sexta-feira, 7 de maio de 2021

Em arame farpado


Lavam a loiça nas tascas. Lavam o chão nos cafés. Lavam os cus aos velhos, pões-lhes cremes e dãos-lhes colheradas da sopa que os mantêm vivos.

Mudam de roupa nas dispensas e em garagens. Os pes descalços no cimento frio. Depois vão para outro emprego limpar mais casas. Limpar estores e janelas. Limpar os escritórios e os restaurantes.

Descascam batatas, lavam a loiça, arrumam caixas e detergentes. Comem o que sobra da cozinha do lar e da cantina. 

À noite servem bebidas, maquilham-se e perfumam-se com maquilhagem e perfumes baratos e convidam homens para beber. Servem pipocas em tijelas em cima dos balcões que são elas que limpam. 

Servem bebidas com sorrisos. 

Servem

Servem vendendo o corpo na cama que foram elas que fizeram. As pernas abrem-se, a boca geme e sussurra palavras de amor repetidas. A mente foge e vai para longe, para casa, para as contas, para a novela, para a infância remota, para qualquer lado menos o ali e naquele momento. Acabado o ato, lavam-se a elas com as toalhitas do possivel e voltam para trabalhar mais. 

Às cinco e meia saem e vao limpar escritórios, lojas e farmacias. 

Às oito apanham flores nas estufas. Às nove podam oliveiras no campo. Ao meio dia param para comer restos. À uma voltam a trabalhar.

Com eles é diferente. 

Eles dormem oito numa garagem em colchoes insuflaveis. Comem arroz cozinhado em campingás e esperam que o patrao os venha buscar na carrinha. 

Sobem e descem andaimes. Fazem massa e carregam baldes. Tijolos e tábuas. Caixas de mosaicos. 

Dobram-se para podar as vinhas. Dobram-se para apanhar os tomates. Dobram-se para passar a talocha no cimento fresco. Dobram-se na carrinha para a policia não os ver.

Lavam-se no bidom à saida da obra antes de voltar a entrar na carrinha. Lavam-se no alguidar à porta do armazem onde dormem. Deitam-se com toda a roupa vestida no inverno. No verão descansam nus na sauna da chapa de zinco que os tapa.

Ao fim do mes, da semana, do dia, da jorna, quando lhes pagam, contam o dinheiro e celebram.

Uma parte para pagar a casa e as dividas ao patrão. Uma parte para o supermercado. O que sobra, quando sobra, vai para cerveja. Outros mais focados conseguem mandar vinte euros.

Eles e elas, se adoecem vão trabalhar à mesma. Ou pior  ficam deitados no chão do barracão à espera que a doença passe. 

Não têm documentos. Não existem. São fantasmas.

Assombrações que te apanharam os morangos que comeste hoje e lavaram o chão do banco que é dono da casa que dizes que é tua.

Esquece lá isso. Dizem que o benfica foi roubado e isso deve ser mais importante que enforcar em arame farpado os empresários que vivem de chupar o sangue a esta gente mais os fiscais e autarcas coniventes.

Agora descansa.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Pink Floyd em Vila Pery

 


A menina tinha quinze anos. Era um domingo à tarde e a menina tinha ficado em casa para ouvir o Dark Side of The Moon dos PinkFloyd.  

Estava sozinha porque o resto da família tinha ido ver o jogo do Textafrica, a equipa local do Chimoio, a cidade onde vivia. Ao domingo à tarde o Chimoio pàra por causa da bola. Cidade que  é capital da província de Manica, está a mil e cem quilómetros a norte de Maputo que naquela altura ainda muitos chamavam Lourenço Marques.

A Textafrica alem da equipa de futebol também era uma imensa fabrica têxtil com milhares de trabalhadores. O maior empregador local e regional. A fabrica naquele conturbado ano de 1975 continuava a produzir. Contra a sabotagem de alguns, as previsões de muitos, e o desejo de uns quantos, continuava a trabalhar e produzir tecidos. 

Os donos da fábrica fugiram para a Africa do Sul e outros para a Rodésia. Mal se soube do 25 de Abril em Vila Perri, que era assim que os colonos chamavam ao Chimoio, os agentes da pide que eram quem administrava a cidade, meteram-se em dois carros arrancaram para o sul e nunca mais ninguém os viu. Os colonos donos de negócios mais pequenos que a fábica, ficaram preocupados com a fuga dos pides. Agora quem é que ia prender os terroristas moçambicanos capazes até de pedirem aumento e fazerem greve?!?! Deixaram a politica para os políticos, armaram os capatazes, os comerciantes brancos e meia dúzia de indianos de confiança.  

Reuniram-se colonos, latifundiários, patrões, capatazes, comerciantes locais e alguns quadros técnicos. Convenceram-se ou foram convencidos, que haviam de ficar e fazer como na Rodésia, ou como na Africa do Sul. Uma independência Branca explicavam uns aos outros para se motivarem e treinaram a argumentação. 

Bebiam whiskies, contavam anedotas racistas, mandavam dinheiro, joias, as mulheres e as filhas para Portugal e ficavam a exibir armas, carros e amantes pelas ruas largas e poeirentas do Chimoio. Falavam de economia e desenvolvimento e diziam que sem eles e sem o seu superior conhecimento da manha do indígena, Moçambique era ingovernável.

A menina de quinze anos, sabia pouco de governabilidade. Tinha roubado um SG Gigante  do maço do pai para fumar a ouvir o disco dos Pink Floyd. Pôs o  vinil a rodar 33 voltinhas por minuto, aumentou o som, acendeu o gigante e esperou. 

