terça-feira, 27 de novembro de 2018

O Tigre

O tigre é feroz, mas a mulher é mais... Sei do que falo. Em tempos remotos, estando eu a vadiar neste calhau redondo e molhado de mar, cruzei-me com um tigre. Foi ao nascer do dia no Parque Natural de Ranthambore, no Rajastão, uma antiga reserva de caça de um Marajá Foi uma coutada de luxo de um daqueles marajás que vivia milionário do oficio de lamber o cu ao Ingleses e reprimir o seu próprio povo. O governo da india fez um parque natural onde é possivel caçar bichos de maquina fotográfica. Tinha chegado na vespera na camioneta da carreira. Viajava com uma mulher que não estava tão receptiva a ideia de conhecer a India profunda quanto eu. Chegamos cansados, alojamos-nos numa tenda alugada nas traseiras de um hotel. Comemos, dormimos, comemos e saímos para ver os tigres. Ainda de noite, da reserva veio um jipe de caixa aberta, onde embarcamos juntamente com um casal de belgas equipados com camaras e aparelhos que davam para filmar no banco do carro a odisseia do espaço, ambos vestidos de camuflado e lavadinhos de fresco. Lembro-me que estava frio e nós não tinhamos tomado banho porque não tinhamos água quente. Seguimos umas duas horas por caminhos de terra. Vimos passaros esquisitos, javalis, veados, texugos e bicheza varieda. Finalmente o carro parou à entrada de uma clareira onde um javali chafurdava na lama de um charco. O guia fardado de caçador e turbante avisou no seu ingles "made in India" que o tigre do qual seguiamos as pegadas há horas, estava ali escondido, do outro lado, nos arbustos. Foi então que se ouviu o rugido. Um rugido petreficante que nos deixou a todos paralisado. Incluindo o javali. Os belgas dispuseram o equipamento. Eu pensei, porra, vou tirar a foto da minha vida para mostrar ao puto. O meu filho teria nessa altura uns cinco ou seis anos... Tinha-me pedido um Tigre e eu dei-lhe um gato... Estava na hora de me redimir e "levar" o tigre pró puto. Sem fazer barulho desci do jepe e aproximei-me da clareira de maquina na mão. Silencio total. Até os pássaros se calaram para ver o que ia acontecer. E aconteceu: o rugido que soou naquele momento, pode não ter sido tão intenso como o do tigre... Mas veio em elevados decibeis e em portugues. -- Foda-se Helder, estou farta desta merda. Venho práqui sem condições nenhumas, dormir numa tenda, sem agua quenta, a ter de fazer cócó num buraco, comer caril de manha, à tarde e à noite, a levantar-me de madrugada e apanhar frio...e para cumulo, agora estás com esta palhaçada de quereres tirar a fotografia ao Tigre! Sabes a quantas horas estás do hospital mais proximo? Tou farta das tuas loucuras Helder! Já chega foda-se! Tou farta. Fartinha! Isto não está a resultar! Tudo isto, foi gritado ecoando no silencio da selva. De facto não estava a resultar. Mas o que tambem é um facto, é que a gritaria não só safou o javali que despertou da parelisia, mas tambem fez fugir o tigre a sete pés, provando definitivamente que em termos de bichos perigosos nada chega à agressividade de uma mulher a quem tiraram a possibilidade de usar o secador. O guia do parque, mais tarde, na garagem onde lavava a lama dos peneus do jipe onde partilhamos chá e vinho do porto, e falavamos de animais e da vida, deu-me um conselho precioso: arranja outra mulher que esta que tens é muito barulhenta! Quem se lixou no meio disto foi o tigre que fugiu sem tomar o pequeno almoço, e os belgas que tiveram de voltar a acordar cedo para tentaram o filme no dia seguinte.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O radar dos pássaros

