quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O brinco de pérola

Toda a intuição fluiu para a ponta do dedo dela. Milénios de sagrado feminino concentrados e focados dentro do Opel Corsa. A magia e o esoterismo pagão e a força de ser mulher centrados naquela da unhinha de gel. Era o braço de uma fada que apontava. Um braço ancestral que miraculosamnente escapou ao corpo de uma bruxa a quem fogueira da inquisição assou. Uma varinha mágica, um varinha de condão a indicar. Na ponta do braço, o dedo, na ponta do dedo a unha. Todos a apontarem. A voz saiu enganadoramente calma. Talvez um decibél mais alto e meia oitava mais aguda. -- Quem é que deixou ficar aquele brinco ali caído no banco de tras? Ele, um mero mortal, sem poderes especiais. Como dons tinha apenas a capacidade extraordinária de imitar rolas e jeito snoker, engoliu em seco. Olhou e viu no escuro do estofo do banco de trás uma pérola que era um brinco. Os milésimos de segundo demoraram uma eternidade até conseguir responder: -- Nao faço ideia... E disse a verdade. De facto não fazia ideia de quem fosse o brinco. Ela, consubstanciando todo o poder de ser mulher, muito calmamente, prosseguiu: -- Então quem é que sabe? Não és tu que andas com o carro? Ele disse que sim com a cabeça. Mas continuou mudo. Ela, numa epifania de luz, reconheceu o brinco de pérola das orelhas adolescentes da própria filha. Interiormente sorriu reconfortada. Mas nao baixou a guarda. Manteve o ar de caso e deixou em aberto o assunto: -- Vou guardar, pode ser que apareça a dona. Ele, sem vontade de prosseguir o diálogo, tentou comprar-lhe o esquecimento com gastronomia estrangeira e disse: -- Hoje faço spagueti carbonara para o teu jantar que sei que gostas e já não comes há muito tempo. Ela em silencio disse que sim e guardou o brinco de pérola para devolver à miúda. Ele, que detesta massa, cozinhou a carbonara esmerando-se no ponto. Nessa noite sonhou com poder a bomba de neutroes em forma de um brinco de perola esquecido no banco de trás.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Tavira 1846

Acabou-se com a pena de morte em Portugal porque a forca deixou de ser eficaz para partir os pescocos dos condenados. Vinham na sua maioria a baixo do peso. Com a fome generalizada do pós guerra civil que acabou em 1834, foram muitas as familias desfeitas e a criminilidade alastrou pelos campos e cidades. Crimidalidade violenta, porque eram tempos violentos. Acossados pela fome, bandos de ex-soldados e as suas familias desfeitas, deambulavam pelos campos e periferias, feitos zumbies. O Domingos, era filho de uma prostituta juvenil que morreu quando ele tinha doze anos e o deixou só pelas ruas sujas da zona do Porto de Olhão. Nunca conheceu o pai. Cresceu franzino entre a fome, o peixe roubado no porto e as sopas de couves da prisão. Com vinte anos, vivia de roubar na estrada que mais tarde seria a 125. Uma noite entrou numa casa, na Luz de Tavira para roubar. A dona da casa, uma velhota que tinha umas pratas, estava acordada e não colaborou. O Domingos bateu-lhe e a senhora morreu. O neto da velha, ouviu barulho e o Domingos tambem lhe bateu até o matar. Tinha doze anos o garoto assassinado. Cauteloso, o Domingos fez uma busca à casa e encontrou a criada escondida. O assassino já conhecia a prisão e não quis deixar testemunhas: estrangulou a rapariga de dezoito anos. Na semana seguinte, foi vender um relógio e umas rendas que roubou na casa da Luz de Tavira. Foi a um recepatdor de Olhão que o denunciou à polícia pelas rendas e escondeu o relógio. O Domingos foi julgado em Tavira.O juiz fez o que todos exigiram: condenou o ladrão e assassino à pena maxima. Morte por enforcamento. No dia 24 de Novembro de 1845, pela manhã levaram o Domingos para o cadafalso. A execução era um acto público. O carrasco mandou-o subir para a plataforma. Pôs-lhe a corda ao pescoço e empurrou. Ao contrário do que faziam os seus colegas mais experientes, não se sentou nas cavalitas do enforcado para acelerar o processo. Nem sequer se pendurou no corpo para fazer peso. Na realidade, o Domingos estava sujo e tinha piolhos. Além disso, nos enforcamentos, o enforcado antes de morrer, suja-se urinando, evacuando e ejacuando. O carrasco cumpriu a lei e seguiu à risca os procedimentos. Fez, testou, ajustou e apertou o nó no pescoço do Domingos, empurrou e deixou a gravidade fazer o resto. Mas os vinte e dois anos de fome do Domingos não lhe davam peso para lhe partir o pescoço. O Domingos ficou a balançar com convulsões durante mais de um quarto de hora. Do seu corpo sairam os líquidos os sólidos e os sons proprios da morte. O padre benzia-se, o juiz dizia que não em silencio e os expectadores impressionados sussurravam. Ao fim de um quarto de hora o médico mandou descer o enforcado para declarar o óbito. No chão do largo, o enforcado devagar foi retomando a respiração. O director da prisão chamou o carrasco, e deu-lhe uma descompostura. Mandou-o acabar o trabalho. O funcionário público que tinha como função matar, pegou na pistola e disparou na cabeça, pondo fim ao espectaculo. Mas a coisa nao ficou por aí. A coisa foi divulgada nos jornais da época e chegou à constituinte. Escreveram-se rios de tinta. O carrasco foi julgado e passou uns meses preso por ter usado uma pistola, contra aquilo que determinava a lei. Aos deputados, modernos, exigia-se ou novos métodos de execução ou uma politica alimentar pública que acabasse com a fome endêmica. Depois de muito discutirem e pensarem, decidiram pelo fim da pena de morte. Apartir dessa histórica data anuncia-se, ensina-se e propaganda-se que somos um país humanista. Brandos costumes.

domingo, 22 de setembro de 2019

Perfumado

O Jairo calou se e engoliu o insulto. O patrão vinha mal disposto. Patrão não, colega e amigo, como ele próprio diz. Aqui a trabalhar ao vosso lado mas com a responsabilidade de vos pagar as férias e a segurança social e pagar aos fornecedores...e a mim? E a mim, quem é que paga? A mim ninguem paga! Sou eu quem vos pago o salário e vos encho o cu de todo, do bom e do melhor e vocês? Uns chulos. Mantanas! Não querem fazer a ponta de um corno. O aprendiz, mesmo não sendo sua competência, pegou na vassoura e pôs-se a varrer a oficina evitando juntar muito lixo para não desfazer no trabalho da senhora que faz a limpeza e os almoços. E estou-me a cagar se não gostam de me ouvirem falar. A porta da rua é serventia da casa. Esta empresa é minha. Fui eu que fiz esta casa. É a mim que os clientes pagam ou ficam a dever. Eu é que sou esta empresa. Eu. Os braços abertos à espera de aclamação pelo sucesso acumulado na conta bancária. O silêncio dos empregados confirmava a seriedade do momento. A rapariga que no gabinete com ar condicionado, ia dizendo claro e que sim. A moça que já nao é tão moça, faz a escrita, organiza as faturas, mexe no computador a pedir pecas aos fornecedores, telefona para os clientes a dizer que os carros estão prontos e como se tudo isto não bastasse, acumula com a função de animar a oficina com o abanar do generoso e proeminente rabo, alegrando a vista ao patrao e aos clientes especiais. Os empregados e fornecedores não podem olhar que é falta de respeito. Quando o patrão vem maldisposto de casa e decide ensinar sociologia e economia laboral aos trabalhadores, é ela quem tem o trabalho de verbalizar a concordancia com as verdades que o empresário propaga. Foi ela quem o acalmou e evitou o chelique total quando vieram com a ideia do subsidio de refeição. Para fazerem exigências estão sempre prontos! Foi ela quem pôs o patrão a falar com o contabilista e na semana seguinte a arrecadação onde guardavam os peneus estava teansformada em copa e refeitório onde a senhora da limpeza por mais uma hora cozinha o almoço para os empregados com as mercearias e os restos que o patrão traz de casa. Tudo de bom e do melhor, para vos encher essas peidas gulosas! Hoje como é dia de pagar o iva, ja se adivinhava e esperava o ataque. Temporario, certo, mas intenso e explosivo. Ando aqui a esfalfar-me a trabalhar para me roubarem. Todos a querer sacar dinheiro. É os salários que vos pago, os almoços as férias e três em três meses vem o estado dar-me mais uma facada! La para trás enquanto lubrificava o torno, o Pereira, o mecanico mais velho da oficina, sussurrava para o Jairo que nos seus dezasseis anos e acabado de entrar para aprendiz se foi aproximando enquanto varria. -- Então faz lá as contas: ganhas três euro à hora, o gajo cobra aos clientes 35 euros à hora pela mão de obra que és tu que fazes.. Digamos que cinco euros são para despesas...Agora diz-me tu, para onde é que vao os outros vinte sete euros? O rapaz, que era miúdo, mas não era parvo, ia dizendo: -- Para o porshe, para o landrouver, para a casa de verão, para a coutada de caça, as compras da patroa, para as viagens com a amante, para a agua de colónia com que se perfuma.. -- E quem é que produz esses vinte sete euros? Continuava o Pereira... Nisto, o patrão, numa pausa do discurso, ouviu "vinte sete euros". Vinte sete euros do quê? Que vinte sete euros? Tenho de pagar mais, é? --Não é nada de importante senhor Rosa... É que a minha mulher viu a venda um daqueles perfumes de casa de banho que custava vinte sete euros...Veja lá, vinte sete euros é muito dinheiro...eu estava a dizer que um cagalhao perfumado, mesmo com um perfume de vinte sete euros, pode até cheirar bem, mas não deixa de ser um cagalhao... Fez-se silencio. E o silencio foi quebrado pela gargalhada do patrão que riu boçal. Tinha-lhe passado a fúria. Os empregados tambem riram. O Jairo e o Pereira continuaram a trabalhar, a falar baixinho e a fazer contas. Á espera do momento de rir no fim. Que já se sabe que é quando se ri melhor.

