quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O brinco de pérola

Toda a intuição fluiu para a ponta do dedo dela. Milénios de sagrado feminino concentrados e focados dentro do Opel Corsa. A magia e o esoterismo pagão e a força de ser mulher centrados naquela da unhinha de gel. Era o braço de uma fada que apontava. Um braço ancestral que miraculosamnente escapou ao corpo de uma bruxa a quem fogueira da inquisição assou. Uma varinha mágica, um varinha de condão a indicar. Na ponta do braço, o dedo, na ponta do dedo a unha. Todos a apontarem. A voz saiu enganadoramente calma. Talvez um decibél mais alto e meia oitava mais aguda. -- Quem é que deixou ficar aquele brinco ali caído no banco de tras? Ele, um mero mortal, sem poderes especiais. Como dons tinha apenas a capacidade extraordinária de imitar rolas e jeito snoker, engoliu em seco. Olhou e viu no escuro do estofo do banco de trás uma pérola que era um brinco. Os milésimos de segundo demoraram uma eternidade até conseguir responder: -- Nao faço ideia... E disse a verdade. De facto não fazia ideia de quem fosse o brinco. Ela, consubstanciando todo o poder de ser mulher, muito calmamente, prosseguiu: -- Então quem é que sabe? Não és tu que andas com o carro? Ele disse que sim com a cabeça. Mas continuou mudo. Ela, numa epifania de luz, reconheceu o brinco de pérola das orelhas adolescentes da própria filha. Interiormente sorriu reconfortada. Mas nao baixou a guarda. Manteve o ar de caso e deixou em aberto o assunto: -- Vou guardar, pode ser que apareça a dona. Ele, sem vontade de prosseguir o diálogo, tentou comprar-lhe o esquecimento com gastronomia estrangeira e disse: -- Hoje faço spagueti carbonara para o teu jantar que sei que gostas e já não comes há muito tempo. Ela em silencio disse que sim e guardou o brinco de pérola para devolver à miúda. Ele, que detesta massa, cozinhou a carbonara esmerando-se no ponto. Nessa noite sonhou com poder a bomba de neutroes em forma de um brinco de perola esquecido no banco de trás.