Li uma vez um livro que conta como um militar, angustiado e inquieto com a guerra colonial, com o medo, com o peso dos cornos mais o tédio, carregado de whiskie marado, ia despejar a raiva e a G3 nos flamingos das praias de Maputo, quando os colonos ainda lhe chamavam Lourenço Marques. Matava os pássaros pousados e em voo sobre as águas. Uma metáfora sobre a angustia do viver fardado a matar e morrer pelo absurdo do império colonial. Muitos verões passaram depois de ler o livro e vem a realidade, essa alternadeira louca e desvairada, mostrar-nos a todos, mais uma vez, que as metáforas dos livros bebem leitinho morno comparadas com as estaladas de bagaço com que a realidade bate. Isto porque grupo de pessoas importantes, depois de muito pensar e refletir, decidiu espetar-nos com um aeroporto pelas trombas. Aqui mesmo em cima da Ilha do Rato. Com os pés de asfalto a pisarem o rio e os gritos mecânicos mais o bafo a borracha queimada e a gasóleo a bater. Aqui no Xangai, no Lavradio e no Altoseixo. Um aeroporto que dizem que é no Montijo mas que nos cai mesmo ao colo sem a malta ter chance de dizer pára lá aí meu! Um bicho grande de ferro e betão que vem saindo da da base do Montijo e avançando pelo nosso Tejo adentro. Desprezando a Ilha, o rio, os peixes, as pessoas e todos todos os pássaros. A estrada larga de alcatrão da pista de aterragem a violar as águas e as marés. Os aviões a violar os ares e as criaturas que voam. O som dos motores a violar as areias, a violar as águas, a violar todos e cada um dos peixes. Os aviões a aterrar a levantar de dentro das nossas casas, de cima da mesa da cozinha. O aeroporto a violar partindo todas as janelinhas das marquises e arrancando da corda a roupa estendida. Com os bichos de ferro a passar a cada cinco minutos, de dia e de noite, a abanar-nos os copos nos armários, os vidros das molduras nas paredes. A violar os telhados com detritos e os alicerces todos com vibração. O fumo a enegrecer-nos as cortinas, a violar-nos os olhos e os dias dos nossos netos por nascer. Os homens importantes e engravatados com a futuro deles a sair pela braguilha aberta, a violarem-nos os pássaros e o futuro. O oficial cornudo do livro da Lídia usa a metralhadora, estes não usam metralhadoras. Mas tal como no livro, também estes homens matam. Também eles, igualmente imponentes para amar, escolhem matar. Também eles embriagados de poder, bêbedos do seu próprio cuspo, vieram para nos matar. A começar com os flamingos nas praias da gente. Nas hélices dos motores, vão misturar-se as tripas dos pássaros, as escamas dos peixes e o que sobrar dos nossos sonhos. Vão misturar-se, as cabeças dos peixes, as penas cor-de-rosa, fragatas, pescadores envelhecidos, os bicos curvos, as patas, e os ossos ensanguentados ou ressequidos, com ameijoas extintas, lambujinhas, óleo de motor e sal. Dizem que a chuva de leite e mel vai ensopar a terra de guito. Dizem que vamos deixar de ser pobres e de andar a contar os trocos para o tabaco. Prometem que vai chegar dinheiro para todos aqueles dispostos a trabalhar na mina próspera do turismo. E contam-nos historias luminosas. Por isso muitos seguem adormecidos nas camas do sonho. Feito múmias embalando asco na fantasia do possível sem ouvir o som dos motores que se aproximam. Nas aguas fundas do Tejo salgado, nadam corvinas, sargos, robalos e douradas. Nadam misturadas com as Tagindes do Camões, com as Oxuns nigerianas e quinhentistas escravizadas e importadas pelos navios negreiros. Mais as Kiandas que soldados e emigrantes trouxeram de Angola. Mais velhas ninfas neolíticas com colares de conchas. Nadam enguias atomizadas da central nuclear de Almaraz. Nadam as almas penadas dos marinheiros de todas as nações que aqui desaguaram. Aqui, onde nas madrugadas de nevoeiro soam os gritos dos mariscadores afogados em invernos passados e que permanecem eternamente perdidos nos lodos das marés vazias de nevoeiro e miséria. Por cima de todo este Tejo, planam os pássaros que