sábado, 21 de setembro de 2019

A importancia de nos chamarmos Menor

Foi numa noite dessas de fim de verão que o meu pai me contou a versão alargada. Uma noite amena sem ser quente, humida sem ser fria e com aquele luar que convida à contemplação. Ficamos à mesa em familia, debaixo das estrelas a cortar lascas de queijo empurradas com vinho tinto. Depois veio o medronho, caseiro, envelhecido e com frutos macerados. Forte, quente e suave, a lubrificar a memória e evocar casos e historias antigas, daquelas guardadas no baú das mais preciosas jóias de família que são as recordações dos nossos. O meu pai contou-me o caso como ouviu ao pai dele. Se lhe acrescentou pontos, fez por considerar necessário.E eu registo aqui para que os meus filhos a possam memorizar e um dia contar aos seus filhos e aos filhos dos seus filhos. Cá vai. Era uma vez um campones da aldeia de Cabeça Gorda, nos arredores de Beja, cujo nome proprio desconhecemos mas que tinha Abreu no sobrenome. Este Abreu tinha três filhos. Os rapazes terão nascido na decada de 1880. Um deles chama-se José, ou outros dois digamos que João e António, mas desses nomes não temos a certeza. No virar do seculo, aos rapazes já adolescentes espigadotes e com personalidade propria, é sugerido irem tratar de fazer o registo civil para obterem documentacao. Parece que era obrigatório. O Registo Cívil , por decisão do Estado Português era feito nas paróquias. Isto na moderna monarquia constitucional que se viveu depois das guerras civis de 1800, que aprovadou um decreto em 1878 em que delega aos padres a tarefa do registo da populacao. Acontece que aos tres manos Abreu, não lhes caia bem nem o padre, nem a igreja. Seja por perguiça, seja por teimosia herética, seja opção, o que é certo é que foram atrasando ida à igreja para dar o nome ao padre que devia fazer os registos. O padre, pressionado pelo administrador do concelho de Beja que queria os registos actualizados, ia mandando recados pelas beatas: -- Digam aos rapazes do Abreu que têm de vir a missa para depois eu regista-los! As beatas da Cabeça Gorda, obedientes e cumpridoras, levavam os recados do padre aos moços que as iam ignorando. Mas avessos a padres e a missas, os rapazes riam das beatas, do padre, do registo civil, do bispo, do administrador, do rei e de deus, e ao ritmo lento e pressistente do baixo Alentejo iam deixando andar. Mas o mundo é redondo e andas às voltas, e mesmo numa terra grande como a Cabeça Gorda de 1900 os encontros nefastos dão-se. Um dia, é o proprio padre que se cruza com o Zé, o irmão do meio e o manda ir à igreja fazer o registo. Não lhe pediu, não o informou da necessidade, nem sequer o convocou. Mandou. O Zé, nos seus catorze anos, já tinha a sua personalidade. Muito mundo andado e muitos dias de trabalho à jorna. Não apreciava de padres, nem arrogancias, não queria ir a igreja, não gostava de ser mandado nem gostava de mandões. Por isso respondeu a matar: -- Se quiser fazer o registo faça o registo na rua ou em estando a chover, faça na venda que na igreja eu não entro! O padre, vendo que não adiantava ameaçar com inferno aquele chavalo auto-excomungado e sem a santa inquisicao para poder ensinar o respeito aquele jovem herege, deu-lhe como penitência o castigo ao alcance do poder sa sua batina. -- Ai nao vais? Pois vais ficar para sempre menor! E assim foi. O padre da Cabeça Gorda fez o registo com José Menor. Aos outros dois irmãos, igualmente teimosos e solidários na briga herética do irmão Ze, o padre chamou ao mais velho Barbado, porque ja tinha barba grossa aos dezasseis anos e ao mais novo chamou Pisco, porque era magrito e era conhecido por gostar de comer azeitonas. O Zé Menor, meu bisavo, como não se estava a dar bem com o clima da Cabeça Gorda, foi trabalhar como fogueiro para a Estação de Casabranca. Por lá ficou e por lá foi fazendo filhos. Chegaram a adultos sete. Todos Menor. O meu avô António entre eles. Conta o meu pai que nos anos sessenta ia visitar o avô Ze Menor que nessa altura estava a viver no Escoural e invariavelmente o encontrava a ouvir em segredo uma telefonia a pilhas sintonizado na Rádio Moscovo. O meu pai adolescente, do Barreiro e atento ao mundo, perguntou-lhe um dia: -- Avô, porque é que ouve sempre essa estação? -- Porque tem as músicas mais lindas e não passa missa. Morreu com perto de noventa anos, sem se confessar, anticlerical e secretamente comunista. Usar o sobrenome Menor, conquistado assim na guerra contra o clero obscurantista é um legado que trago ao peito como uma condecoração e deixarei aos meus filhos como herança. O medronho não. O medronho não pretendo deixar como herança. Porque lhes pode fazer mal aos fígados e porque a garrafa já vai a meio.

domingo, 30 de junho de 2019

Tinto com cuscus

São ambos holandeses. Ela filha de pais portugueses no papel e angolanos no coração. Ele filho de pais argelinos muçulmanos. Conheceram-se nos noventa no liceu em Roterdão. Namoraram e seguiram viagem. Ela por volta do dois mil foi para Londres fazer um curso de cozinha vegetariana. Ele acabado o liceu começou a trabalhar com o pai como técnico de frio. Não se viram durante vinte anos. Reencontraram-se no facebook. Ambos tinham trabalho, ambos sem filhos, ambos separados de fresco. Voltaram ao febril amor da adolescência via skype. Combinaram passar um fim de semana em Paris na primavera de 2016. Falavam um com outro em holandês mas amavam em português com sotaque angolano e árabe com sotaque argelino. Voltaram juntos para Roterdão onde ele tinha casa e decidiram continuar juntos. Ela depressa abriu uma empresa de catering vegan. Ela em casa não cozinhava e ele todos os dias fazia comida argelina adaptada ao gosto e às restrições alimentares dela. No verão vieram a Portugal passar férias a Corroios onde vive a família dela. Ele não bebia alcool. Ela usa saias curtas a mostrar as lindas pernas mulatas. Ele tem um irmão mais novo que passa os dias na mesquita a recitar o Corão. Ela tem primas da mesma idade deusas da kizomba do Ondeando. Ele provou vinho e tentou dançar. Ela apanhou o sol da fonte da telha e conheceu parentes de Benguela. Quando o verão de 17 acabou voltaram juntos para Roterdão. Ela levava uma gravidez a fazer-lhe inchar as mamas. Ele levava o gosto pelo tinto alentejano e uma vaga memoria de uns passos de dança. Em Roterdão ele encontrou um supermercado que vendia garrafas de vinho alentejano. Chegou rápido o outono ele continuou a beber. Trabalhador, responsável, e pontual, chegava a casa as cinco embebedava-se até as oito, comia a sopa que ela fazia com mais um copo de vinho e as nove ia para a cama ressonar e destilar o Borba. Ela perdeu o bebé na altura do natal. Ele bebeu para esquecer. Ela lixada, meteu-lhe os cornos com a vizinha do lado, uma alemão parecida com a Ikko Ono, nascida no Vietname. Ele continuou a beber. Ela mudou-se para casa da Iokko Ono. O irmão mais novo levou-o para a mesquita e ele deixou de beber. Ela e a namorada, juntaram uns cobres e vão abrir um restaurante vegan na costa. Ele continua a ser um excelente técnico de frio, bem pago e financia uma escola no Iemenn. Ela está bem, já quase que fala português sem sotaque e ri-se dos galantes avanços dos primos sobre a namorada. Ele sente a falta do cheiro do cabelo dela quando se deita às nove da noite. Ela sente a falta do cuscus com grão e sumo de laranja que ele fazia para ela. ... Que se foda o banco central europeu mais as suas politicas economias. Mas nunca em nenhum momento da historia foi possível amar em tantas línguas do mundo como nesta Europa que vivemos. ... Pra semana vou a Costa comer caril vegan com chucrute!

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Cães de espeto

Isto de virar frangos é coisa ibérica. Os europeus a sério, os do norte, há muito que inventaram os espetos rotativos. A peça de carne, ao rodar sobre as brasas ou metida num forno às voltinhas, deixa o assado muito mais homogéneo e permite guardar os sucos da carne. É por isso os ingleses criaram mecanismos complicados de rotação das peças de carne em espetos garantindo num assado lento e de rotação continua, uma degustação cinco estrelas. A chatice era estar ali a dar à manivela sempre a mesma velocidade durante horas seguidas, pois quanto mais lento é o assado, mais saborosa fica a carne... Os ingleses do renascimento, os ingleses ricos, entenda-se, tinham em casa umas gaiolas pregadas à chaminé com umas rodas grandes, tipo daquelas dos hamsters, mas com um metro de diâmetro onde punham cães a correr para rodarem a carne... Desenvolveu-se mesmo uma raça de caes especialistas nesse trabalho, que são os antepassados dos teckel, vulgarmente conhecidos pelos salsichas, cães de caça alemães descendentes esses canitos de pernas curtas e corpo comprido, adaptados para a roda do espeto. Mais tarde, já no século XVII, algumas casas inglesas, substituíram-se os cães pelos gansos. Menos inteligentes que os cães, não se escondiam ou fugiam, quando chegava à cozinha carne para assar. Os gansos eram mais lentos na roda, não davam tantos problemas como os cães. Na colónia norte americana, a introdução dos gansos não foi tão bem recebida, e nos estados americanos, sobretudo da costa leste, qualquer burguês que se presasse tinha na cozinha uma gaiola com dois ou trâs cães de porte pequeno, especializados na roda do espeto. Os cães ficavam fechados na jaula e quando saiam, já se sabia que era para assar a carne. Quando os estados unidos, entraram na modernidade, deixaram de ser uma colónia, tornara-se independentes, assinaram uma constituição e exterminaram os índios, mas continuaram a ser os cães a assar-lhes as peças de lombo. Entretanto apareceu o Henry Bergh, um cavalheiro que era empresário e embaixador, e que viveu cheio de boas intenções. Na sua carreira de diplomata, conheceu em Londres uma organização que tinha sido recentemente criada: Sociedade Real da Inglaterra para a Prevenção da Crueldade contra os Animais. Quando voltou lá à terrinha dele, o Bergh propôs à Assembleia Legislativa do Estado de Nova York o reconhecimento da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais. Isto aconteceu em 1866 no ano a seguir ao final da guerra civil. Esta associação que ainda hoje existe, foi quem fez aprovar uma das primeiras leis contra a crueldade sobre animais no mundo. Foram este activistas ligados ao Henry Bergh quem exigiu pela primeira vez a criação de ambulâncias para cavalos feridos e quem mais violentamente se manifestaram contra a utilização de cães nas cozinhas e rodas de espeto. Fez-se mesmo uma campanha contra os cães de trabalho nas cozinhas dos restaurantes. O Henry Bergh dominava bem as relações com a imprensa que fez com que pouco a pouco se deixassem de usar cães nas cozinhas para assar carne. Esta sociedade de protecção dos animais fazia visitas surpresas aos restaurantes e se verificasse que tinham cães nas cozinhas a fazer rodar os espetos, os jornais denunciavam a situação e o pessoal da defesa dos animais fazia campanha para que o publico boicotasse os restaurantes em causa. Finalmente, por volta de 1870, foi aprovada uma lei e os restaurantes e deixaram de usar cães nas cozinhas. Com o fim da guerra civil chegaram às grandes cidades do norte, dezenas de milhares de famílias que vinham dos campos do sul, agora arrasados. Pessoas que tinham sido escravizadas e chegavam sem nada de seu, em vagas, em busca de trabalho e um sitio para dormir. A lei contra os maus tratos dos animais pressionou os restaurantes, mas foi a economia com os seus argumentos de marreta esmagaram a questão: ficava mais barato ao dono do restaurante contratar crianças negras e pagar-lhes com os restos da comida que sobrava, do que ter gaiolas e cães a rodar o espeto! Os cães a trabalhar nas cozinhas passaram definitivamente a ser coisa do passado. A primeira lei contra o trabalho infantil nos estados unidos foi aprovada em 1938.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Maia datcha

Aqui há umas duas semanas tive uma reunião de trabalho num daqueles edifícios antigos e remodelados da Graça. Fantástica vista sobre o rio e margem sul. Mesmo por cima da estação de Stª. Apolónia. Atravessei o rio cedinho e decidi-me por andar até à estação de comboios que era ponto de encontro marcado. O sol de finais de Julho por volta das oito da manhã ainda não queima e Lisboa de manhã convida ao passeio. Cruzei o Jardim do Campo das cebolas na direcção à casa dos bicos. Entre duas palmeiras crescidas e protegida pelos contentores do lixo ficou organizada a instalação – arte pós moderna: Um carro de supermercado cheio de garrafas vazias. A estrutura que resta do que foi um aparador de sala. Uma mesa de esplanada da em plástico branco com uma perna partida. Caixotes de papelão dobrados a fazer de cama e um cobertor imundo em cima. Sentado sobre uma lata de tinta vazia estava um eslavo enorme com uma bebedeira ainda maior que ele.  Descontente com a organização do mobiliário urbano, empertigava-se um policia. Indiferente e à espera, uma equipe de trabalhadores câmara de Lisboa. Pressionado pelos taxistas e na insegurança dos seus vinte anos e estatura mediterrânea o jovem policia com sotaque do porto que disfarçava, tentava impor respeito ao gigante russo: -- Bamos lá a desocupar a bia que as funcionarias camarárias querem fazer o trabalhinho delas!!! As três senhoras fardadas de verde da CML falavam entre si em crioulo e assistiam à cena como se fosse uma telenovela. O russo fingia que não ouvia o bófia e ia-se rindo... Por insistência dos taxistas, lá abandonou o seu posto permitindo às empregadas da limpeza armadas de ancinhos arrancarem a merda de pombo à relva do jardim!!! O policia impressionado com a insolência do russo que se foi sentar num dos bancos do jardim a despejar um pacote de vinho pôs-se na conversa com os taxistas. Um fogareiro dos mais velhos, desabituado de ter a autoridade tão próxima sem ser para passar multas, ia comentando: -- Olhem para isto, até tem limpeza ao domicilio de borla!!! Casa com jardim , vista para o Tejo, um policia a fazer segurança e três pretas para lhe limparem o jardim. Parece um ministro!!! É para isto é que eu ando a pagar impostos!!! Solidário com a gargalhada geral dos taxistas e do bófia, o russo respondeu; -- Eta maia datcha bled, eta maia datacha!!! Como nem o policia nem os taxistas percebem russo continuaram com as gargalhadas de sarcasmo. -- O russo traduziu: é minha casa de campo, pá, é minha casa de campo!!!! Todos rimos. Com esta ideia de casa de campo do mendigo eslavo segui para o meu trabalho deixando os taxistas mais o policia e as jardineiras a rirem ao sol... À medida que a manhã foi aquecendo a gravata foi sufocando. À minha memória voltou várias vezes o russo bebado e sorridente. Com a subida da temperatura à hora de almoço, desenvolvi uma inveja furiosa do russo privilegiado que acorda para beber!!! Com esta ideia politicamente incorrecta e com ganas de auto agressões hepáticas continuei a trabalhar o resto do mes para pagar ao banco a hipoteca da casa onde moro. Mas há uma vozinha dentro de mim que me manda correr para a casa de campo em frente à casa dos bicos. Sinto uma vontade persistente de ficar a embebedar-me com vinho ordinário. Despir a camisa e ir respondendo em russo aos sarcasmos dos policias e dos fogareiros e ficar deitado no banco de jardim a desfrutar do sol de Lisboa.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Tempero para a isca

