade persistente de ficar a embebedar-me com vinho ordinário. Despir a camisa e ir respondendo em russo aos sarcasmos dos policias e dos fogareiros e ficar deitado no banco de jardim a desfrutar do sol de Lisboa.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Tempero para a isca

Estava calor e humidade. O ar cheirava a gasóleo, a mar, a estufa, a lixo e a fruta podre. As baratas do tamanho de pardais, voavam à volta do candeeiro da rua que iluminava e o grelhador improvisado numa lata com a luz amarela. Na cozinha que dava directamente para a rua, a mulher do amigo preparava o funge e de tomate picado com cebola e gindungo. Nós vigiávamos a galinha no churrasco e emborcávamos minis tiradas de um bidon com agua e icebergues do tamanho de melões. Éramos os dois convidados da dona da casa, uma mulata gorda, cunhada do meu amigo e irmã mais velha da sua mulher. Desde quinze anos quinze anos que toma conta dos irmãos. Aos vinte já tinha o peso e a postura das matriarcas africanas. Fala calmo e severa e toda a gente à volta naturalmente lhe obedece. Preparava-se para sair. Tomou banho e o seu perfume chegou-nos antes de a ouvir falar claro: -- Vou no aeroporto buscar o Elias. Não deixem chegar o fogo na galinha nem fiquem bêbados logo antes de chegar o Elias. Especialista diplomado em churrascos, o meu amigo respondeu: --- Vai na boa que eu mantenho debaixo de olho os dois inimigos presentes: não deixo o fogo chegar à galinha nem o branco chegar às cervejas... Partiu com uma gargalhada inesperada na sua expressão sempre severa e nós abrimos mais duas minis. --- Mas quem é o Elias que ela vai buscar? Perguntei na minha ingenuidade --- É o namorado da minha cunhada. Namoraram na infância lá no mato, daqueles namoros de putos e não se viram durante uns 12 anos. Quando foi da guerra ela deixou de receber as cartas. Depois veio a Internet e reencontraram-se. No ano passado ela foi ter com ele a Luanda. E agora, não estão mais de seis meses sem se ver... Da cozinha veio a irmã da dona da casa dar pormenores românticos à historia. Fomos bebendo e falando. Parece que o rapaz foi raptado pela Unita que atacou a aldeia onde morava... teria uns treze anos e fizeram dele soldado à força. Passou um bocado...viu matar familiares e amigos... Ficou com eles sete anos até conseguir fugir e juntar-se às Fapla. --- Então e como é que os gajos do MPLA souberam que o tipo está a dizer a verdade e não era um provocador, um infiltrado??? Um gajo que trai uma vez... Perguntei eu, que gosto de livros de espiões, enquanto fazia xixi atrás de um carro para não usar a casa de banho da casa que alem de ser longe estava imaculada. ---Não sei... mas o gajo deve estar ai a chegar e depois perguntas... Metemos o terceiro cadáver de galinha na grelha sobre as brasas e bebemos para evitar a desidratação. Não esperamos muito mais. Estavam a chegar. Ao contrario do rambo que eu esperava ver chegar, o Elias não tinha físico para apanhar duas estaladas. Negro retinto e muito magrinho, enfezado, com o peito para dentro e uns cinquenta e cinco quilos no máximo. Saiu do carro e caminhou na nossa direcção um pouco dobrado para a frente. Trazia com um bigodinho ralo e um olhar triste, uns ténis nike brancos e calças de ganga. Vinha a dançar dentro de uma camisola do Futebol Clube do Porto tamanho M que lhe ficava três números acima. A dona da casa comandou as operações: -- Fica aí com esses dois a beber uma cerveja. O preto é caboverdiano, meu cunhado e vive com a minha irmã mais nova, o outro, o pula é amigo da família e está de passagem. São fixes mas muito abusados... Vê se não começas já a ganhar os maus hábitos. Rimo-nos os três uns para os outros. Abrimos mais cervejas passamos-lhe uma gelada. -- Xii dói o dente do frio da cerveja... não tem ai menos fria?? Desabituei de beber cerveja gelada... Quando