quando pousam nas areias que o vento e as marés tonam a cada manhã novamente virgens, alisam as penas e falam uns com os outos em linguagem de pássaro. Os pássaros, que são entidades de facto superiores, juntaram-se num bando denso e em unanimidade, decidiram assombrar o voo dos caças da base-aérea. Então, os homens dos aviões, avisados pelo clamor das populações, crédulos em presságios de morte vinda dos céus, e assustados com o frenético piar dos pássaros foram falar com os donos da pista que se quer estender: Os aviadores perguntaram aos homens que mandam --Mas e os pássaros? É que sabem, com os pássaros é perigoso aterrar... Sempre preparados, os homens que mandam, com o sorriso beato dos que transportam a luz no cartão de crédito platina, disseram iluminados: – Isso é simples, faz-se um estudo e impacto e põe-se um caralho qualquer a tomar conta dos pássaros. – O quê? Perguntaram os aviadores, quase chocados, porque sendo homens de estudos estavam pouco familiarizados com o desbocado vernáculo, distantes em alojamento e linguagem das casernas dos praças. Os homens que mandam corrigiram: – Um radar!! põe-se um radar! Então os senhores pilotos não sabem que um radar é um caralho dos tempos modernos!!! E o falava em nome dos que mandam, continuou a sua iluminada dissertação do caralho: – Um radar é um caralho no sentido mais literal do termo, vernáculos penianos à parte. O caralho era cestinho que servia de ponto de vigia no cimo dos mastros das caravelas. Isso mesmo, senhores pilotos, o cestinho no mastro chama-se caralho. Era onde os marinheiros ficavam à procura do voo das aves que servia para indicar aos nossos nobres e bravos antepassados, heroicos navegantes, a presença tão desejada de terra firme... Assim, com o radar, vemos os bandos dos pássaros a chegar à distancia... E com o silencio que se fez, ficou o senhor importante contente a sorrir para os outros senhores importantes presentes, também eles contentes e esclarecidos com o caralho. --E quando vieram os bandos de pássaros? Como se faz? Insistia o piloto de aviões que é assim uma espécie de motorista com conhecimentos de mecânica mas que é engenheiro. -- Aí é simples, enxotam-se os pássaros com o barulho do motor, ou então não se voa! – Enxotam-se os pássaros?? ou não se voa??? repetiram os aviadores ainda encaralhados com a ideia do radar!!! --Então e para que serve um aeroporto onde não se pode voar? Perguntaram os homens dos aviões.... -- Bem, os senhores são pilotos sabem de pilotagem. Nós que decidimos, damos-vos o aeroporto, damos-vos lições de historia do caralho e ainda querem lições de economia? Deixem-se de merdas e vão mazé trabalhar. E eles foram.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Sessenta Verões

Conheci a Mariana em 1953, numa terça feira, na sala de matematica do Liceu Nacional de Faro. Tinhamos dez anos e passava das oito da manha. Era o primeiro dia no liceu mas o comboio que me levou Olhao, decidiu atrasar-se. Corri e entrei pela primeira porta que vi aberta. Procurei a sala 3...Pentei a franja e com a coragem dos resignados, bati e esperei. -- Entre. Entrei e vi-a. Vi a Mariana mais uma turma de meninas da minha idade e uma professora que depressa me corrijiu o erro. Aqui era a seccao feminina, tinha de sair para a rua, dar a volta ao edificio e entrar por outra porta. Tudo isto me foi dito em tom de raspanete. Eu muito ao longe porque toda a minha atençao, interesse e sentidos foram sugados pelos olhos escuros da Mariana. Ela era de muito longe lá da serra, para os lados de Alcoutim. Mais tarde fiquei a saber que estava a morar com a familia de um senhor chamado Alfredo que era chefe de qualquer coisa na Camara de Faro. O funcionario e a esposa eram devotos catolicos e tinham uma filha da nossa idade, a