Estava calor e humidade. O ar cheirava a gasóleo, a mar, a estufa, a lixo e a fruta podre. As baratas do tamanho de pardais, voavam à volta do candeeiro da rua que iluminava e o grelhador improvisado numa lata com a luz amarela. Na cozinha que dava directamente para a rua, a mulher do amigo preparava o funge e de tomate picado com cebola e gindungo. Nós vigiávamos a galinha no churrasco e emborcávamos minis tiradas de um bidon com agua e icebergues do tamanho de melões. Éramos os dois convidados da dona da casa, uma mulata gorda, cunhada do meu amigo e irmã mais velha da sua mulher. Desde quinze anos quinze anos que toma conta dos irmãos. Aos vinte já tinha o peso e a postura das matriarcas africanas. Fala calmo e severa e toda a gente à volta naturalmente lhe obedece. Preparava-se para sair. Tomou banho e o seu perfume chegou-nos antes de a ouvir falar claro: -- Vou no aeroporto buscar o Elias. Não deixem chegar o fogo na galinha nem fiquem bêbados logo antes de chegar o Elias. Especialista diplomado em churrascos, o meu amigo respondeu: --- Vai na boa que eu mantenho debaixo de olho os dois inimigos presentes: não deixo o fogo chegar à galinha nem o branco chegar às cervejas... Partiu com uma gargalhada inesperada na sua expressão sempre severa e nós abrimos mais duas minis. --- Mas quem é o Elias que ela vai buscar? Perguntei na minha ingenuidade --- É o namorado da minha cunhada. Namoraram na infância lá no mato, daqueles namoros de putos e não se viram durante uns 12 anos. Quando foi da guerra ela deixou de receber as cartas. Depois veio a Internet e reencontraram-se. No ano passado ela foi ter com ele a Luanda. E agora, não estão mais de seis meses sem se ver... Da cozinha veio a irmã da dona da casa dar pormenores românticos à historia. Fomos bebendo e falando. Parece que o rapaz foi raptado pela Unita que atacou a aldeia onde morava... teria uns treze anos e fizeram dele soldado à força. Passou um bocado...viu matar familiares e amigos... Ficou com eles sete anos até conseguir fugir e juntar-se às Fapla. --- Então e como é que os gajos do MPLA souberam que o tipo está a dizer a verdade e não era um provocador, um infiltrado??? Um gajo que trai uma vez... Perguntei eu, que gosto de livros de espiões, enquanto fazia xixi atrás de um carro para não usar a casa de banho da casa que alem de ser longe estava imaculada. ---Não sei... mas o gajo deve estar ai a chegar e depois perguntas... Metemos o terceiro cadáver de galinha na grelha sobre as brasas e bebemos para evitar a desidratação. Não esperamos muito mais. Estavam a chegar. Ao contrario do rambo que eu esperava ver chegar, o Elias não tinha físico para apanhar duas estaladas. Negro retinto e muito magrinho, enfezado, com o peito para dentro e uns cinquenta e cinco quilos no máximo. Saiu do carro e caminhou na nossa direcção um pouco dobrado para a frente. Trazia com um bigodinho ralo e um olhar triste, uns ténis nike brancos e calças de ganga. Vinha a dançar dentro de uma camisola do Futebol Clube do Porto tamanho M que lhe ficava três números acima. A dona da casa comandou as operações: -- Fica aí com esses dois a beber uma cerveja. O preto é caboverdiano, meu cunhado e vive com a minha irmã mais nova, o outro, o pula é amigo da família e está de passagem. São fixes mas muito abusados... Vê se não começas já a ganhar os maus hábitos. Rimo-nos os três uns para os outros. Abrimos mais cervejas passamos-lhe uma gelada. -- Xii dói o dente do frio da cerveja... não tem ai menos fria?? Desabituei de beber cerveja gelada... Quando tava no mato não tinha agua quase nunca e não tinha cerveja quase sempre... Fui à cozinha e tirei uma mini da ultima grade que metemos no frigorífico. Estava praticamente morna. Voltei à rua com a garrafa na mão. Abri e dei-lha. Como sou um descarado, perguntei-lhe. -- Olha lá Elias, ouvi dizer que estiveste na mata com a unita e depois voltaste para as Fapla. Como é que convenceste os tipos do MPLA que não eras um provocador nem um espião infiltrado? Olhou para mim e sorriu o sorriso tímido que mostrava os dentes brancos regulares: -- Pois não foi fácil. Mas eu fiquei firme. Sete anos até ter a confiança dos chefes, só faltava conhecer o Savimbi. E quando eles já confiavam tudo em mim, eu trouxe uma patrulha de doze para perto de um quartel dos nossos capturei eles. – Capturaste doze homens armados sozinho? – Sozinho não! Foi com a ajuda do feiticeiro que eles tinha que também não queria ficar e eu disse nele que nas Fapl pagavam mais no feiticeiro ! Então o kimbanda fez um chá com raízes para por na comida, que pôs todos eles para dormir. Depois nós dois, foi só amarrar eles. O bruxo ficou a tomar conta dos inimigo e eu fui chamar as Fapla. Quanda as Fapla chegou mandou eu mais o bruxo matar todos para mostrar que não éramos traidor. E nós mandamos eles cavar um buraco assim de grande (os braços abertos envolvendo a enormidade do buraco) sentamos eles lá dentro a dizer que tinha de ficar a espera do transporte que os levava para a prisão em Luanda para serem trocados por outros prisioneiros.. com duas granadas matamos e enterramos todos no mesmo tempo!!! Ficamos em silencio com o pragmatismo e a simplicidade da resposta. Só se ouvia a gordura da galinha a chiar nas brasas. Para desanuviar o meu amigo perguntou: -- E esse feiticeiro que estava contigo? Agora também está em Luanda? -- Não. Eu chamei ele para falar comigo no mato, ele veio e eu só matei ele. Eu matei ele logo mesmo. Era um feiticeiro ruim. Vi fazer muita coisa má, tinha de matar mesmo! Era um Quimbanda do Zaire. Dei tiro nele. E com a faca do bruxo cortei o pescoço dele para separar cabeça do corpo, abri todo ele para tirar o fígado e comer, tinha que comer-lhe o fígado para tirar-lhe a força!E te digo maninho, este era um bruxo mau mesmo! Tinha no fígado muito amargo, muito amargo, muito amargo. Teve que levar bué da sal e bué de gindungo... Vocês não sabe, mas eu explica. Eu sabe dessas coisas que eu sou do mato. Quando é uma pessoa é boa o fígado não sabe amargo, sabe bem, como fígado de gazela que não tem maldade.. Quando é uma pessoa má o fígado é muito amargo amargo mesmo. Porque a maldade e a força da pessoa estão no figado. Eu tinha que comer o fígado dele se não o espírito dele ia me empatar a vida e vinha na minha traz para me fazer mal! Voltamos a ficar em silencio, não consegui dizer nada. A dona da casa, chegou sem avisar, descompôs-nos aos três por estar a deixar queimar a galinha e levou-nos em coluna para mesa. Na sua autoridade de metro e meio, avisou logo que não queria conversas nem de guerra, nem de politica ao jantar. O Elias, obediente, ainda antes de se sentar perguntou entusiasmado: --- e o Engenheiro Pinta da Costa continua sendo o presidente do Porto, verdade? Sem pausas e com o mesmo sorriso tímido prossegue com um verso: Carne de galinha é boa, carne de vaca também, mas a melhor das carnes é a carne que agente chama e ela vem!!!! Rimos todos. E a sua gargalhada escancarada e sincera afastou definitivamente todos os espíritos malignos e todas as memorias de guerras passadas e futuras. As mulheres riram da piada que interpretaram como brejeirice de quem tem fome de amor de namorada. O jantar continuou animado e não voltamos a falar de guerra nem de politica. No dia seguinte, segui viagem e não voltei a ver o Elias. Mantive-me vegetariano durante quase uma semana.

Maria contra a coroa

Num verão remoto, passando pela Catalunha, mais uma vez fiquei na casa de amigos que a seguir a nossa casa é o melhor sitio para ficar. Nesses dias convivi com um casal de velhos que hoje fossem vivos seriam centenários... Gente humilde mas informada, catalães de raízes profundas, oriundos das montanhas, atentos à realidade portuguesa e sempre prontos para aprender e discutir “o caso português” desde a revolução dos cravos à independência de Castela. Eram os avós do meu anfitrião, que viviam numa perdida aldeia junto aos Pirenéus catalães, mas que por feliz acaso, estavam naqueles dias a passar uma temporada em casa do filho. Parece que o outro filho, tio do meu amigo, estava a mudar-lhes o telhado da casa la na aldeia e por isso tinham “descido” até à cidade. Convergimos, nessas semanas de veraneio todos naquele prédio. Um edifico dos anos trinta, sem elevador, entalado entre outros edifícios idênticos, num daqueles bairros periféricos de Barcelona com um nome em catalão simultaneamente familiar e impronunciável. Tres pisos e um andar por piso. Tectos altos, janelas em madeira e escada apertadas com degraus daqueles que fazem levantar a perna para subir. Para alem dos meus amigos, que moravam no segundo andar e dos pais que moravam no primeiro, no terceiro piso, vivia mais ou menos uma pequena comunidade de gente jovem. Era um grupo de anarquistas mais ou menos radicais, que enchiam de bicicletas as escadas do prédio. Editavam revistas alternativas e tinha uma associação de partilha de livros. Mal se abria a porta do prédio, cá em baixo, já cheirava a erva... Mas apesar disso, era malta porreira, asseadinha, prestável. E como naquele prédio, era tudo gente educada e tolerante, todos se relacionavam com aquela a gentileza fria necessária para manter a boa vizinhança e respeitar a privacidade uns dos outros. A questão das bicicletas, apesar das escadas serem apertadas, não era um problema porque estávamos todos os residentes autorizados a usar. Coisa que confesso, cheguei a fazer algumas vezes. Já o perfume da erva, todos faziam por ignorar. Todos menos os velhotes que na sua ingenuidade camponesa, dois ou três dias depois de chegarem, perguntaram logo: que cheiro e este ? E de onde vem?.. Com a simplicidade das coisas simples, e porque é uma senhora inteligente, a nora, mãe do meu anfitrião encaminhou o casal para a porta de onde saía o cheiro, bateu e explicou ao vizinho de cima: – Os meus sogros perguntam que perfume é este, eu disse que era canabis...mas acho que os vizinhos, melhor que ninguém podem explicar o que é e para que serve essa planta! Apanhados desprevenidos, mas sempre gentis, convidaram os velhotes, “já agora o português” e o resto do prédio para um chá depois de jantar, onde explicariam o que era o canabis e o para que servia. Assim foi. À hora combinada, lá ficamos sentadinhos a ouvir uma erudita explicação com dados científicos e fotografias e a dizerem que a erva maria é uma coisa muito boa, que faz bem à asma, ao glaucoma e às enxaqueca. Mostraram-nos um daqueles vídeos a fazer a apologia da erva. Arranjaram exemplos históricos. Serviram bolachinhas. E mostraram-nos fotocopias de reportagens de revistas. Mostraram mais papeis, mais vídeos no computador e mais fotografias. Falaram nos benefícios. Depois falaram na repressão. Na repressão politica e policial. Falaram nos americanos a proibirem o cânhamo para protegerem as industrias do álcool e da celulose. Na repressão que os estado espanhol faz em Ceuta. Na dureza da vida dos camponeses em Marrocos. Em como a histeria da luta contra a droga serveíu para justificar mais e mais polícias...Explicaram a injustiça da proibição e a possibilidade de poderem serem presos só porque a planta cresce no vaso la em casa. Os velhotes ouviram calados com muita atenção. Estariam ambos na casa dos 80. Ele, militante do POUS, veterano da guerra civil, participou na Batalha do Ebro, ex-preso politico e troskista. Ela, comunista, militante do PCC, veterana da frente aragonesa, também ela prisioneira politica, anti-clerical e completamente estalinista. Acabado o discurso da apologia da erva, a velhinha, disciplinada e rija pediu a palavra: Todos sorrimos pela seriedade do pedido. -- Só quero dizer uma coisa: sou uma camponesa humilde, não tenho instrução, não conheço as orientações do meu partido sobre este tema, mas uma coisa assumo desde já: se a Coroa e os fachos em Madrid proíbem a coisa, eu sou a favor!!! O marido, menos disciplinado e que em matéria revolucionária não gostava de ficar atrás da mulher, interrompeu imediatamente: -- Em relação a essa matéria, eu, que não devo obediência a Moscovo, não só sou a favor, como se os camaradas estiverem de acordo, pretendo já acender um desses cigarros!! Rimos todos. Especialmente o velhote, que foi o ultimo a deixar de rir e por isso riu melhor!

