sábado, 21 de setembro de 2019
A importancia de nos chamarmos Menor
Foi numa noite dessas de fim de verão que o meu pai me contou a versão alargada.
Uma noite amena sem ser quente, humida sem ser fria e com aquele luar que convida à contemplação. Ficamos à mesa em familia, debaixo das estrelas a cortar lascas de queijo empurradas com vinho tinto. Depois veio o medronho, caseiro, envelhecido e com frutos macerados. Forte, quente e suave, a lubrificar a memória e evocar casos e historias antigas, daquelas guardadas no baú das mais preciosas jóias de família que são as recordações dos nossos.
O meu pai contou-me o caso como ouviu ao pai dele. Se lhe acrescentou pontos, fez por considerar necessário.E eu registo aqui para que os meus filhos a possam memorizar e um dia contar aos seus filhos e aos filhos dos seus filhos.
Cá vai.
Era uma vez um campones da aldeia de Cabeça Gorda, nos arredores de Beja, cujo nome proprio desconhecemos mas que tinha Abreu no sobrenome. Este Abreu tinha três filhos. Os rapazes terão nascido na decada de 1880. Um deles chama-se José, ou outros dois digamos que João e António, mas desses nomes não temos a certeza.
No virar do seculo, aos rapazes já adolescentes espigadotes e com personalidade propria, é sugerido irem tratar de fazer o registo civil para obterem documentacao. Parece que era obrigatório. O Registo Cívil , por decisão do Estado Português era feito nas paróquias. Isto na moderna monarquia constitucional que se viveu depois das guerras civis de 1800, que aprovadou um decreto em 1878 em que delega aos padres a tarefa do registo da populacao.
Acontece que aos tres manos Abreu, não lhes caia bem nem o padre, nem a igreja. Seja por perguiça, seja por teimosia herética, seja opção, o que é certo é que foram atrasando ida à igreja para dar o nome ao padre que devia fazer os registos.
O padre, pressionado pelo administrador do concelho de Beja que queria os registos actualizados, ia mandando recados pelas beatas:
-- Digam aos rapazes do Abreu que têm de vir a missa para depois eu regista-los!
As beatas da Cabeça Gorda, obedientes e cumpridoras, levavam os recados do padre aos moços que as iam ignorando.
Mas avessos a padres e a missas, os rapazes riam das beatas, do padre, do registo civil, do bispo, do administrador, do rei e de deus, e ao ritmo lento e pressistente do baixo Alentejo iam deixando andar.
Mas o mundo é redondo e andas às voltas, e mesmo numa terra grande como a Cabeça Gorda de 1900 os encontros nefastos dão-se. Um dia, é o proprio padre que se cruza com o Zé, o irmão do meio e o manda ir à igreja fazer o registo. Não lhe pediu, não o informou da necessidade, nem sequer o convocou. Mandou.
O Zé, nos seus catorze anos, já tinha a sua personalidade. Muito mundo andado e muitos dias de trabalho à jorna. Não apreciava de padres, nem arrogancias, não queria ir a igreja, não gostava de ser mandado nem gostava de mandões. Por isso respondeu a matar:
-- Se quiser fazer o registo faça o registo na rua ou em estando a chover, faça na venda que na igreja eu não entro!
O padre, vendo que não adiantava ameaçar com inferno aquele chavalo auto-excomungado e sem a santa inquisicao para poder ensinar o respeito aquele jovem herege, deu-lhe como penitência o castigo ao alcance do poder sa sua batina.
-- Ai nao vais? Pois vais ficar para sempre menor!
E assim foi.
O padre da Cabeça Gorda fez o registo com José Menor.
Aos outros dois irmãos, igualmente teimosos e solidários na briga herética do irmão Ze, o padre chamou ao mais velho Barbado, porque ja tinha barba grossa aos dezasseis anos e ao mais novo chamou Pisco, porque era magrito e era conhecido por gostar de comer azeitonas.
O Zé Menor, meu bisavo, como não se estava a dar bem com o clima da Cabeça Gorda, foi trabalhar como fogueiro para a Estação de Casabranca. Por lá ficou e por lá foi fazendo filhos. Chegaram a adultos sete. Todos Menor. O meu avô António entre eles.
Conta o meu pai que nos anos sessenta ia visitar o avô Ze Menor que nessa altura estava a viver no Escoural e invariavelmente o encontrava a ouvir em segredo uma telefonia a pilhas sintonizado na Rádio Moscovo.
O meu pai adolescente, do Barreiro e atento ao mundo, perguntou-lhe um dia:
-- Avô, porque é que ouve sempre essa estação?
-- Porque tem as músicas mais lindas e não passa missa.
Morreu com perto de noventa anos, sem se confessar, anticlerical e secretamente comunista.
Usar o sobrenome Menor, conquistado assim na guerra contra o clero obscurantista é um legado que trago ao peito como uma condecoração e deixarei aos meus filhos como herança.
O medronho não. O medronho não pretendo deixar como herança. Porque lhes pode fazer mal aos fígados e porque a garrafa já vai a meio.
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Completamente esclarecido sobre as tematicas debatidas espero no entanto conseguir beber um trago antes da garrafa chegar ao fim um abraço
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