Maria da Luz. O padre Saraiva que tinha estado em Alcoutim, conhecia a Mariana e a inteligencia da menina e por isso convenceu o Alfredo e a Dona Gloria a aceitarem em casa a Mariana para que a menina pudesse estudar em Faro no liceu. A familia da Mariana, proprietarios de algumas terras na serra, nao tinham muito dinheiro, mas quinze em quinze dias faziam chegar um carregamento de generos alimenticios que suplantavam largamente o consumo da pequena. A Mariana era magra e seca como os serros à volta do Guadiana. Um sorriso cheio de luz e uns olhos que se riam mesmo quando ela nao se queria rir... Quando conheci a Mariana em 1953, conheci tambem o Luis. Meu melhor amigo do liceu e companheiro de aventuras. Desde aquela manha de outubro de 53 ate ao ano fatidico de 1958, todos crescemos juntos. Eu, a Mariana, o Luis e a Maria da Luz. Hoje sei que foram os melhores cinco anos das nossas vidas. A nós cresceram-nos quase bigodes e a elas cresceram as maminhas. A nós cresceram as pernas e os braços para nadar quando nos baldavamos às aulas. A elas cresceram as nadgas para nos enloquecerem quando dançavamos nos bailes da sede do Farense. Quando em outubro o Luis fez 15 anos o pai deu-lhe ordem para fumar e ofereceu-lhe uma chata. No primeiro sabado, saimos os quatro no barco pela ria com as raparigas clandestinas. Atravessamos a ria e aproamos à praia. O paraiso prometido em bilhetes ousados escritos nas folhas de caderno e segredinhos no saguao dos predios abriu-se quase em simultaneo para os quatro. Dois a dois, sem misturas nem confusões, que estavamos nos anos 50. Esse foi o inverno mais quente da minha vida. Sempre que nao chovia iamos os quatro para a ilha dos amores. Seguia com a Mariana por entre as dunas e os arbustos rasteiros até uma cama de areia branca onde descobrimos juntos e felizes o jogo de amar. As vezes ouviamos a Luz e o Luis. Imagino que tambem eles nos ouvissem a nós. Todos ouviamos o mar. Quando chovia, coisa rara, ficavamos no armazem onde estava o barco. Nesse ano, eu,a Mariana e a Luz preparamos-nos para o exame do 5° ano, com sessoes de intenso estudo. O Luis que em março já tinha decidido ficar no quinto ano outra vez, mas solidario no esforço, em imprescindivel no jogo a pares, tambem ele participava no estudo. Em maio, pela pascoa, a Luz começou a engordar. Ao mesmo tempo começaram os enjoos.. O Luis e a Luz estavam grávidos. Nalguma tarde de final de inverno a coisa acontecera. O Alfredo da Camara dizia que matava. A Maria da Luz chorava e a Dona Gloria calada a pensar. Isto contou-me a Mariana que se foi esconder no quintal quando a coisa se soube la em casa. A Dona Gloria conhecia uma parteira em Vila Real que fez o desmancho. O exame do quinto ano estava marcado para quarta-feira dia 4 de junho. No domingo dia 1 de junho, dia da crianca, a Maria da Luz foi abortar. A coisa correu mal e a Luz sangrou durante dois dias. Trouxeram-na para Faro na manha de segunda-feira. À tarde veio o médico. Falou claro, repouso absoluto nos proximos tres dias. E o exame? Nem pensar em exame dizia o medico. Mais inteligente que o medico a Mariana decidiu: o exame para as meninas era de manha e o exame dos rapazes era feito à tarde... Entao o Senhor Alfredo. Pai da Luz só tinha de escrever uma carta a pedir para a filha ir exepcionalmente ir fazer o exame à tarde porque chegaria nessa manha de Lisboa. Ela, Mariana entregava a carta em mão ao reitor e à tarde ia fazer o exame, fazendo-se passar pela Maria da Luz levando o documentos da Luz. Fazia o mesmissimo exame que tinha feito de manha com o juri das professoras, desta vez num juri de professores e numa sala de rapazes. Os professores nao conheciam as alunas por isso nao havia problema. Assim foi. So que a cabra da professora de matematica das