Joana ardida

A Joana sempre foi uma rebelde. Dizem que viveu virgem e que usa apenas como peça de roupa uma túnica de linho sobre o seu corpo nu. A pele das coxas com o cavalo em esforço entre as pernas despidas. O rosto em êxtase e a espada na mão. Uma espada grande de ferro e aço com punho pequenino para o seu pulso adolescente. Nascida camponesa, na terra de Arc, sem outra fortuna além de si própria. Teve a força e a genica necessária para reunir os franceses e quase quase vencer a guerra contra os ingleses. Uma daquelas guerras antigas e longas. Uma guerra de cem anos. Quando falava soprava vento e quando levantava a espada sentia—se o furacão do seu querer. Corações e cabeças tombaram de paixão e desejo pela Joana. A Joana quase—menina, virou a Joana quase—mulher. Mulher, jovem, bonita, carismática e inteligente, combinação perfeita para lhe estragar a vida! Meio caminho andado para a fogueira dos donos do mundo. O resto do caminho fez a galope no seu cavalo. Julgaram—na por bruxa. Não se sabe se era, se não era. Dizem que as há. Depressa a condenaram e mais depressa executaram a sentença. O fogo que a matou aqueceu uma multidão de basbaques e satisfaz o perverso desejo de morte de nobres e padres. Acenderam a chama que em Ruão. Ainda lá está o túmulo para confirmar que o que conto não é mentira. Depois, em cima das suas cinzas frias, acumulando opressão com humilhação fizeram da Joana Santa. Santa católica para rezar nas missas e pedir milagres. Não contentes, sempre os mesmos donos do mundo, trataram de amassar as suas cinzas e fazer do que sobrou um Símbolo Nacional e o patriarcado compensou a impotência de séculos com estandartes em seu nome Sempre que arde uma igreja, não resisto a imaginar a Joana, descida do seu cavalo e de túnica arregaçada, a brincar com fósforos para ajustar contas antigas. Que me perdoem os mais católicos.

Juliette do olhar fodido

Não esquecemos nada. Habituamo-nos. É tudo. A Juliette Gréco é uma preciosidade da colheita de 27. O pai era corso e mãe francesa. Uma casta destas teve de ser criada em Bordeus, onde passou os seus primeiros anos de vida, com o resto da família alargada. De natureza tímida e reservada manteve sempre aquele olhar de quem não pode, nem quer, dizer tudo o que sente e sabe. Um olhar fodido que lhe saiu caro. Até aos treze anos as coisas corriam-lhe bem, era feliz e nem sabia. Depois em trinta e nove chegaram os lobos nazis. A mão de Juliete, mulher de cepa retorcida, liderava a célula comunista da Resistência lá da zona. E já sabemos que esse anos do governo de Vichy e saudações de mãozinhas esticadas, não foram anos bons para os resistentes franceses. E anos particularmente maus para os comunistas. Em 1943 a mãe da Juliete é presa pela Gestapo juntamente com as filhas. Vem embaladas num carro celular para conhecerem Paris. Lamentavelmente para elas, os policias nazis, levam-nas directamente para sede da Gestapo e nem cheiram o ar das ruas. São as três submetidas a tortura. Em conjunto e separadas. Repetidamente. Juliette, tem 16 anos e a irmã tem 18. A mais nova das três mulheres, a que viria a ser cantora, fica mais de mês nas caves dos nazis. É usada sobretudo para pressionar a mãe. Quando os policias arianos acharam que não tem mais nada a arrancar às três mulheres, decidem esquecer-se delas nas celas e não lhes dão comida nem agua. Por capricho, por acaso, por sorte ou por fastio dos carcereiros, é libertada. Acontece numa noite igual às outras, quando lhe dizem mais uma vez que a vão fuzilar. A mãe e a irmã permanecem na prisão da Gestapo. Sai assustada e sozinha paras ruas desoladas de uma Paris ocupada, cinzenta, suja e fria. É uma professora reformada compulsivamente pelas suas simpatias de esquerda, que a recolhe e lhe dá um tecto no bairro de Saint-Germain-des-Prés. Tem um palmo de cara, canta bem, leu todos os poetas e não tem jeito para trabalhar: torna-se artista. Guerra acabada e derrotado o nazismo, sem ainda ter feito os vinte anos, estreia-se como actriz numa peça de Roger Vitrac. Conhece o Sartre, que a apresenta ao Camus, e ao Boris Vian. Está lançada. Apesar do sucesso, mantém a natureza tímida e aquele olhar fodido de quem não fala. É cortejada à vez e gosta de ser assim mimada e bem tratada. A intelectualidade da rive gauche canonizou-a no altar dos cafés. A sua postura de diva discreta e o olhar fodido, fez dela a musa eterna dos existencialistas. Diz a Juliette que não esquecemos nada. Que nos habituamos. E é tudo. Eu acredito.

Solidão partilhada

A Vanda vive com o fantasma de uma velhinha. Moram as duas no setimo direito. Começou a ver a velhinha uns meses depois de se ter separado. Enquanto casada, a angustia das da ausencia do marido e os ciumes com que ardia, nao adeixavam ver mais nada. Depois do Paulo sair de casa, começou a ve-la. Passou a ter mais tempo para olhar por ela, para ela e para as coisas á volta. A velhinha apareceu numa noite de terça-feira, depois adormecer no sofa. A Vanda acordou sobressantalda e com frio, levantou-se e foi para a cama. Foi ai que lhe percebeu a silhueta recortada na porta da cozinha, parecia parada atrás de uma especie de mesa de ferro sem tampo. Não teve medo. Para dizer a verdade, nem pensou no assunto, caiu na cama e continuou a dormir e a sonhar com o ex-marido. Só na manhã a seguinte se deu conta que a velha não foi sonho.Viu-a. Ao final da tarde, nesse dia, a fazer o jantar na cozinha e a pensar na silhueta, ouviu os passos leves ponteados por uma especie de bengala e sentiu uma presença a atravessar a sala. Devo estar a ficar maluca. Estava. Afinal de contas, estamos todos. Nessa noite, a Vanda foi sentar-se a comer a sopa detox adelgacante que bimby cozinhou. Sentou-se no sofa da sala e fugiu ao mundo nos episodios sucessivos de policias fortes, lindos, inteligentes e americanos. O fantasma da velha pairou-lhe na mente mais uns dias. Umas semanas depois, dessa vez, bem acordada, num sabado de manha, enquato aspirava o chão da sala, viu-a bem. Inteirinha, nem esfumada nem nada. A imagem completa, refletida no espelho em frente à porta da rua. Era enrugada, magra e pequenina. Tinha o cabelo encaracolado branco e marcas nos braços de quem passou muito tempo a soro. Um vestido leve tipo bata clara com flores azuis e um andarilho de aluminio à frente. Viu-a por um instante. Mas viu bem. Curiosamente não se assustou. Continuou a aspirar. Depois comeu uma sandes de queijo fresco e foi tomar banho. À tarde contou à sua amiga Rita, que faz reiki e é assim meio espiritual. Caraças, pá miuda, temos de ver o que é isso e quem é essa velha!!! A Rita ficou entusiamada e marcaram logo uma “sessão energetica” para essa noite. Inclusive a Rita, até desmarcou um jantar que tinha com um mais-ou-menos namorado. Ligaram à Maria João, uma amiga da Rita que é mais graduada no Reiki e nos anos de solteira. Jantarm as tres frango assado e nem beberam o vinho verde que gostam porque a João, disse que o espirito podia ficar ofendido. Sentaram-se a volta da mesa da sala, acenderam umas velinhas redondas de por dentro de copos (eram as unicas que tinham), apagaram a telivião e deram as mãos à volta da mesa. A João presidia a cerimonia com uma voz profunda. –Espirito que aqui vives nesta casa, por favor apresenta-se aos teus irmãos vivos e da-nos um sinal. (Pausa) Espirito que aqui veves nesta casa, por favor apresenta-se aos teus irmãos vivos e da-nos um sinal. Nada.Nem vozes, nem corrente de ar, nem velas a apagar. Nada. Apenas um silencio frio e desconfortavel. A João voltou a repetir o apelo, um apelo sério...como aqueles dos carros mal estacionados nas caves dos hipermercados... mas em tom mais lento e pesado. E um esprito timido, as vezes acontece, sobretdo se são mulheres.... Na cozinha, um copo cometeu suicidio lancçando-se para o chao, do alto do escorredor onde estava deitado acabado de lavar e à espera de secar.. Um copo grande de agua com riscas amarelas. Vidro grosso. Gritaram as tres o susto. A João sorriu conhecedora e a Rita ficou arrepiada. A Vanda foi a correr acender as luzes e varer chão da cozinha. Acabou-se logo ali a sessão. Decidiram sair. Foram a um bar ouvir musica brasileira e beber umas caipirinhas que custaram os-olhos-da-cara-mas-um-dia-não-são-dias. A Vanda nessa noite acabou por ir dormir a casa da Rita que ficou impropria para conduzir. Depois da sessão e do copo a partir-se, a velhinha começou a aparecer mais vezes. Passou a ser uma presença quase la em casa. A vanda foi-se habituando ao perfume madeiras do oriente. Passaram-se meses desde que o copo caiu do escorredor. Uma tarde destas, cruzou-se com a João na rua. – Vanda, temos que fazer outra sessãozinha la em tua casa, mas desta vez, levo uma defumação, para expulsar o espirito... A vanda indignou-se! – Expulsar?? Nem pensar nisso, faz-me mais companhia que o meu ex e dá menos trabalho que um gato, não preciso de lhe andar a ver as mesagens do telemovel nem de lhe mudar a areia da caixa!!!!

Fotografias da Loura

A loura Norma Jean, nasceu em Los Angeles em 1926. Passou a infância em orfanatos e lares adotivos onde o padrão de abuso e fuga se foi sucedendo dos doze aos quinze anos. Com dezasseis casou—se pela primeira vez e foi trabalhar numa fábrica de material de guerra. O marido gostava mais de copos do que dela e por isso separa—se com dezanove. É então que se envolve com um fotógrafo que a convence a fazer algumas sessões de fotografia. Faz muitas fotografias. Fotos de moda, artísticas, com roupa, sem roupa, em estúdio, ao ar livre, em casa... centenas de fotos. Depois envia para agências e algumas vezes é chamada para fazer mais fotos. Mantém o trabalho para pagar a renda e as sopas de tomate enlatadas que eram a base da sua alimentação. Ainda a trabalhar na fábrica, começa a ir a castings para filmes. Em 47 chegam os primeiros trabalhos para cinema, ainda pequenos papéis. Os papéis vão crescendo à medida que o talento vai sendo reconhecido e os manda—chuva dos estúdios reparam nela. Muda de nome para Marilyn Monroe e continua a crescer. No início dos anos 50 é já uma das mais novas e brilhantes estrelas no universo de Hollywood. Em 1953 o jovem Hugh Marston Hefner cria uma revista com fotografias de mulheres nuas a que chama PlayBoy e prepara o primeiro número para sair em Dezembro. Procura fotógrafos e modelos dispostas a pousar para a sua publicação. É então que lhe aparece um tipo a vender—lhe umas fotografias inéditas da vedeta de Hollywood Marilyn Monroe, tiradas uns cinco anos antes...As fotografias dizem que a modelo se chama Norma Jean... Mas vê—se bem que é ela. O fotógrafo pedia uma fortuna pelas imagens, mas o Hefner, que de parvo não tinha nada, arranjou—se como pode e pagou o dinheiro que lhe pediram até ao último cêntimo garantindo a exclusividade. Claro que não é preciso de dizer que a revista foi um êxito total. O escândalo associado às fotos da Marilyn promoveu ainda mais a PlayBoy. Os patrões dos estúdios para quem a Marilyn trabalhava quiseram processar a revista e sacar ao Hugh Hefner "tudo tudo o que tivesse até ao último tostão". Os advogados esfregavam as mãozinhas sapudas de contar dinheiro. Nos jornais os editores e directores preparavam—se para uma cobertura sangrenta. Mandaram jornalistas e paparazzi, voarem a direito, guiados pelo cheiro do sangue e da carne. Assim que a jovem Marilyn saiu à rua, caíram—lhe em cima com flashs e perguntas venenosas. A moça, superiormente inteligente, naquela voz entre o o ingênua e a cama arrasou: — Processar a Playboy? Porquê? Não acham que fiquei bem nas fotografias? Sou uma trabalhadora, e quando fiz aquele trabalho fui paga para o fazer, e bem paga, adianto que ganhei mais naquela tarde de fotografias do que o que me pagavam por uma semana na fábrica! O escândalo morreu ali.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Jamaica