tava no mato não tinha agua quase nunca e não tinha cerveja quase sempre... Fui à cozinha e tirei uma mini da ultima grade que metemos no frigorífico. Estava praticamente morna. Voltei à rua com a garrafa na mão. Abri e dei-lha. Como sou um descarado, perguntei-lhe. -- Olha lá Elias, ouvi dizer que estiveste na mata com a unita e depois voltaste para as Fapla. Como é que convenceste os tipos do MPLA que não eras um provocador nem um espião infiltrado? Olhou para mim e sorriu o sorriso tímido que mostrava os dentes brancos regulares: -- Pois não foi fácil. Mas eu fiquei firme. Sete anos até ter a confiança dos chefes, só faltava conhecer o Savimbi. E quando eles já confiavam tudo em mim, eu trouxe uma patrulha de doze para perto de um quartel dos nossos capturei eles. – Capturaste doze homens armados sozinho? – Sozinho não! Foi com a ajuda do feiticeiro que eles tinha que também não queria ficar e eu disse nele que nas Fapl pagavam mais no feiticeiro ! Então o kimbanda fez um chá com raízes para por na comida, que pôs todos eles para dormir. Depois nós dois, foi só amarrar eles. O bruxo ficou a tomar conta dos inimigo e eu fui chamar as Fapla. Quanda as Fapla chegou mandou eu mais o bruxo matar todos para mostrar que não éramos traidor. E nós mandamos eles cavar um buraco assim de grande (os braços abertos envolvendo a enormidade do buraco) sentamos eles lá dentro a dizer que tinha de ficar a espera do transporte que os levava para a prisão em Luanda para serem trocados por outros prisioneiros.. com duas granadas matamos e enterramos todos no mesmo tempo!!! Ficamos em silencio com o pragmatismo e a simplicidade da resposta. Só se ouvia a gordura da galinha a chiar nas brasas. Para desanuviar o meu amigo perguntou: -- E esse feiticeiro que estava contigo? Agora também está em Luanda? -- Não. Eu chamei ele para falar comigo no mato, ele veio e eu só matei ele. Eu matei ele logo mesmo. Era um feiticeiro ruim. Vi fazer muita coisa má, tinha de matar mesmo! Era um Quimbanda do Zaire. Dei tiro nele. E com a faca do bruxo cortei o pescoço dele para separar cabeça do corpo, abri todo ele para tirar o fígado e comer, tinha que comer-lhe o fígado para tirar-lhe a força!E te digo maninho, este era um bruxo mau mesmo! Tinha no fígado muito amargo, muito amargo, muito amargo. Teve que levar bué da sal e bué de gindungo... Vocês não sabe, mas eu explica. Eu sabe dessas coisas que eu sou do mato. Quando é uma pessoa é boa o fígado não sabe amargo, sabe bem, como fígado de gazela que não tem maldade.. Quando é uma pessoa má o fígado é muito amargo amargo mesmo. Porque a maldade e a força da pessoa estão no figado. Eu tinha que comer o fígado dele se não o espírito dele ia me empatar a vida e vinha na minha traz para me fazer mal! Voltamos a ficar em silencio, não consegui dizer nada. A dona da casa, chegou sem avisar, descompôs-nos aos três por estar a deixar queimar a galinha e levou-nos em coluna para mesa. Na sua autoridade de metro e meio, avisou logo que não queria conversas nem de guerra, nem de politica ao jantar. O Elias, obediente, ainda antes de se sentar perguntou entusiasmado: --- e o Engenheiro Pinta da Costa continua sendo o presidente do Porto, verdade? Sem pausas e com o mesmo sorriso tímido prossegue com um verso: Carne de galinha é boa, carne de vaca também, mas a melhor das carnes é a carne que agente chama e ela vem!!!! Rimos todos. E a sua gargalhada escancarada e sincera afastou definitivamente todos os espíritos malignos e todas as memorias de guerras passadas e futuras. As mulheres riram da piada que interpretaram como brejeirice de quem tem fome de amor de namorada. O jantar continuou animado e não voltamos a falar de guerra nem de politica. No dia seguinte, segui viagem e não voltei a ver o Elias. Mantive-me vegetariano durante quase uma semana.