A canção "money", tal como todos sabemos (e quem não sabe devia saber), começa com ruido de moedas a cai. Depois é que entra o barulho de maquinas registadoras. E só a seguir é que se ouvem as guitarras e a bateria. 

Naquela tarde, a menina aproveitava estar sozinha para ouvir o disco bem alto. Mais alto do que lhe era habitualmente permitido ouvir discos. Com o som do gira-discos no máximo  o sg gigante aceso entre os dedos. Nos pés as socas de tacão que estavam na moda. Os ouvidos de adolescente apuradíssimos para aquela musica que lhe lhe tinham dito que era tão diferente e dissonante de tudo o que conhecia.

Na confusão de sons da musica parece-lhe ouvir disparos. Pensou que estes Pink Floyd eram mesmo uns malucos do caraças. 

Só quando viu o estuque a saltar na parede da sala e aparecerem tricotados os buracos das balas é que a menina percebe que a casa está a ser atacada. 

Esconde-se na casa de banho que é a divisão mais interior. Deita-se na banheira e tapa a cabeça com a cortina. Não lhe perguntem porquê. É nessa posição que pode parecer ridicula que espera. Espera não sabe se pela morte. Ou pior. O que pode ser pior que a morte aos quinze anos? Espera. Os disparos acabaram antes do disco. Os Pink Floy continuaram naquela musica maluca e tremendamente alta. Depois o gira-disco calou-se. Mas a menina continua à espera. Lá fora os pássaros voltaram a cantar as suas canções nas arvores do jardim. E menina sempre à espera. Esperou muito tempo. Ou então, se calhar nem tanto tempo quanto isso. Mas para a menina foram anos. Envelheceu anos naquela banheira sem água à espera.

Quando a porta da casa de banho se abriu entraram três homens. Dois homens negros e um homem branco. Um negro jovem, fardado com uma kalashnikov em riste. Um negro de trinta e tal anos, bigode e fato de treino que era o Mário Culuna, o treinador do Textafrica. E um branco de meia idade de pistola na mão, barbudo, com uma camisa de manga curta azul clara vestida.

O branco era o pai da menina e foi apenas nesse momento, após a longa espera que a menina se deu ao luxo de se abraçar ao pai a chorar e a gritar o seu medo.

O pai da menina, alem de branco e amigo do Coluna era um quadro técnico e comunista. Assim que foram avisados de tiros vieram a correr. Voaram diria mais tarde o Coluna. 

Veio a Frelimo em peso proteger a casa daquele homem branco da raiva dos outros homens brancos.

O pai da menina tinha afrontado os senhores locais. Primeiro porque falava na necessidade de sindicatos aos trabalhadores da fabrica. Depois porque andava com militares negros da Frelimo no automóvel, militares esses que lhe chamavam camarada. Também, porque fazia questão e exibia a todos que tratava as pessoas negras por senhor e senhora -- pura provocação. E suprema ofensa, no jardim do bairro de vivendas onde se instalara tinha uma mesa comprida onde era frequente ser visto a comer e a beber sentado à mesa com pessoas que eram trabalhadores da fábrica.  Trabalhadores pretos! sentados à mesa do jardim da vivenda a comerem e a beberem como qualquer branco!

Antes daquele domingo em que a menina pôs os Pink Flod a tocar, já tinham feito alguns avisos e ameaças ao seu pai. 

Um vizinho boçal, disse-lhe um dia à queima roupa, quando o encontrou à porta de casa: mas você acha que é preto??!!! 

Outra vez furaram-lhe os pneus ao ford.

Era frequente, deixarem-lhe bilhetes com ameaças.

Para o pai da menina, era apenas a luta de classes a acontecer.

A revolução estava a acontecer em Portugal. A independência estava a ser parida ali e naquele momento. Conhecera quase todas as prisões salazarentas onde o tentaram fazer desistir de concertar a injustiça do mundo. Sabia de cor o alfabeto fascista da intimidação. Não era, nem nunca foi homem de desistir.

Naquele domingo à tarde, durante o jogo do Textafrica tentaram outra vez na forma daquele ataque.

O Samora Machel, amigo do pai da menina, três ou quatro dias depois, quando se encontraram na Beira,  perguntou-lhe se estava bem e se precisava de alguma coisa. Disse que não.

-- Ninguém ficou ferido. Ninguém morreu. E se os gajos estão danados alguma coisa havemos de estar a fazer bem feito! Não nos vamos deixar intimidar por estes brancos da merda.

O Presidente da Republica de Moçambique, no discurso dessa noite, falou nos "brancos da merda" que tentavam sabotar o futuro do país. 

Algum jornalista idiota ou mal intencionado fez da frase notícia.

Aqui em Portugal falaram na frase do Samora mas ninguém falou no ataque.

No Chimoio a casa ficou bastante danificada. As marcas das balas permaneceram durante muitos anos nas paredes. Na menina de quinze anos também. Dias dos depois dos tiros, pediu ao pai para voltar para Portugal. O comunista fez a vontade à filha como sempre gostou de fazer.

Passou algum tempo desde que foi feito o Dark Side of the Moon mas para a menina que já tem sessenta anos os Pink Floyd soarão sempre a Africa.

Os brancos da merda de que o Samora falava, continuam por aí a achar que são eles na sua superioridade de alvas criaturas quem sabe o que é melhor para Moçambique. 

E no Chimoio ao domingo à tarde a cidade continua a parar por causa do futebol.