Já se adivinhava... Nas últimas vezes que passei pelo Cais e vi aqueles betos todos de aquário na mão, a beberricarem gin onde só falta o peixinho vermelho, percebi que o Cais do Sodré já não era ali... Partiu para outro lugar. Dizem que vai fechar o Jamaica. É tanga. O Jamaica é eterno. Uma vez os americanos mandaram um exército invadir o Jamica e levaram na boca.,. Agora vem estes bacanos da taimeaute com ideias... Nem pensar. Uma noite no final da primavera de 1991, estiveram quase a invadir o Jamaica. Um porta-aviões americano ancorado no Tejo despejou no Cais centenas de marines a caminho da guerra do golfo. A coisa começou com uma troca de palavras entre um casal de lésbicas e um americano bêbado que não conhecia as regras da educação. Como o gringo não sabia como falar com senhoras, as senhoras viraram bichos maus e ensinaram-lhe. Os amigos do gajo quiseram interromper a lição. Vieram os porteiros, dois armários negros deste tamanho para pôr os camones na Rua. Os armários eram grandes mas os americanos eram de muita arrumação e não queriam sair. O resto do pessoal ajudou na expulsão. Sei que foi assim porque estava lá e vi. A porta fechada e cá fora o grupo dos camones cresceu aos pontapés. Vieram as putas, os cientes e os gandins mais os porteiros do Texas. Ninguém chamou a polícia mas eles apareceram também. Juntaram-se mais gringos e estava o caldinho armado. Foi até de manhã. Pela primeira e única vez polícias, ladrões, chulos, prostitutas, comerciantes, porteiros, barmens e notívagos, todos lado a lado. Todos do lado certo. Muralha de aço abençoada pelo Santo António que é padroeiro de Lisboa e aparentado com o diabo. Até o vendedor de jornais participou com a tranca do quiosque na mão a enxotar marines. Todos contra os americanos. Das noites mais lindas da minha vida. Com pedras da calcada, cadeiras e garrafas de sagres pelo ar. Pareciam pássaros a voar contra os invasores. Aquilo era bonito. Durou até de manhã com os marines a retirarem pela 24 de Julho direcção a doca da Rocha. Épico. Lavei as mãos e a cara na estação e apanhei o primeiro barco para o Barreiro de coração cheio percebendo que pertencia a um povo de heróis. Tenho a cicatriz de um corte na minha mão direita como recordação permanente dessa noite e do Jamaica. Para sempre. Podem demolir o Jamaica. Talvez seja melhor assim! Mas os americanos não entram!

Empreendedorismo Lisboa South Bay.

Ó Orelhas anda cá ver isto. Hoje porque é sexta-feira, a santa, a malta vai jantar. Marisco. As amêijoas mais mirradas que não conseguirem vender vão acabar à mesa de quem escarafunchou no lodo para as apanhar. Ó Orelhas anda cá ver e perceber como é o empreendedorismo no Barreiro, que quando a fome rosna nos calcanhares de um homem, a malta faz-se à maré. Seja proibido ou não. Ó Orelhas anda cá ver os mafiosos em carrinhas a comprar por tutimeia o que se arrancou ao rio. Anda ver marisco pribido ser levado para espanha. Vem cá Orelhas, vem apanhar a baixa mar das seis da manhã. Entrar no rio as cinco e comecar a andar na direcao das luzes de santapolonia. Anda cá Orelhas, anda meter-te no lodo até meio das pernas. Beter os dentes com o frio que te deixa os teus famosos abanos roxos. Anda dar voltas e mais voltas com o chalavarro. Deixa que o nevoeiro te envolva até que nem a puta da ponta do cigarro ves debaixo do teu nariz. Dá mais umas voltas enleado no saco de rede. Depois olhas para cima e já não sabes para que lado é o clube naval nem para que lado é Lisboa. Anda lá Orelhas, faltam ainda umas quantas macheias para encher o balde e a maré tá a subir. Agora Orelhas, tens de correr para fugires ao rio que sobe. Vá Orelhas que é a parte mais perigosa em que um gajo vem carregado e cansado e qualquer erro é fatal. Anda Orelhas, negociar a um, um e vinte, um e trinta o quilo de amêijoa. Leva o balde pra carrinha com os dedos congelados e as galochas a fazer xapxap. Anda contar o pagamento. Senta-te a fumar na muralha mas nao fiques a pensar nos que não voltaram da maré e nos que o rio levou pro mar. Fuma sem pensar Orelhas. Se a teca foi boa podes ate beber um copo. Só depois da praia mar empurrar para casa todos os mariscadores, ai sim, podes encher a boca para falar de como o desemprego é uma excelente oportunidade.

O Xerif

Quando os nazis ocuparam a França, o miudo judeu Lucien Ginzburg, foi obrigado a ir para a escola de estrela amarela ao peito e a familia teve de fugir de Paris, para não ser deportada e assassinada. Conta a irmã gemea do Lucien, que o irmão, um dia apareceu em casa com a estrela amarela obrigatoria na lapela do casaco e por cima, escrito a giz com grandes letraas a palavra: XERIFE! O episodio valeu uma grande tareia do pai e um sermão sobre a gravidade do momento que todos os judeus viviam. Desde sempre iconoclasta, cedo decidiu ser pintor. Adolescente, começou a tocar em bares e cafés para pagar os estudos de pintura, comprar telas, pinceis e tintas... Aos trinta anos era um pintor falhado que cada vez se safava melhor como musico. Nos anos 50, torna-se profissional a tempo inteiro da musica e assume o nome artistico de Serge Gainsburg. É aí que deixa de pintar o belo e dedica-se a procurar o belo onde ele realmente vive: nas curvas dos corpos.

Sumo de laranja

Na passagem da decada de oitenta para a de noventa, fui a uma festa numa fazenda em pegões. Tinha uns dezassete anos e bebi demais durante a noite. A manha surgiu fria e luminosa num laranjal. Laranjas doces e sumarentas a repor o equilibrio balancado pelo alcool. Comi umas quantas. Matavam a sede e desenjoavam. Comi mais. A tarde cheguei ao Barreiro, a casa dos meus pais, deitei-me e tentei recuperar o sono. Foi ai que me chegou a agonia. Corri para a casa de banho. Ocupada. Abri a porta da dispensa, tirei a esfregona dentro do balde e vomitei através do escorredor de plastico da esfregona para dentro do balde. Ao longo da minha vida, sempre tentei evitar que os que amo assistam a determinados espectáculos... daquela vez nao consegui... O meu pai, de pé, assistia ao despejo. De joelhos no chão, limpando as lagrimas dos olhos e a baba dos cantos dos labios, verifiquei que a poupa e os caroços das laranjas tinham ficado no escorredor... e que o balde estava cheio de sumo... Tentando justificar o injustificavel, disse ao meu pai: --- Foram as laranjas... fizeram-mal... comi duas laranjas ao pequeno almoço e agora olha... só sumo de laranja... Irónico e sarcastico como só o meu pai sabe ser, respondeu-me: --- Duas laranjas deram esse sumo todo?Devias registar a patente e comercializar...

Elogio da Mentira

O ELOGIO DA MENTIRA O Pedro e o Miguel eram amigos. Mas amigos a sério. Do peito. Amigos de copos e da vida. Viviam ambos no Barreiro e noite sim, noite sim saiam para viver e desfrutar ter vinte e tal anos. Não me lembro, nem isso interessa para a história qual deles conheceu a Cintia primeiro. Nem qual deles a primeiro levou para a cama. A Cintia era uma morena trintona, baixinha com o rabo e as mamas de um tamanho acima do resto do corpo, uma boca carnuda que dava vontade de dar dentadas e um nariz entre o arrebitado e o abatatado. O certo é que ambos os amigos se envolveram com a Cintia. E era bom para os três. O Miguel e o Pedro, amigos e confidentes depressa articularam um sistema de escala e de encontros e substituicoes. De sinais e rituais, que ambos conheciam e que a Cintia ignorava. A Cintia enganava os dois. E os dois enganavam a Cintia. Havia muitas coisas que a Cintia desconhecia sobre a amizade. Havia muitas coisas que a Cintia ignorava, porque de génio, não tinha nada, a não ser o mau. O mau génio, entenda-se. Mas como dizia o Miguel, quando estavam juntos não lhe pedia ajuda para fazer exercícios de matemática. Nem para falar dos efeitos da perestroika na economia russa, acrescentava o Pedro. A Cintia, ria e sorria feliz porque acreditava que encornava os dois amigos. Cerrava os olhos empurrava as maminhas generosas para cima e punha a lingua de fora mordida entre os dentes brancos. Os dois amigos, felizes na partilha dos prazeres da vida, que é a melhor forma de celebrar uma amizade. Claro que tinham regras e formas. Porque a boca da Cindia era carnuda com uma lingua que se metia onde nao era chamada, as vezes em lugares impróprios, estabeleceram ambos como habito permanente de higiene oral dar-lhe de beber ( o ideal seria faze-la bochechar) quantidades navegaveis de vodka. Eram os tempos em que a absolut entrou no mercado das bebidas e arrazou com as outras marcas. Encontravam se, as vezes os três, um deles partia e o outro pedia vodka ao balcão. Com gelo e mais nada. A Cintia sorria e beberricava molhando a ponta da lingua na bebida transparente e minutos depois a magia acontecia. A relação dos tres foi seguindo os animados dias e intensas noites daqueles anos noventa, com encontros nos bancos de trás do carro de Miguel, num armazém do qual o Pedro tinha a chave, na praia de Alburrica, no jardim dos franceses e às vezes numa pensão que funcionava por cima do café barreiro. Um dia, os dois amigos, amantes da Cintia e da liberdade, conscientes que só a verdade é revolucionária, decidiram deixar as hipocrisias e terem os três uma conversa franca. Foi feio. A Cintia sentiu-se enganada e nesse momento mostrou aos dois que de facto tinha uma lingua mesmo porca. Aos dois, mais à empregada do bar, aos clientes no balcão e nas mesas, aos vizinhos de cima, dos lados e a metade do Barreiro, porque os gritos se ouviram desde as fabricas da ufa até à baía do seixal. A coisa sujou... Tristes pela perda de um tão confortavel amor, os dois amigos beberam os vodkas de um trago e a partir desse dia, as ousadias da Cintia passaram à doce qualidade das recordações. Conto-vos esta história para fazer a defesa da mentira. Apesar da mentira ser uma senhora de pernas ligeiramente curtas e que depressa é alcançada por esse corredor chamado tempo, há vezes em que as formas arredondadas da mentira são preferiveis aos angulos abrutos e secos da verdade. O Pedro e o Miguel que o digam. Ou o Silvestre, que é o gerente de um banco e só agora entra na história porque se casou com Cintia já tarde... e que vive feliz com o passado que a lingua da Cintia não contou.

