quinta-feira, 11 de outubro de 2018
O radar dos pássaros
Li uma vez um livro que conta como um militar, angustiado e inquieto com a guerra colonial, com o medo, com o peso dos cornos mais o tédio, carregado de whiskie marado, ia despejar a raiva e a G3 nos flamingos das praias de Maputo, quando os colonos ainda lhe chamavam Lourenço Marques.
Matava os pássaros pousados e em voo sobre as águas. Uma metáfora sobre a angustia do viver fardado a matar e morrer pelo absurdo do império colonial.
Muitos verões passaram depois de ler o livro e vem a realidade, essa alternadeira louca e desvairada, mostrar-nos a todos, mais uma vez, que as metáforas dos livros bebem leitinho morno comparadas com as estaladas de bagaço com que a realidade bate.
Isto porque grupo de pessoas importantes, depois de muito pensar e refletir, decidiu espetar-nos com um aeroporto pelas trombas. Aqui mesmo em cima da Ilha do Rato. Com os pés de asfalto a pisarem o rio e os gritos mecânicos mais o bafo a borracha queimada e a gasóleo a bater. Aqui no Xangai, no Lavradio e no Altoseixo. Um aeroporto que dizem que é no Montijo mas que nos cai mesmo ao colo sem a malta ter chance de dizer pára lá aí meu! Um bicho grande de ferro e betão que vem saindo da da base do Montijo e avançando pelo nosso Tejo adentro. Desprezando a Ilha, o rio, os peixes, as pessoas e todos todos os pássaros. A estrada larga de alcatrão da pista de aterragem a violar as águas e as marés. Os aviões a violar os ares e as criaturas que voam. O som dos motores a violar as areias, a violar as águas, a violar todos e cada um dos peixes. Os aviões a aterrar a levantar de dentro das nossas casas, de cima da mesa da cozinha. O aeroporto a violar partindo todas as janelinhas das marquises e arrancando da corda a roupa estendida. Com os bichos de ferro a passar a cada cinco minutos, de dia e de noite, a abanar-nos os copos nos armários, os vidros das molduras nas paredes. A violar os telhados com detritos e os alicerces todos com vibração. O fumo a enegrecer-nos as cortinas, a violar-nos os olhos e os dias dos nossos netos por nascer.
Os homens importantes e engravatados com a futuro deles a sair pela braguilha aberta, a violarem-nos os pássaros e o futuro.
O oficial cornudo do livro da Lídia usa a metralhadora, estes não usam metralhadoras. Mas tal como no livro, também estes homens matam. Também eles, igualmente imponentes para amar, escolhem matar. Também eles embriagados de poder, bêbedos do seu próprio cuspo, vieram para nos matar. A começar com os flamingos nas praias da gente. Nas hélices dos motores, vão misturar-se as tripas dos pássaros, as escamas dos peixes e o que sobrar dos nossos sonhos. Vão misturar-se, as cabeças dos peixes, as penas cor-de-rosa, fragatas, pescadores envelhecidos, os bicos curvos, as patas, e os ossos ensanguentados ou ressequidos, com ameijoas extintas, lambujinhas, óleo de motor e sal.
Dizem que a chuva de leite e mel vai ensopar a terra de guito. Dizem que vamos deixar de ser pobres e de andar a contar os trocos para o tabaco. Prometem que vai chegar dinheiro para todos aqueles dispostos a trabalhar na mina próspera do turismo. E contam-nos historias luminosas. Por isso muitos seguem adormecidos nas camas do sonho. Feito múmias embalando asco na fantasia do possível sem ouvir o som dos motores que se aproximam.
Nas aguas fundas do Tejo salgado, nadam corvinas, sargos, robalos e douradas. Nadam misturadas com as Tagindes do Camões, com as Oxuns nigerianas e quinhentistas escravizadas e importadas pelos navios negreiros. Mais as Kiandas que soldados e emigrantes trouxeram de Angola. Mais velhas ninfas neolíticas com colares de conchas. Nadam enguias atomizadas da central nuclear de Almaraz. Nadam as almas penadas dos marinheiros de todas as nações que aqui desaguaram. Aqui, onde nas madrugadas de nevoeiro soam os gritos dos mariscadores afogados em invernos passados e que permanecem eternamente perdidos nos lodos das marés vazias de nevoeiro e miséria. Por cima de todo este Tejo, planam os pássaros que quando pousam nas areias que o vento e as marés tonam a cada manhã novamente virgens, alisam as penas e falam uns com os outos em linguagem de pássaro.
Os pássaros, que são entidades de facto superiores, juntaram-se num bando denso e em unanimidade, decidiram assombrar o voo dos caças da base-aérea.
Então, os homens dos aviões, avisados pelo clamor das populações, crédulos em presságios de morte vinda dos céus, e assustados com o frenético piar dos pássaros foram falar com os donos da pista que se quer estender:
Os aviadores perguntaram aos homens que mandam --Mas e os pássaros? É que sabem, com os pássaros é perigoso aterrar...
Sempre preparados, os homens que mandam, com o sorriso beato dos que transportam a luz no cartão de crédito platina, disseram iluminados:
– Isso é simples, faz-se um estudo e impacto e põe-se um caralho qualquer a tomar conta dos pássaros.
– O quê? Perguntaram os aviadores, quase chocados, porque sendo homens de estudos estavam pouco familiarizados com o desbocado vernáculo, distantes em alojamento e linguagem das casernas dos praças.
Os homens que mandam corrigiram:
– Um radar!! põe-se um radar! Então os senhores pilotos não sabem que um radar é um caralho dos tempos modernos!!!
E o falava em nome dos que mandam, continuou a sua iluminada dissertação do caralho:
– Um radar é um caralho no sentido mais literal do termo, vernáculos penianos à parte. O caralho era cestinho que servia de ponto de vigia no cimo dos mastros das caravelas. Isso mesmo, senhores pilotos, o cestinho no mastro chama-se caralho. Era onde os marinheiros ficavam à procura do voo das aves que servia para indicar aos nossos nobres e bravos antepassados, heroicos navegantes, a presença tão desejada de terra firme... Assim, com o radar, vemos os bandos dos pássaros a chegar à distancia...
E com o silencio que se fez, ficou o senhor importante contente a sorrir para os outros senhores importantes presentes, também eles contentes e esclarecidos com o caralho.
--E quando vieram os bandos de pássaros? Como se faz? Insistia o piloto de aviões que é assim uma espécie de motorista com conhecimentos de mecânica mas que é engenheiro.
-- Aí é simples, enxotam-se os pássaros com o barulho do motor, ou então não se voa!
– Enxotam-se os pássaros?? ou não se voa??? repetiram os aviadores ainda encaralhados com a ideia do radar!!!
--Então e para que serve um aeroporto onde não se pode voar?
Perguntaram os homens dos aviões....
-- Bem, os senhores são pilotos sabem de pilotagem. Nós que decidimos, damos-vos o aeroporto, damos-vos lições de historia do caralho e ainda querem lições de economia? Deixem-se de merdas e vão mazé trabalhar.
E eles foram.
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