raparigas era a dignissima esposa do professor de frances dos rapazes e ja o exame ia a meio, entrou a docente pela sala para levar uma sandes ao marido e imediatamente reconheceu a Mariana, sua aluna que tinha feito exame durante a manha. Chamaram o reitor. O reitor, zangado por ser incomodado, chamou o policia. O policia,sem saber o que fazer, chamou o conissario. O senhor comissário, sem se intimidar com os doutores, chamou criminosa à Mariana. porque identidade falsa é crime na republica portugesa. A Mariana foi expulsa do liceu e voltou para Alcoutim. Nunca mais a vi. A Luz ficou esse verão em casa, recuperou mas não teve filhos. Foi trabalhar para a loja de uma tia em Lagos e casou-se com um ingles mais velho que tinha um veleiro. O Luis desistiu de estudar e continou o negocio do pai com traineiras. Eu fui trabalhar como escriturário na CP.Saí de Olhão, vim para Santa Apolonia e cheguei a chefe de seccao. Casei, tenho dois filhos e tres netos. Vivo na Amadora e estou viuvo ha dois anos. Nao durmo as noites porque fico acordado a sonhar com a Mariana. Se por acaso a virem por aí, digam que o Artur gostava de se encontrar com ela, para tonarmos uma cafe ou coisa assim. Afinal só passaram sessenta verões.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Quando o sporting joga fora

Trabalhavam as duas na secção de recuperação de crédito. Tinham a mesma idade com diferença de 3 dias, uma nascida a 5 a outra a 8 de Fevereiro. Começaram novinhas no banco mais ou menos ao mesmo tempo. A vida fê-las colegas e elas tronaram-se amigas. Depois, porque foram educadas para isso, uma delas casou-se com um rapaz que trabalhava nas finanças, e a outra, um ano depois casou-se com um moço sargento da marinha em permanência no Alfeite. Uma delas católica quase quase praticante, tinha sido catequista e tudo. A outra menos praticante, mas igualmente conservadora filha de um gnr e de uma senhora jeová. Escolherem maridos do tipo bom moço trabalhador, moderadamente ciumentos e luso-machistas sem excessos. Os maridos tornaram-se também eles grandes amigos. Por alem das esposas trabalharem no mesmo sitio, os rapazes tinham em comum um grande amor ao sporting. Ambos sócios encartonados com cotas em dia. Assíduos nos jogos a puxarem um pelo outro assim como puxavam pela equipa. Vieram as crianças: dois meninos gémeos com a trombinha do sargento e uma menina que era a alegria do gajo das finanças. As gravidezes quase simultâneas aproximaram ainda mais as duas amigas. Os dois casais começaram a passar ainda mais tempo juntos. Juntavam-se todos os fins de semana. Quando o sporting joga em Alvalade jantam no sábado e no domingo eles vão os dois à bola e elas ficam juntas em casa, porque não são de sair. Quando o sporting joga fora, eles vão no sábado e elas ficam com as crianças alternadamente na casa de uma da outra. Um domingo em Alvalade, o outro domingo em viagem por este imenso pais de futebóis. Os homens chegam ao final do domingo, eufóricos ou lamentando arbitro, a equipa o presidente... Depois eles ficam a ver os comentários na televisão e elas arrumam a cozinha. Moram a dois quarteirões de distancia. No segunda-feira voltam a encontrar-se as duas na copa, para beber café e arrumar no frigorifico pequenino, as caixas de plástico com o almoço que partilhavam. A coisa é assim há mais de quinze anos. Até que um dia, uma quinta-feira de manha, estava eu na garagem do banco entretido a ler a bola quando desceu o Senhor Gonçalves responsável pela logística e chefe da manutenção, por isso meu chefe. Vinha de cenho fechado e sem dizer bom dia perguntou logo de mau humor: Não tem nada para fazer? A manutenção deste edifício está em pausa? -- Senhor Gonçalves, estou a espera que cheguem as tomadas para ir substituir la em cima