Belenense Académica

Quando o belenenses foi jogar contra o académica em 1955, um grupo de jovens de rapazes do Altoseixalinho, foi de excursão ver o clube de Belém a Coimbra. O Belenenses estava a um ponto de ganhar o campeonato... A camionete, alugada, saiu das portas da drogaria do Careca as quatro e meia da manha. Cinco horas e meia de estradas, passado o Porto-Alto, Vila Franca e Alenquer. Paragem para aliviar as bexigas do branco que as oito da manha acompanhou os pasteis de bacalhau. Mais curvas e serra, mais a Batalha, a Venda das Raparigas, Leiria e Pombal. Mais branco e carapaus fritos. À vista do Mosteiro de Santa Clara, abriu-se uma garrafa de moscatel de Setúbal, porque aquele final de Abril ia quente e a sede aperta quando se anda na estrada. Chegaram a Coimbra as dez e meia da manha. Era domingo. O comercio todo fechado e as ruas quase vazia a excepção de grupos de pessoas que saiam das missas... Os cinco amigos procuram uma tasca para matar a sede e dois deles pretendiam, usufruir de serviços de trabalhadores do sexo. Um dos rapazes vinha desde o Porto Alto a fazer referencias aos encantos da casa de uma espanhola na rua direita que tinha as melhores catraias do país. As mãos enormes de artífice-torneiro-mecânico, desenhavam no ar formas tão nítidas que quase se sentia o perfume das raparigas no ar saturado da camionete. Como as tascas estão na generalidade fechadas, decidem por unanimidade rumar à Rua Direita. No numero 9, terceiro andar, a casa da Dona Conchita, espanhola gasta e refugiada da guerra e que se fixou em Coimbra para fazer de amar negocio e vida. O prédio de escadaria ingreme e apertada ia acordando depois de uma noite de sábado. Crianças e gatos desceram a escada enquanto os cinco magníficos do barreiro subiam. Bateram. Do outro lado da porta passos arrastados. Um postigo abriu-se e uma senhora quase menina com sotaque do porto e dentes podres, explicou que a Dona Conchita não atendia ao domingo, tinha dado folga a todas as meninas e que estava a descansar... Valentes rapazes, animados pela viagem e eufóricos pelo possível Titulo do Belenenses, não iam desistir por causa de uma desculpa tão esfarrapada. O tal que já conhecia a casa e que tão bem tinha descrito o belo par de mamas da patroa, chegou-se a frente e esclareceu: -- Não somos clientes, sou eu que sou amigo, e trago aqui um moço que é parente da Senhorita Conchita que lhe quer dar um recado de um tio que acabou de falecer. Todos se calaram espantados perante a historia do tio que cheirava a herança. Os passos arrastados afastaram-se e passado uns minutos a porta abriu-se e a criada mandou-os entrar para a sala de espera... -- A Dona Conchita está a despachar-se, os cabalheiros que facem os fabor de esperar um momentito. O momentito tardou e a garrafa de anis em cima do tocador abriu-se e deram-se os primeiros golos diretamente do gargalo. Dentro da garrafa, um ramo pairava com cristais de açúcar agarrados... A Dona Conchita tardava Um dos rapazes mais afoitos abriu a porta da cozinha e dentro de um tacho em cima da pequena bancada de mármore encontrou o tacho. Era arroz de coelho... -- É rapazes, temos aqui arroz de coelho, enquanto a Conchita desinfecta a concha, comemos qualquer-coisa.... Mesmo os dois mais urgentes de mulher concordaram que seria melhor meter qualquer coisa para ensopar o anis. Trouxeram o arroz para a sala e directamente do tacho remecheram nos ossos do coelho e na carninha agarrada, entenda-se! A Dona Conchita chegou flutuando numa combinação azul clara que lhe tapava as costas de estivador mas que exibia os melões que em tempos foram famosos em Zaragoça. "Aqui donde las vêm, serviram com valentia toda la quinta brigada" apregoava as mamas quando alguém as cumprimentava. Chegou com os melões à vela, as ventas reviradas pela invasão de campo, ofendida pelo desplante do tacho do arroz de coelho e magoada pela garrafa de anis vazio. Começaram os guinchos e insultos... Mulher desagradável quando se zangava. Veio a criada com os dentes podres saber o que era... Percebendo o chelique da patroa, recuou para uma linha mais resguardada e guinchando também ela, foi chamar reforços. A Conchita, vendo que a claque do belenenses não recuava, abriu as janelas e aumentou o volume dos guinchos... tipo, como se a quisessem matar ou lhe estivessem a bater. Zangado, o reforço chegou na figura Penamacor, protetor, amante e investidor privado da Cochita. O Penamacor, fora praça da guarda, mas que por ser ladrão e vigarista acabou expulso da nobre corporação. Perdeu a farda mas ficou com o porte, com os bigodes retorcidos e a pança de 8 meses que lhe servia para manter o respeito. O Penamacor era grande mas ao ver os cinco valentes, optou pela abordagem legalista. Os guinchos da Conchita acalmaram para deixar o seu homem falar: -- Ora bamos lá a ber o quéisto? As boxas identificaxões faxavor! Ora o pessoal do barreiro, está bem habituado a guardas e rusgas e se há coisa que se distingue bem, é um pintas a querer passar por bofia!!! Esta verdade é válida hoje, em 2016, como era em 1955... Quando o Penamacor pediu a identificação, um dos presentes, seja por ato de nervosismo, seja apenas por um sentido de humor mais javardito, soltou uma sonora flatulência que empestou o ar e fez explodir em gargalhadas os outros quatro... Voltaram os guinchos com mais força!!! O Penamacor, percebeu o recado e ameaçou que ia la dentro ia buscar a pistola... -- Olha lá ó bigodes, se tivesses pistola, já a tinhas nas patas!!! O Penamacor, para não levar uns mimos atirou-se para o chão a fingir que estava a ter um ataque cardíaco. Mais guinchos....muitos guinchos Como o ambiente começou a ficar monotno, os rapazes do barreiro, decidiram ir procurar diversão noutro sitio... Desceram as escadas num torpel ficando para trás um dos cinco que sendo de profissão relojoeiro, não resistia a um relogio de sala parado e ficou a dar-lhe corda. Os gritos soavam em toda a baixa de Coimbra. Quando o relojoeiro começou a descer, já vinha a polica a subir. Preocupados com o relojoeiro que tinha ficado para trás ainda na escada ouviram o rapaz dizer: -- Suba suba rápido senhor policia que eles matam-se todos lá em cima.... O Belenenses perdeu o campeonato porque a Académica marcou a quatro minutos do fim nessa tarde de abril de 1955, mas parece que o arroz de coelho da Conchita não estava mau.

el comandante

La Habana. Finais de 1997. Para trás um filho e um casamento em ruínas. Meses após primeiro divorcio. Pela primeira atravassei o atlantico, esse mar a que na America Latina chamam "el charco". Lembro-me especificamente da tarde em que me tiraram a fotografia. Tinhamos ido a uma especie de uma quinta algures na estrada para Pinar del Rio buscar carne de porco. Era o periodo especial e não havia muito para comer. A carne era um bem precioso. Os cubanos e residentes estrangeiros fora dos circuitos turisticos tinham de se desenrascar. E desenrascavamos-nos. O carro era das Nações Unidas e estava a ser conduzido por uma amiga belga. Eramos eu, a belga e dois cubanos. Foi na volta para La Habana. Levavamos uma perna e uma mão de porco dentro de um bidom de lata. Vinha a carne envolta em papel de jornal e com umas duzias de embalagens de iogurte cheias de agua e congeladas a garantir um temperatira refrigerada. Estavam mais de 30 graus e muita humidade, urgia congelar, salgar ou cozinhar a carne. Subitamente e sem nada que se fizesse esperar um engarrafamento no meio de nada... A fila não tinha muitos carros, uma ou duas dezenas, mas estava completamente parada num cruzamento. -- Que passa? -- Ni ideia. Dizem os cubanos. Saí para fumar e a belga fez a fotografia. Os carros parados, o calor e a carne la atrás em risco de vida... Avancei uns metros. A policia lá a frente a cortar a estrada. O ajuntamento a volta dos condutores, transeuntes, biciclistas, boleiistas e viajantes parados. Falo com o policia -- Que passó compañero? -- No pode passar. O policia estava tenso, e duro, coisa rara em cuba, seja policia ou civil... -- Si, vejo que no, pero porquê? -- No pode passar. Estavamos nisto e vem uma comitiva de duas motas, um jipe miitar e um carro civil grande que pára. Abre-se o vidro e o Fidel Castro acena. Todos entramos em delirio para saudar o Comandante. O carro arrancou e só tivemos tempo para retribuir o aceno. Após a euforia geral começamos todos a voltar para as maquinas de transporte. Volto a falar com o policia, já sorridente e descontraído. -- Compañero, porque no diciste que era el Comandante? Porque no explicaste que teniamos que esperar por eso... -- Compañero internacionalista, hay cosas que no se explican!!! E tinha razão. Quase vinte anos depois, quando penso no Fidel, no que foi, e no que simboliza, lembro-me dessa tarde em que nos cruzamos pela primeira vez. Hay cosas que no se explican!

Intrujas

Rishikesh. Capital mundial da Yoga. (Do Yoga, para os mais puristas). Foi em Janeiro. Passaram mais de dez anos. De Delhi a Rishikeh foram umas 12 horas de autocarro numa viagem nocturna que poupou as rupias de um hotel mas que não poupou as costas. Chegado ao nascer do dia os Himalaias disputavam a minha atenção juntamente com os intrujas. Todos eles eram do hasram mais puro e mais fiel à verdadeia yoga... Eu não vim pela Yoga, fui dizendo... vim para ver as montanhas. Procurei alojamento numa pensão fora da "cidade". Fiquei instalado dois quilometros a pique sobre o rio. No segundo e terceiro dia ainda todos insistiam em levar-me para uma escola de yoga. Todos as pessoas com quem me cruzava em queriam convencer de alguma coisa. Alguma coisa que eu precisava muito de aprender, que ia mudar a minha vida, que ia mudar a minha consciencia cosmica... Até na tasca/pensão onde estendi o saco cama me queriam inscrever nas aulas da manha. Só desistiram de me santificar pela respiração, postura e meditação, quando vendo os porcos cruzados de javalis que por ali pastavam me ofereci para cozinhar um guizado... Depois do guizado de javali, fui adotado. Dias luminosos e frios de grandes caminhadas pelas montanhas e grandes representações teatrais dos intrujas que eram todos super-mestres-de-verdadeira-yoga. Noites longas a volta do lume a beber chá e ouvir contar histórias. Gostei especialmente de conhecer e de falar com o David, um australiano sexagenário, passado do prazo e encalhado nos anos 60 há mais de duzentos anos. Vivia em Rihikesh "desde que os Pink Floy lançaram o Dark Side of The Moon". Dizia que morava ali porque gostava do ar da montanha e não já fazia Yoga... mas que mesmo não já não sendo praticante, os seus intestinos só trabalhavam depois do sury namaskar (saudaçao ao sol). O dinheiro chegava-lhe da segurança social da Austrália num esquema vagamente fraudolento que tentou explicar-me sem sucesso. Uma noite, depois do jantar, o David entrou de repente na tasca, mais branco do que o costume, a tremer de medo e a dizer que se tinha cruzado com um leopardo. Andou frenetico a trancar todas as portas e janelas da pensão e a exigir que a patroa recolhesse o cãozarrão que vivia sarnoso do lado de fora da porta. Depois de toda a agitação e dos avisos sérios a cada um dos presentes, foi a correr para a casa de banho. Mesmo sem sury namaskar. Voltou, ficou o resto da noite calado a olhar para as brasas. O chá que este bacano bebeu ao jantar é dos rijos, até dá para ver leopardos....pensei. Apesar do frio, ainda fiquei um bocado a olhar para as estrelas e a pensar na vida. Na manhã seguinte, um leopardo tinha comido duas vacas. Vem isto a proposito das tangas e dos intrujas. Aquilo que é mesmo mesmo mau e chato nos intrujas e nos mentirosos é que, quase que conseguem roubar-nos a capacidade de acreditar. Só porque as verdades parecem mentiras, pensamos logo que é tanga, fabula ou alucinação...como o leopardo do australiano...

O milagre da luz

Apascentava eu cervejas e memórias quando apareceu uma senhora banhada de luz. Luz forte e amarela que vinha do candeeiro pendurado na viela. A senhora disse: --- queres vir? Por medo, vergonha, pudor e falta de dinheiro, sorri-lhe e balbuciei, qualquer coisa como: hoje não. Fica pra proxima. Cravou-me um cigarro, pegou-me na mão e retribuiu o sorriso com simpatia. -- prometes amor? Respondi gingão que não faço promessas nem me ajoelho para rezar... A gargalhada que soltou foi um grito de alegria na noite fria e triste de um Maio chuvoso. -- a esta hora se aparecer alguem que me oriente para pagar a renda vinha caído dos céus... já estamos a dia 13... Sem saber o que dizer, voltei a sorrir-lhe. Foi então que aconteceu. Aproximou-se um casal de ben-aventurados. Dois pombinhos. Novos, com dinheiro e curiosidade. Ele nuns imberbes dezoito anos e ela dois anos mais afoita. -- E voces, meus lindos, alinham aqui com a Maria? Afastei-me para dar espaço ao milagre. Subiram juntos para o céu do terceiro andar, que diz quem conhece é o paraiso na terra. Eu continuei o meu caminho satisfeito com o fenómeno da fé e lá segui a semear beatas pelas pedras da rua. Ao nascer do dia o sol dançou para mim.