Maria contra a coroa

Num verão remoto, passando pela Catalunha, mais uma vez fiquei na casa de amigos que a seguir a nossa casa é o melhor sitio para ficar. Nesses dias convivi com um casal de velhos que hoje fossem vivos seriam centenários... Gente humilde mas informada, catalães de raízes profundas, oriundos das montanhas, atentos à realidade portuguesa e sempre prontos para aprender e discutir “o caso português” desde a revolução dos cravos à independência de Castela. Eram os avós do meu anfitrião, que viviam numa perdida aldeia junto aos Pirenéus catalães, mas que por feliz acaso, estavam naqueles dias a passar uma temporada em casa do filho. Parece que o outro filho, tio do meu amigo, estava a mudar-lhes o telhado da casa la na aldeia e por isso tinham “descido” até à cidade. Convergimos, nessas semanas de veraneio todos naquele prédio. Um edifico dos anos trinta, sem elevador, entalado entre outros edifícios idênticos, num daqueles bairros periféricos de Barcelona com um nome em catalão simultaneamente familiar e impronunciável. Tres pisos e um andar por piso. Tectos altos, janelas em madeira e escada apertadas com degraus daqueles que fazem levantar a perna para subir. Para alem dos meus amigos, que moravam no segundo andar e dos pais que moravam no primeiro, no terceiro piso, vivia mais ou menos uma pequena comunidade de gente jovem. Era um grupo de anarquistas mais ou menos radicais, que enchiam de bicicletas as escadas do prédio. Editavam revistas alternativas e tinha uma associação de partilha de livros. Mal se abria a porta do prédio, cá em baixo, já cheirava a erva... Mas apesar disso, era malta porreira, asseadinha, prestável. E como naquele prédio, era tudo gente educada e tolerante, todos se relacionavam com aquela a gentileza fria necessária para manter a boa vizinhança e respeitar a privacidade uns dos outros. A questão das bicicletas, apesar das escadas serem apertadas, não era um problema porque estávamos todos os residentes autorizados a usar. Coisa que confesso, cheguei a fazer algumas vezes. Já o perfume da erva, todos faziam por ignorar. Todos menos os velhotes que na sua ingenuidade camponesa, dois ou três dias depois de chegarem, perguntaram logo: que cheiro e este ? E de onde vem?.. Com a simplicidade das coisas simples, e porque é uma senhora inteligente, a nora, mãe do meu anfitrião encaminhou o casal para a porta de onde saía o cheiro, bateu e explicou ao vizinho de cima: – Os meus sogros perguntam que perfume é este, eu disse que era canabis...mas acho que os vizinhos, melhor que ninguém podem explicar o que é e para que serve essa planta! Apanhados desprevenidos, mas sempre gentis, convidaram os velhotes, “já agora o português” e o resto do prédio para um chá depois de jantar, onde explicariam o que era o canabis e o para que servia. Assim foi. À hora combinada, lá ficamos sentadinhos a ouvir uma erudita explicação com dados científicos e fotografias e a dizerem que a erva maria é uma coisa muito boa, que faz bem à asma, ao glaucoma e às enxaqueca. Mostraram-nos um daqueles vídeos a fazer a apologia da erva. Arranjaram exemplos históricos. Serviram bolachinhas. E mostraram-nos fotocopias de reportagens de revistas. Mostraram mais papeis, mais vídeos no computador e mais fotografias. Falaram nos benefícios. Depois falaram na repressão. Na repressão politica e policial. Falaram nos americanos a proibirem o cânhamo para protegerem as industrias do álcool e da celulose. Na repressão que os estado espanhol faz em Ceuta. Na dureza da vida dos camponeses em Marrocos. Em como a histeria da luta contra a droga serveíu para justificar mais e mais polícias...Explicaram a injustiça da proibição e a possibilidade de poderem serem presos só porque a planta cresce no vaso la em casa. Os velhotes ouviram calados com muita atenção. Estariam ambos na casa dos 80. Ele, militante do POUS, veterano da guerra civil, participou na Batalha do Ebro, ex-preso politico e troskista. Ela, comunista, militante do PCC, veterana da frente aragonesa, também ela prisioneira politica, anti-clerical e completamente estalinista. Acabado o discurso da apologia da erva, a velhinha, disciplinada e rija pediu a palavra: Todos sorrimos pela seriedade do pedido. -- Só quero dizer uma coisa: sou uma camponesa humilde, não tenho instrução, não conheço as orientações do meu partido sobre este tema, mas uma coisa assumo desde já: se a Coroa e os fachos em Madrid proíbem a coisa, eu sou a favor!!! O marido, menos disciplinado e que em matéria revolucionária não gostava de ficar atrás da mulher, interrompeu imediatamente: -- Em relação a essa matéria, eu, que não devo obediência a Moscovo, não só sou a favor, como se os camaradas estiverem de acordo, pretendo já acender um desses cigarros!! Rimos todos. Especialmente o velhote, que foi o ultimo a deixar de rir e por isso riu melhor!