na administração... devem estar ai a chegar. Respondi modesto mas rápido, afinal de contas, trabalhava na manutenção há tempo suficiente para ter sempre umas cuecas de aço vestidas quando o chefe chega de mau humor... -- Olhe homem, vá mazé lá a baixo à subcave onde temos o arquivo-morto e veja la o que se passa com a luz, porque já se mudou a lâmpada e não é da lâmpada... O arquivo morto estava sem luz há três semanas. Tínhamos ficado e substituir toda a infraestrutura elétrica no próximo mês de agosto. O cabrão do Gonçalves sabia isso muito bem... Mas chefe é chefe, dobrei o jornal e fui. Desci pelas escadas para fazer tempo e com a lanterna grande na mão. Agora é que lhes deu a pressa!!! Abri a porta com um encontrão, zangado de estarem a inventar coisas para me mandarem trabalhar. Foi então que as vi. No canto entre prateleiras cheias de dossiers. Estavam as duas despidas da cintura para cima. Abraçadas, uma com a mão direita debaixo da saia da amiga que tinha as cuecas junto aos sapatos de médio salto. A outra com os cabelos soltos e a cabeça deitada para trás. Ficaram tão chocadas quanto eu. Ou melhor ficaram mais chocadas que eu...alem de chocadas, encadeadas pela luz da lanterna e gelaram pela travagem brusca na auto-estrada amor que seguia em excesso de velocidade. Sai tão depressa como entrei. Fui chamar o elevador que se chama monta-cargas porque é maior e menos limpo. O monta cargas demorou o tempo suficiente para que elas chegasse ao pé de mim. --Não vi nada. E têm a minha palavra que vou guardar o segredo do que não vi. Guardei. Não falei disto a ninguém. Entre nós os três cimentou-se uma profunda amizade e respeito mutuo. Ficamos amigos até eu me reformar do banco. Mas brincadeiras à parte, digo-vos uma coisa: eu sabia sempre que o sporting jogava fora pelo despertar do leve sorriso de satisfação nos rostos sério e contidos das duas amigas.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O bichinho filhodaputa

Há um bichinho filhadaputa que se mete nas fendas do peito e fermenta nas fendas do corpo, chama-se amor e serve a humanidade. Quando o Fonseca acabou o ato físico de amar, abraçou-se ao corpo da Lúcia. O quarto da pensão promovida a motel, pareceu-lhe ser um lar. Nesse preciso momento, sem que se apercebesse, a mulher com quem estava casado, passou à condição de ex. E foi então, que aquela que até ali era a outra, impulsionada pelo bichinho filhadaputa que é o amor, subiu de estatuto e passou a ser a sua. Naquele dia, à hora de almoço, o caso que era apenas um caso, deixou de ser um caso. Duas semanas depois daquele êxtase controlado entre a saída para o almoço e o café na copa, o Fonseca sairia de casa com duas malas e um entendimento mais ou menos resolvido com a mãe dos filhos, sobre dinheiro, educação das duas meninas e propriedade da casa hipotecada ao banco. Passariam dois meses e a Lúcia, seria assumida como namorada. Menos de um ano depois do encontro furtivo, estariam a viver juntos. O bichinho filhdaputa do amor, iria empurra-los um contra o outro como as pessoas são empurradas e apertadas nos autocarros às seis da tarde. Mas os amantes, àquela hora e naquele lugar, não sabiam de nada disso. Enquanto o Fonseca lhe beijava os ombros nus, ela deu-se conta que ao contrário do que era habitual nele, depois da função cumprida, não se levantou para ir fazer xixi. A Lúcia, aperceber-se dessa mudança assustou-se. As mulheres são mais sensitivas e percebem melhor as movimentações do bichinho filhadaputa que é o amor. Por pressentir o amor a instalar-se gelaram-lhe as costas e ela enroscou-se em si própria abraçando os joelhos a pensar que podia coordenar a secção de processos. O Fonseca abraçou-a e sentiu-se protetor e gostou. De olhos abertos, fitava uma mancha de bolor no