A generosidade dos homens ricos

Os poucos homens ricos que conheci são generosos. Os que acumulam riqueza são quase todos miseráveis. Explico. Em outubro de 1999 quis ir a Tamarasset. Tinha 27 anos, um Renault clio e uma mochila cheia da ignorância necessária para fazer loucuras. Do Altoseixalinho até Marrocos foi um pulo. Atravessei o Atlas e com a ingenuidade dos loucos passei a linha que separa Marrocos da Argélia sem outro controlo alem de uma estrada onde o alcatrão desaparecia e o deserto de pedras. A meio da tarde parei para fazer chichi e dei boleia a um rapazito que não falava nenhuma lingua conhecida. Apenas apontava para leste. Seguimos umas horas. Ele a falar a lingua dele e eu a minha. Partilhamos cigarros, água e pêssegos. Quando a noite caiu continuamos a direito numa estrada e num cenário cada vez mais deserto. Seriam umas dez da noite fez-me simal para virar a esquerda. Cansado da monotonia obedeci. Andamos uns cinco minutos por uma estrada de terra e mandou-me encostar junto a uns casebres de pedra, mal iluminados no interior por candeiros a gaz. Era ali que morava com a familia. Entramos e a festa começou. Abraços e cumprimentos. E chá. Muito chá. Percebo que foram buscar um cabrito. Apareceram mais pessoas. Tamaras pão quente. Salada de tomate e queijo de cabra. Deviam ser umas duas da manhã na casa entrou um senhor vestido com um sobretudo por cima do pijama. Falava frances. Explicou-me que era professor e que o tinham ido chamar a casa e o tinham tirado da cama propositadamente para vir servir de tradutor. Disse que eu era o convidado de honra daquela familia e que para me homenagear tinham morto um cabrito. O pai do miudo a quem eu tinha dado boleia era referencia local por ter participado na guerra de independência e estava muito satisfeito com a chegada do filho mais novo. Nos dois dias e tres noites que fiquei com esta família conheci o verdadeiro significado da palavra hospitalidade. O professor passou o tempo todo comigo. Todos juntos convenceram-a desistir de ir a Tamarasset. O professor acompanhou-me de volta até Marrocos evitando o controlo alfandegário e os transtornos de viajar sem visto. Quando parei para por gasolina, percebi que já tinha o deposito cheio. Fiquei desconfortável com a situação mas o professor esclareceu: --- o pai do rapaz é rico. Tem muitas cabras e muitos filhos. Vivem na pobreza mas é um homem suficientemente rico para ser generoso com os amigos. Aprendi com o professor. Percebi o que significa ser um homem rico. Aqui na cidade onde vivo sei de um homem que tem várias padarias/pastelarias. Trabalham para ele algumas dezenas de senhoras. Paga o salario mínimo com contratos a três meses. Despede e volta a contratar a mesma trabalhadora que emprega nas diferentes pastelarias. Assim mantem a logica do subemprego e precaridade. Não deixa as trabalhadoras levar o pão que não se vende para casa e deita as sobras no lixo depois de regar tudo com lixívia. Tem carros grandes e duas casas apalaçadas. Tem a conta bancária obesa e todos os anos compra um apartamentos para férias. Os mais distraídos podem até pensar que é um homem rico, mas eu sei que este homem não passa de um completo miserável.

Padres, bancos e chefes de policia

Tinha 19 anos e acreditava num universo de possibilidades. Meti um saco-cama e umas latas de sardinha numa mochila num grupo que éramos dois apanhei o comboio para o norte. Atravessamos a ponte férrea sobre o rio Minho e ao entardecer e chegamos a Santiago. Ano compostense e a cidade cheia. Jantamos sardinhas, pão galego e vinho verde num jardim. A ideia era apanhar um comboio regional até Lugo. Íamos ter com o Pedro Miguel Cabrita Feijao a Vilauxin. Na estação informaram que para Lugo só havia comboio as oito da manhã. Eram umas dez da noite e começou a chover. Ficamos até à meia noite. Fecharam a estação e só abriam às seis e meia da manhã... A chuva carregou na força. Procuramos um sítio para ficar. À chuva batemos à porta de vários albergues para peregrinos. Completo, completo. Padres, freiras e beatos a dizerem nos que não. A chuva cada vez mais forte e fria. Com o cartão multibanco entramos no átrio de uma agência da caja. Tiramos as mochilas e estendemos os sacos cama. Não era confortável mas estava seco. Não passou nem meia hora. As camaras a trabalhar e o estado a servir os bancos. Um carro da polícia parou do lado de fora e saíram três policiais para nos tirarem dali. Explicações em português e portenhol Pedimos estadia na esquadra até abrirem a estação dos comboios. Na polícia também há gente boa. Deixaram nos por as mochilas num canto, usar as casas de banho e as toalhas secas. Estender os sacos camas não que já era abuso. Dormitamos umas horas nos bancos de madeira. A meio da noite chegou um carro patrulha. Era o chefe e vinha zangado. Tratou logo de nos por na rua e dar uma pissada nos agentes que nos desenrascaram. Outra vez molhados e com frio. Caminhamos à chuva mais de uma hora até à estação dos comboios. Ainda esperamos um bocado até nos abrirem a porta do chão seco. O dia nasceu chuvoso e comemos ovos cozidos que sobraram do farnel. Nessa noite aprendi uma lição para a vida, quando chegam as tempestades, nunca devemos contar com ajuda de padres, bancos ou chefes de polícia.

prohibido fumar

Tínhamos acordado bem cedo nesse dia. Ao nascer do dia, apanhamos um autocarro em Valparaíso junto ao pacífico chileno e atravessamos os Andes. Passamos a fronteira entre o Chile e a Argentina ao final da manhã e seguimos até Mendonza. Cidade mineira nos Andes argentinos. Chegamos ao meio da tarde e ficamos a fazer tempo e a beber cervejas numa tasca ao lado da estação da rodoviária. Igual a todas as tascas ao lado de todas as rodoviárias do mundo. Compramos bilhetes para a proxima camioneta que seguia na direção de Córdoba. Saia as onze da noite. Teriamos de mudar as quatro da manhã e para fazer o transbordo. Chegaríamos as oito e meia. A tasca da rodoviária fechou. Carregamos as mochilas e procuramos um sítio próximo para continuar a hidratar com cervejas e esperar pela hora da viagem. Sentamos-nos na esplanada de um bar onde estavam mineiros índios a beber cerveja. Pedimos mais uma garrafa. Depois chegaram as prostitutas. Novas, quase adolescentes, indias, coloridas, ruidosas e algumas oxigenadas. As mãos de camponesas com unhas pintadas de cores vivas. Quando a festa estava a ficar mesmo animada, tivemos que sair e entrar na camioneta. Embalados pelos balanços da estrada que agitava o mar de cerveja que tínhamos mamado, adormecemos. Acordaram nos a meio da noite. Precisamente no imenso nada da Argentina rural. Tínhamos que mudar de autocarro. Vinha atrasado mas estava a chegar. Carregamos as duas mochilas e arrastámos as duas inesperadas ressacas para a noite quente. Não se podia fumar. A minha companheira de viagem e de vida, tem, na generalidade despertares difíceis. Aquele estava a se-lo especialmente. Pegou no cigarro. Eu avisei: -- olha que é proibido fumar... -- aí é? Então olha para mim a prevaricar! Chama a polícia e manda-me prender. Confesso que considerei a sugestão. Mas como não sou de alimentar discussães, disse-lhe: -- É por isso que te amo. Surpreendentemente sorriu. Aproveitei para fotografa-la.

A cor das hortas

À e tal as hortas são modernas e todos deviam ter uma. A pessoa ouviu isto e tal como viu na internet, decidiu reciclar garrafas pet e fazer uma horta vertical na varanda. Muito giro. A pessoa gosta da ideia. A pessoa não gosta é da horta onde o vizinho do bairro de baixo cultiva legumes para acompanhar a pobreza. A pessoa, a essa horta, já acha mal. A pessoa fica na sua varanda de três por um a achar mal. Fica a ver ao longe o vizinho do bairro de baixo a cultivar o milho e a mandioca, a cultivar os tomates, couves, alhos e cebolas. Vê às vezes senhoras com bebes às costas a bater com um pilão dentro de latas. A pessoa fica zangada com as mamas que saltam livres e cheias debaixo do pano de chita e fica ofendida com o sono tranquilo do bebe embalado pelo balanço do pilão. A pessoa não gosta de ver ao longe o vizinho do bairro de baixo fazer uma coelheira com o que foi um frigorífico estragado. Há uma raiva a germinar que lhe substitui o tédio, enquanto a pessoa, acende mais um cigarro que não fuma até ao fim. A pessoa volta para dentro para fazer zapping e gostos da face enquanto estoicamente ignora os gritos das crianças que são suas. Passam os dias cinzentos e iguais. O vizinho do bairro de baixo rega e poda a horta que fez. Dobrado sobre si mesmo enquanto fala alto e gesticula para os outros cultivadores de hortas. Falam e gritam numa língua desconhecida onde a pessoa identifica palavras. É então que a pessoa faz o mail para a junta e para a câmara a dizer que não é admissível. A inveja e o ódio crescem como os legumes da horta clandestina do vizinho. Meses de tédio e raiva contida decorrem. Ao final do dia, sentada ao volante, a pessoa pará na passadeira para deixar passar os vizinhos do bairro de baixo. Vêm das hortas com latas à cabeça vazias de tinta e cheias de legumes e frutas. Às vezes trazem galinhas a bater as asas penduradas pelas patas. A pessoa não quer saber que a horta é um terreno privado nem quer saber que o dono do terreno se desresponsabilize da limpeza do espaço que é feito pelo hortelão. Não quer saber de nada disso. É pessoa é obrigada a parar na passadeira. A pessoa comprou uma casa ali e está a pagar ao banco, mais cara do que no bairro quinhentos metros a baixo porque lhe prometeram viver em sistema de condómino quase quase fechado. Todos os meses leva a facada do banco que mal se aguenta com a prestação da casa mais a do cartão de crédito… A pessoa diariamente vê a família do vizinho do bairro de baixo, passar com um avio tirou da horta e que nem sequer pagou. A pessoa reclama do viver do vizinho do bairro de baixo e do rendimento mínimo. Reclama dos refugiados e dos transportes. Mais uma vez manda email para a junta, telefona para a câmara, e ameaça com a julia pinheiro. A pessoa indigna-se. Os dias continuam a passar. A horta do vizinho de baixo cresce enquanto os coentros e a hortelã agonizam na garrafa na varanda três por um. Domingo de manha, a pessoa foi fazer a caminhada e viu impressionada o vizinho do bairro de baixo a fazer xixi junto da vedação da horta que construiu. Na volta da caminhada estava a vizinha do bairro de baixo a esfolar um coelho sentada numa cadeira que alguém pôs no lixo. Um fogareiro aceso e uma panela grande em cima que liberta odores a óleo de palma e especiarias. A pessoa chega da cansada, suada com uma raiva surda de viver no 5º esquerdo. Carrega no botão com força. Sobe no elevador com outra pessoa clonada de si e igualmente insegura do seu suor das duas horas de caminhada. A pessoa sorri forçada um bom dia e segue em silêncio olhando para o smarphone. A pessoa queria ter uma moradia sem vizinhos e com um jardim onde pudesse ficar sentada a beber um colonial gin com colegas do escritório. A pessoa fecha os olhos do sonho da moradia e por instantes vê a imagem do vizinho do bairro de baixo a fazer xixi. -- Porcos! Desabafa entre dentes. -- O quê? Perguntou outra pessoa de vida igual à sua. -- Estes porcos das hortas. -- E a polícia não faz nada. As duas pessoas clonadas entraram nos seus apartamentos iguais e fecharam as idênticas portas reforçadas à chave. A raiva e o ódio a envenenar os almoços nas semelhantes cozinhas ikea. Bacalhau com natas do restaurante que serve para fora. E sopa feita na bimby. Na horta do vizinho do bairro de baixo o almoço foi servido à sombra do telheiro na mesa comprida feita com uma tabua que foi uma porta em cima de tijolos. Bebe-se cerveja fria tirada de um bidom com gelo. Para o almoço chegaram parentes e família. E mais amigos. E mais vizinhos do bairro de baixo. Há um radio que canta alimentado pela bateria de um carro. A festa torna-se me farra. No sofá que outra pessoa deixou há dois meses encostado ao contentor há um casal a namorar e uma senhora velhota sentada a abanar-se coma tampa de um tacho. A pessoa depois de almoço queria dormir a sesta. A pessoa fica na cama deitada a ouvir ao longe as gargalhadas das mulheres e os gritos de alegria das crianças. A pessoa não consegue dormir. Tem azia da comida de plástico. A raiva cresce porque não é podada e azeda-lhe o estômago. E o ódio aumenta-lhe nas veias. A pessoa levanta-se e vai directa para a varanda. Zás. As garrafas pet e a terra mais os vasos, mais as sementes de morangos, tudo para o lixo. Acende um cigarro que não fuma até ao fim e vai sentar-se ao computador para mandar mais um email para a junta, para a câmara e para a julia pinheiro a reclamar das hortas. A pessoa procura à volta um escape para despejar o ódio inveja e raiva. Não encontra e zanga-se. Falta sempre qualquer coisa à pessoa. Se ao menos pudesse ir às compras para passar esta neura… Enquanto isto, longe. Muito longe dali. Um proprietário ignora que os terrenos que comprou com esperança de se valorizarem produzem mandioca, tomate e ódio