Joana ardida

A Joana sempre foi uma rebelde. Dizem que viveu virgem e que usa apenas como peça de roupa uma túnica de linho sobre o seu corpo nu. A pele das coxas com o cavalo em esforço entre as pernas despidas. O rosto em êxtase e a espada na mão. Uma espada grande de ferro e aço com punho pequenino para o seu pulso adolescente. Nascida camponesa, na terra de Arc, sem outra fortuna além de si própria. Teve a força e a genica necessária para reunir os franceses e quase quase vencer a guerra contra os ingleses. Uma daquelas guerras antigas e longas. Uma guerra de cem anos. Quando falava soprava vento e quando levantava a espada sentia—se o furacão do seu querer. Corações e cabeças tombaram de paixão e desejo pela Joana. A Joana quase—menina, virou a Joana quase—mulher. Mulher, jovem, bonita, carismática e inteligente, combinação perfeita para lhe estragar a vida! Meio caminho andado para a fogueira dos donos do mundo. O resto do caminho fez a galope no seu cavalo. Julgaram—na por bruxa. Não se sabe se era, se não era. Dizem que as há. Depressa a condenaram e mais depressa executaram a sentença. O fogo que a matou aqueceu uma multidão de basbaques e satisfaz o perverso desejo de morte de nobres e padres. Acenderam a chama que em Ruão. Ainda lá está o túmulo para confirmar que o que conto não é mentira. Depois, em cima das suas cinzas frias, acumulando opressão com humilhação fizeram da Joana Santa. Santa católica para rezar nas missas e pedir milagres. Não contentes, sempre os mesmos donos do mundo, trataram de amassar as suas cinzas e fazer do que sobrou um Símbolo Nacional e o patriarcado compensou a impotência de séculos com estandartes em seu nome Sempre que arde uma igreja, não resisto a imaginar a Joana, descida do seu cavalo e de túnica arregaçada, a brincar com fósforos para ajustar contas antigas. Que me perdoem os mais católicos.

Juliette do olhar fodido

Não esquecemos nada. Habituamo-nos. É tudo. A Juliette Gréco é uma preciosidade da colheita de 27. O pai era corso e mãe francesa. Uma casta destas teve de ser criada em Bordeus, onde passou os seus primeiros anos de vida, com o resto da família alargada. De natureza tímida e reservada manteve sempre aquele olhar de quem não pode, nem quer, dizer tudo o que sente e sabe. Um olhar fodido que lhe saiu caro. Até aos treze anos as coisas corriam-lhe bem, era feliz e nem sabia. Depois em trinta e nove chegaram os lobos nazis. A mão de Juliete, mulher de cepa retorcida, liderava a célula comunista da Resistência lá da zona. E já sabemos que esse anos do governo de Vichy e saudações de mãozinhas esticadas, não foram anos bons para os resistentes franceses. E anos particularmente maus para os comunistas. Em 1943 a mãe da Juliete é presa pela Gestapo juntamente com as filhas. Vem embaladas num carro celular para conhecerem Paris. Lamentavelmente para elas, os policias nazis, levam-nas directamente para sede da Gestapo e nem cheiram o ar das ruas. São as três submetidas a tortura. Em conjunto e separadas. Repetidamente. Juliette, tem 16 anos e a irmã tem 18. A mais nova das três mulheres, a que viria a ser cantora, fica mais de mês nas caves dos nazis. É usada sobretudo para pressionar a mãe. Quando os policias arianos acharam que não tem mais nada a arrancar às três mulheres, decidem esquecer-se delas nas celas e não lhes dão comida nem agua. Por capricho, por acaso, por sorte ou por fastio dos carcereiros, é libertada. Acontece numa noite igual às outras, quando lhe dizem mais uma vez que a vão fuzilar. A mãe e a irmã permanecem na prisão da Gestapo. Sai assustada e sozinha paras ruas desoladas de uma Paris ocupada, cinzenta, suja e fria. É uma professora reformada compulsivamente pelas suas simpatias de esquerda, que a recolhe e lhe dá um tecto no bairro de Saint-Germain-des-Prés. Tem um palmo de cara, canta bem, leu todos os poetas e não tem jeito para trabalhar: torna-se artista. Guerra acabada e derrotado o nazismo, sem ainda ter feito os vinte anos, estreia-se como actriz numa peça de Roger Vitrac. Conhece o Sartre, que a apresenta ao Camus, e ao Boris Vian. Está lançada. Apesar do sucesso, mantém a natureza tímida e aquele olhar fodido de quem não fala. É cortejada à vez e gosta de ser assim mimada e bem tratada. A intelectualidade da rive gauche canonizou-a no altar dos cafés. A sua postura de diva discreta e o olhar fodido, fez dela a musa eterna dos existencialistas. Diz a Juliette que não esquecemos nada. Que nos habituamos. E é tudo. Eu acredito.