abat-jour do candeeiro da loja dos 300, e o bichinho filhadaputa do amor, a abancar-se silencioso dentro dele. Estes minutos do pós coito, de cabeça vazia eram uma ginástica mental, uma ioga da hora de almoço... Espaço aberto para quebrar regras numa existência regrada e focada em objetivos. São estes espaços de cor e luz, precisamente os mais propícios para o bichinho filhadaputa do amor se desenvolver... O caso deles começou com uma proeza que o discreto Fonseca exibia a si próprio: a conquista do cobiçado rabo redondo da Lúcia. Para Lúcia era a junção agradável de uma necessidade fisiológica com a hipótese de incrementar a sua pontuação no complicado sistema de avaliação de desempenho. Passou a ser para os dois, um momento de escape diário. Naquele dia o Fonseca percebeu que afinal havia ali mais qualquer coisa do que uma mancha secreta de prazer na sua existência de fatos cinzentos, registos e assinaturas. Sem perceber bem porquê abraçou-se a essa coisa como um naufrago se agarra a uma boia ou um cão abandonado se apega a quem lhe der comida. Por isso, naquele inicio de tarde, sem saber dos efeitos secundários do bichinho filho da puta do amor, o Fonseca, persistia agarrado às costas da Lúcia que tinha noção que se ia atrasar, mas tinha a certeza absoluta que chegaria antes do chefe. Um carro buzinou na rua. Ele despertou da sua letargia e beijo-lhe a nuca. A Lúcia sentiu um beijo como um sinal da hierarquia para avançar com o processo: levantou-se, limpou-se com as toalhitas de aloé que tinha na mala, vestiu-se, beijou-o e saiu. Ele deixou-se ficar deitado mais três minutos contados no relógio que fez pipi, sem pensar em nada, apenas a padecer da febre do bichinho filhadaputa. Depois foi urinar, vestiu-se, agitou a gravata, pagou a pensão e voltou digno para a companhia. Meia hora depois, no escritório, os olhares deles cruzaram-se e ela disse: – Doutor Fonseca, vou lá a baixo a tesouraria, precisa de alguma coisa? – Deixe estar Lucia, vou descer consigo que tenho de falar com o Doutro Ferrão. Desceram juntos no elevador cheio com mais três colaboradores engravatados e uma senhora de uma empresa externa que fazia as limpezas e empurrava o carrinho e que era invisível para os outros cinco. Apensar do elevador sobrelotado, os amantes sentiram-se sozinhos no mundo. Lado a lado. As suas mãos tocaram-se. Sorriram para si mesmos e a vida continuou com o bichinho filhadaputa a fazer das suas. Ela continuou trata-lo por senhor doutor e ele continuava a pedir-lhe as fotocopias “por gentileza” mas entre os dois uma ponte feita de cuspo do bichinho filhadaputa do amor cresceu como os formigueiros em Africa. O que antes era apenas tesão, vaidade, e empenho na progressão da carreira, evoluiu mais qualquer coisa que não se sabe muito bem o que seja e que logo a começar por isso mesmo é muito melhor do que as coisas que se definem facilmente, se medem e se podem indexar. Viveram felizes para sempre durante cerca de dois anos. Então o Fonseca foi promovido a diretor de sinistros e a Lúcia coordenadora da secção de processos. A vida, o trabalho e o igualitarismo dos dias, enxotou o bichinho filhadaputa. A Lúcia reencontrou no facebook o David Santos seu ex-colega de liceu que voltou do Luxemburgo para abrir um stand de carros importados semi-novos. O Fonseca andou uns meses amargurado e revoltado com a facilidade com que se transferem as matriculas. Passou-lhe a revolta e voltou para casa da mãe das filhas no dia em que viu em que a ex-mulher lhe deixou as meninas em casa para para sair maquilhada com as colegas professoras. Ele ficou com as miúdas e o bichinho filhaputa instalou-se devagar. Meses depois voltava para a casa onde viviam a ex e as filhas, que de todas as formas nunca deixou de ser ele a pagar a hipoteca.