Dias de bruxas

Diz que é dia delas. Não lhes tenho medo. Às bruxas. Conheço bem o género. De beber poções mágicas tenho vasta experiência e cicatrizes nos órgãos internos. E não fosse as vertigens já tinha a carta de condução de vassouras. Esconjuros já me fizeram de todas as maneiras e feitios, todos sem efeito. De pragas rogadas faço o meu pequeno-almoço. Aprendi a viver com bruxas e no terror eminente da presença dos mortos-vivos. (É certo que para isso contribuíram os mandatos do Professor Cavaco Silva.) Agora se me faltando o bruxedo, até sinto saudades. Do Professor, nenhumas! Mas chateia-me esta cena do dia delas, das bruxas. Chateia-me a violência da invasão americana. Às tantas e afinal, andamos todos mascarados de gringos a brincar às bruxas por dois ou três dias… quando bruxas e bruxos somos o ano inteiro. Ta e qual elites financeiras latrino-americanas, há quem ache que se nos mascararmos de gringos e se fizermos o que eles fazem, nos transformamos neles. Mas não. Por mais idiotas que nos forcemos todos para ser… temos todo este mar aqui à frente e o vento salgado que lava as ideias de trampa que tratam nos importar para nos servirem requentadas. Por isso vos digo: querem celebrar as bruxas? Convidem a vossa bruxa (ou bruxo) favorito para jantar e procurem aproveitar a lua em crescente para fazerem todo o tipo de doces travessuras. Deixem as crianças com os avós que aprendem mais numa noite de conversa com os mais velhos do que nos meses de copypaste onde os ensinam a ser uma coisa que não são. Beijinhos e abraços às bruxas e bruxos. Cuidado com a água benta e com os inquisidores.

No Rajastão com Lorca

No Rajastão com os herdeiros do Lorca. Em finais de 2003 inícios de 2004 voei para o norte da Índia. Era a terceira vez que pisava o chão da Mãe Índia que é assim que lhe chamam essa imensa multidão de indianos. Cheguei tarde a meio da noite. Tinha feito umas quinhentas escalas para poupar uns trocos o que fez aterrar em Nova Déli pelas quatro da manhã. As minhas anteriores experiências na Índia, tinham ensinado que Déli é uma cidade maravilhosa para chegar e para partir...mas não devemos ficar por lá muito mais tempo porque a cidade já está cheia com os 20 milhões de habitantes. Por isso, segui directo do aeroporto para a estação de comboios. A ideia era comprar bilhetes para o norte, no próximo comboio que saísse. Acontece que a bilheteira da estação estava fechada mas estavam abertas as quinhentas mil micro agências de viagem a funcionarem 24 horas por dia à volta da estação. Entrei numa dessas casas que eram agência de viagens, loja de fotocópias, ciber café, pensão, armazém e outras valências inarráveis. Não dormia há uns dois dias...tinha fome sono e frio, mas também tinha a noção que quanto mais conseguisse centralizar as compras dos bilhetes de comboio maior seria o desconto... A pessoa que ia comigo, aterrou em cima da mochila e adormeceu no chão. Eu fiquei sentado numa mesa baixinha com o gajo da agência a negociar e planificar os preços dos bilhetes de comboios para três semanas de viagens. Lugares, percursos, horários, paragens e preços. Pelas dez da manhã saímos da agência no caos de Déli num Tata, um carro indiano que fazia lembrar o antigo Renault 5 mas todo em plástico. Por menos rúpias do que as viagens de comboio, aluguei o carro mais o seguro. Conduzir à esquerda no caos de Déli e sair da cidade tiraram me completamente o sono. No carro havia um rádio com leitor de cassetes. No leitor uma cassete. E na cassete estavam os Aguaviva. Rodamos quase quatro mil quilómetros entre o Rajastão e os estados do Norte da Índia. E a banda sonora foi sempre a mesma. Por uma estranha alquimia de memórias, associo o Rajastão aos aguaviva. Quando ouço esta música particularmente, fecho os olhos e cheira me a caril.

picnic

Estava sol e ela tricotava com os dedos. Foi dos primeiros dias quentes do ano. Práí Abril ou Maio. As crianças que já não são crianças, tambem estavam: o mais velho, dormia e a mais nova, na pré-adolescência, exagerava num recem-adquirido pânico das formigas. Os cães que ainda era só a cadela, delirava com os cheiros da mata e com todo aquele espaço para correr e saltar. Foi num sábado. Saí do trabalho à uma, passei por casa e apanhei todos. Tínhamos combinado ir almoçar no mato. Levamos farnel e comemos sentados na manta. Depois tirei fotografias, apanhei pinhas e brinquei com a cadela. Tinha acordado cedo e deixei-me adormecer. Ao sol. Ignorando as moscas, os protestos por causa das formigas e os apelos da cadela para passear. Acordaram-me para ir para casa nem meia hora depois de me ter deitado. Mesmo no melhor do sono. Porque está muito calor, diziam. Levantei-me e disse profético: -- Pois ainda vão sentir muito, a falta deste calorzinho! Passaram meia dúzia de meses. Agora chegou Dezembro a dar-me razão. Eu bem avisei.

conversa do santeiro

Há nove anos atrás estava em Cuba no Festival Internacional de Cinema de Havana. Foram uns dias intensos. Como fui convidado a participar no Festival e fiquei mais uns dias, quando me pediram para dar uma ajuda na produção de um documentário disse logo que sim. Era uma coisa para a Cubavision e fomos filmar para Habana Vieja. O tema era um projecto social de apoio a crianças e jovens desenvolvido num terreiro de Santeria. Os técnicos andavam a por as luzes e a testar o som e eu fiquei a falar com o Santeiro. Ao contrário do que esperava, não era negro, velho e de sotaque serrado, mas antes louro de olhos azuis e de sotaque claro como a sua pele. Ficamos a falar das dez da manhã às três da tarde. Álvaro, que além de babalaorixa é também pediatra falava de tudo incluindo política e Orixás. Antes de sair e do último trago profetizou: -- companheiro vais conhecer uma filha de Oxum que vai mudar a tua vida. Dentro de seis meses estão a viver juntos.... Na altura estava solteiro e como se diz agora tinha saído há meses de um relacionamento tóxico. Não andava à procura de nenhuma Princesa para o Castelo... Sai do terreiro meio cambaleando e contente com a vida. Fui almoçar com amigos. Foi depois desse almoço que tiraram a fotografia que publico. Estive em Cuba mais umas semanas. A trabalhar e a "gorachar". Em Portugal tinha os filhos, família e projecto profissional. Conheci muitas pessoas interessantes. Durante o dia ia resolvendo, pela internet incipiente, questões em Portugal. À noite vivia La Habana. Reconheci em decotes vários a medalha da Caridad del Cobre que sendo a padroeira de Cuba é a marca de Oxum. Estive atento aos encontros. Nada com perspectivas de continuidade. Voltei a Portugal. À chegada, tal como tinha combinado enquanto estava em Cuba, vou encontrar-me com alguém, que não conhecia, para lhe entregar uns documentos que estavam em falta. Era gira. (É gira!) Sentamos-nos à mesa de um café e a conversa corre interessante. Num saco de pano que trazia reluzia uma linda Oxum estampada. Perguntei: -- és de Oxum? Ainda estamos juntos. A conversa no Santeiro foi há precisamente nove anos.

A tampa do Mike

O dia em que o Mike Jagger levou uma tampa da Marianne Faithfull. A foto regista esse momento histórico. Foi num daqueles eventos sociais do Sul de França na segunda metade da decada de 60 do seculo passado. O Mike Jagger na altura, era (e ainda é um bocado) um sex simbol masculino. A Marianne Faithfull era ainda uma desconhecida e apareceu como uma das várias apaixonadas com quem o Mike Jagger constumava sair. Ele, Mike, o convidado, levou-a a ela, Marianne, como acompanhante. Mas acontece que os corações das donzelas são mais imprevisiveis que o vento sudoeste que às vezes traz chuva outras vezes traz charrocos. O Mike que chegou vitorioso com uma loura lindissima exibida debaixo do braço como conquista, minutos depois, era apenas um timido miudo ingles, com a pele demasiado branca que não sabia como comportar-se perante a corte da cote de azur. A loura fugiu-lhe da mão porque tinha vontade própria e com ela levou a sua coroa de estrela. A fotografia está ai a provar o que digo. Até causa um certo dó. A loura inglesa, ao centro, rendida ao charme latino do actor frances, à esquerda. Abençoados pela taça dos girasois, que parece saída do quadro do Van Gogh. No chão, entre as pernas, penas caidas do vestido da diva em botão, a prometerem nudez. À direita o menino triste fuma e baixa os olhos derrotado. Claro que o charme do Alan Delon terá tambem contribuido para o virar da tortilha vermelha que é o coração de cada mulher. De qualquer maneira, a foto ilustra bem, que mesmo aqueles que se acham a ultima bolacha do pacote e simultaneamente o rei da cocada preta, mesmo esses, estão sujeitos à inevitabilidade da perda. Por isso, amigos e conhecidos, quando se acharem invenciveis, aí sim, devem começar a ter cuidado, porque é nesse momento que começa a virar a tombola dos dias e as pedras começam a rolar. Porque as pedras tambem rolam. Assim como os olhos castos das esposas entediadas. E como as cabeças dos reis.

Natureza em Execsso

Estava muito frio. Subimos na direcção dos Lagos da Covadonga, naquela estrada estreitinha e inclinada que causa vertigens a quem é de sentir vertigens. Largamos o carro e continuamos a pé pela montanha. Um bocado, devagar, sem exageros. Depois vimos o Lago. Entre nós e o lago, um enorme prado verde. O céu estava enevoado naquele cinzento metálico a ameaçar neve mas quando chegamos ao prado o sol abriu tornando ainda mais apetecível o caminho. Seguimos a direito aquela extensão do único quilometro plano do passeio. O prado, a meio fez-se um lodaçal e de um momento para o outro ficamos enterrados em lama gelada até às canelas. Voltar para trás ou avançar. Quando mais andávamos na direcção do lago, mais fundo o lamaçal ia ficando. Com lama gelado pelos joelhos sugeriste, suavemente e emocionada, que se calhar era melhor voltarmos para trás que a lama, a agua e o gelo nas pernas e pés te eram desconfortáveis.... Também disseste qualquer coisa como não tínhamos condições de lavar roupa e estávamos ja cheios de lama.... Como não sou de conflitos, acedi e retiramos. Molhados e com fome, caminhamos até ao supé do monte atrás do qual tínhamos deixado o carro. Subimos outra vez. La em cima, sentamos-nos virados para aquela mancha clara no cinzento do céu que devia ser o sol. Tirei o farnel da mochila e dispus a mesa em cima de uma pedra. Atrás de nós uma murada construída não sei por quem nem para que efeito, protegia do vento. comemos tâmaras, amêndoas, passas de figos, triangulos de queijo e chouriço que cortei com a navalha. Bebemos chá bem quente que tirei de um termo agasalhado dentro de várias meias de lã (ainda estão para inventar melhor forma de proteger os termos!!). Depois de limpar a navalha, fui fazer xixi e tirei-te a fotografia. Apesar das botas não deixarem entrar água, as calças entre os joelhos e os tornozelos estavam ensopadas... e agora que tínhamos parado fazia realmente frio... Quando voltei a sentar-me ao teu lado, entre o zangada e o cansada, num tom que não admitia mais conversa, disseste: -- Helder, já chega de Mãe Natureza, está bem?!?!?