Solidão partilhada

A Vanda vive com o fantasma de uma velhinha. Moram as duas no setimo direito. Começou a ver a velhinha uns meses depois de se ter separado. Enquanto casada, a angustia das da ausencia do marido e os ciumes com que ardia, nao adeixavam ver mais nada. Depois do Paulo sair de casa, começou a ve-la. Passou a ter mais tempo para olhar por ela, para ela e para as coisas á volta. A velhinha apareceu numa noite de terça-feira, depois adormecer no sofa. A Vanda acordou sobressantalda e com frio, levantou-se e foi para a cama. Foi ai que lhe percebeu a silhueta recortada na porta da cozinha, parecia parada atrás de uma especie de mesa de ferro sem tampo. Não teve medo. Para dizer a verdade, nem pensou no assunto, caiu na cama e continuou a dormir e a sonhar com o ex-marido. Só na manhã a seguinte se deu conta que a velha não foi sonho.Viu-a. Ao final da tarde, nesse dia, a fazer o jantar na cozinha e a pensar na silhueta, ouviu os passos leves ponteados por uma especie de bengala e sentiu uma presença a atravessar a sala. Devo estar a ficar maluca. Estava. Afinal de contas, estamos todos. Nessa noite, a Vanda foi sentar-se a comer a sopa detox adelgacante que bimby cozinhou. Sentou-se no sofa da sala e fugiu ao mundo nos episodios sucessivos de policias fortes, lindos, inteligentes e americanos. O fantasma da velha pairou-lhe na mente mais uns dias. Umas semanas depois, dessa vez, bem acordada, num sabado de manha, enquato aspirava o chão da sala, viu-a bem. Inteirinha, nem esfumada nem nada. A imagem completa, refletida no espelho em frente à porta da rua. Era enrugada, magra e pequenina. Tinha o cabelo encaracolado branco e marcas nos braços de quem passou muito tempo a soro. Um vestido leve tipo bata clara com flores azuis e um andarilho de aluminio à frente. Viu-a por um instante. Mas viu bem. Curiosamente não se assustou. Continuou a aspirar. Depois comeu uma sandes de queijo fresco e foi tomar banho. À tarde contou à sua amiga Rita, que faz reiki e é assim meio espiritual. Caraças, pá miuda, temos de ver o que é isso e quem é essa velha!!! A Rita ficou entusiamada e marcaram logo uma “sessão energetica” para essa noite. Inclusive a Rita, até desmarcou um jantar que tinha com um mais-ou-menos namorado. Ligaram à Maria João, uma amiga da Rita que é mais graduada no Reiki e nos anos de solteira. Jantarm as tres frango assado e nem beberam o vinho verde que gostam porque a João, disse que o espirito podia ficar ofendido. Sentaram-se a volta da mesa da sala, acenderam umas velinhas redondas de por dentro de copos (eram as unicas que tinham), apagaram a telivião e deram as mãos à volta da mesa. A João presidia a cerimonia com uma voz profunda. –Espirito que aqui vives nesta casa, por favor apresenta-se aos teus irmãos vivos e da-nos um sinal. (Pausa) Espirito que aqui veves nesta casa, por favor apresenta-se aos teus irmãos vivos e da-nos um sinal. Nada.Nem vozes, nem corrente de ar, nem velas a apagar. Nada. Apenas um silencio frio e desconfortavel. A João voltou a repetir o apelo, um apelo sério...como aqueles dos carros mal estacionados nas caves dos hipermercados... mas em tom mais lento e pesado. E um esprito timido, as vezes acontece, sobretdo se são mulheres.... Na cozinha, um copo cometeu suicidio lancçando-se para o chao, do alto do escorredor onde estava deitado acabado de lavar e à espera de secar.. Um copo grande de agua com riscas amarelas. Vidro grosso. Gritaram as tres o susto. A João sorriu conhecedora e a Rita ficou arrepiada. A Vanda foi a correr acender as luzes e varer chão da cozinha. Acabou-se logo ali a sessão. Decidiram sair. Foram a um bar ouvir musica brasileira e beber umas caipirinhas que custaram os-olhos-da-cara-mas-um-dia-não-são-dias. A Vanda nessa noite acabou por ir dormir a casa da Rita que ficou impropria para conduzir. Depois da sessão e do copo a partir-se, a velhinha começou a aparecer mais vezes. Passou a ser uma presença quase la em casa. A vanda foi-se habituando ao perfume madeiras do oriente. Passaram-se meses desde que o copo caiu do escorredor. Uma tarde destas, cruzou-se com a João na rua. – Vanda, temos que fazer outra sessãozinha la em tua casa, mas desta vez, levo uma defumação, para expulsar o espirito... A vanda indignou-se! – Expulsar?? Nem pensar nisso, faz-me mais companhia que o meu ex e dá menos trabalho que um gato, não preciso de lhe andar a ver as mesagens do telemovel nem de lhe mudar a areia da caixa!!!!

Fotografias da Loura

A loura Norma Jean, nasceu em Los Angeles em 1926. Passou a infância em orfanatos e lares adotivos onde o padrão de abuso e fuga se foi sucedendo dos doze aos quinze anos. Com dezasseis casou—se pela primeira vez e foi trabalhar numa fábrica de material de guerra. O marido gostava mais de copos do que dela e por isso separa—se com dezanove. É então que se envolve com um fotógrafo que a convence a fazer algumas sessões de fotografia. Faz muitas fotografias. Fotos de moda, artísticas, com roupa, sem roupa, em estúdio, ao ar livre, em casa... centenas de fotos. Depois envia para agências e algumas vezes é chamada para fazer mais fotos. Mantém o trabalho para pagar a renda e as sopas de tomate enlatadas que eram a base da sua alimentação. Ainda a trabalhar na fábrica, começa a ir a castings para filmes. Em 47 chegam os primeiros trabalhos para cinema, ainda pequenos papéis. Os papéis vão crescendo à medida que o talento vai sendo reconhecido e os manda—chuva dos estúdios reparam nela. Muda de nome para Marilyn Monroe e continua a crescer. No início dos anos 50 é já uma das mais novas e brilhantes estrelas no universo de Hollywood. Em 1953 o jovem Hugh Marston Hefner cria uma revista com fotografias de mulheres nuas a que chama PlayBoy e prepara o primeiro número para sair em Dezembro. Procura fotógrafos e modelos dispostas a pousar para a sua publicação. É então que lhe aparece um tipo a vender—lhe umas fotografias inéditas da vedeta de Hollywood Marilyn Monroe, tiradas uns cinco anos antes...As fotografias dizem que a modelo se chama Norma Jean... Mas vê—se bem que é ela. O fotógrafo pedia uma fortuna pelas imagens, mas o Hefner, que de parvo não tinha nada, arranjou—se como pode e pagou o dinheiro que lhe pediram até ao último cêntimo garantindo a exclusividade. Claro que não é preciso de dizer que a revista foi um êxito total. O escândalo associado às fotos da Marilyn promoveu ainda mais a PlayBoy. Os patrões dos estúdios para quem a Marilyn trabalhava quiseram processar a revista e sacar ao Hugh Hefner "tudo tudo o que tivesse até ao último tostão". Os advogados esfregavam as mãozinhas sapudas de contar dinheiro. Nos jornais os editores e directores preparavam—se para uma cobertura sangrenta. Mandaram jornalistas e paparazzi, voarem a direito, guiados pelo cheiro do sangue e da carne. Assim que a jovem Marilyn saiu à rua, caíram—lhe em cima com flashs e perguntas venenosas. A moça, superiormente inteligente, naquela voz entre o o ingênua e a cama arrasou: — Processar a Playboy? Porquê? Não acham que fiquei bem nas fotografias? Sou uma trabalhadora, e quando fiz aquele trabalho fui paga para o fazer, e bem paga, adianto que ganhei mais naquela tarde de fotografias do que o que me pagavam por uma semana na fábrica! O escândalo morreu ali.