terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A relíquia do ditador

O ditador, antes de ser ditador, também foi menino. Na escola primária, os colegas chamam-lhe “combinadinho”. Por ser magrinho e pequenino, justificava a mana Pilar. Por ser uma merdas que andava sempre a volta dos padres-professores a fazer combinações, recordavam os outros alunos. Miúdito introvertido e calado, de compreensão lenta e ligado a intrigas. No liceu, é pouco dado a leituras. Melancólico, deprimido e de aspecto vulgar, é assim que se lembram dele. Sempre pronto a denunciar, caluniar e disposto a tudo para agradar aos professores. Na carreira das armas que seguiu por vocação, só não foi o pior do seu curso porque compensava a inaptidão e a falta de inteligência com uma capacidade de graxa e de delação descomunal. Mesmo num sitio onde a graxa e a delação eram premiadas, como a escola de infantaria de Toledo, o carácter gelatinoso do Paco Franco perdurou na memória dos que com ele tiveram de conviver. Há registos escritos que contam como sofreu de bulling durante todo o tempo que ali esteve a aprender a ser soldado. Faltava-lhe a capacidade de liderança, a criatividade e a audácia. Os outros abusavam do rapaz que se vingava com denuncias e intrigas. É por esta altura, à volta dos vinte anos que se abraça definitivamente na fé em Cristo, nos santinhos e nos curas. Só a fé o podia salvar. É na fé que se vai afirmar. Um militar de fé em Cristo. A igreja católica acolheu-o no seu seio e fez dele o que na história ficou. Os registos e memórias dos nauseabundos fascistas que lhe estiveram próximos, contam que o ditador era um católico devoto e diariamente praticante. Alem da missa matinal e do terço ao cair da noite, tinha uma relação especial com Santa Teresa de Ávila. Muitos acreditava que o generalíssimo tinha uma missão sagrada e uma magia secreta que o faria triunfar sempre. Ele própria acreditava que sim, que estava protegido por Deus. Trazia sempre consigo, nada mais, nada menos que a mãozinha da Santa Teresa de Ávila. Dizia aos mais próximos, que aquela mãozinha da santa, foi quem o susteve e guiou em toda a campanha de vitória por Espanha e na cruzada contra o Comunismo. Aos mais íntimos, chegou mesmo a dizer que a mão da santa Teresa era seu o maior agente de protecção pessoal. Mais eficiente que a falange de assassinos armados até as dentes prontos a matar e a gritar viva Espanha. Mais forte que o exercito equipado com o bom e o melhor, à custa da miséria dos espanhóis. Havia uma equipa de segurança nomeada para proteger com a própria vida, se fosse necessário, a sagrada relíquia. Vivia com a mão da santa na sua e nunca se separava do amuleto. Todas as noites, antes de dormir o generalissimo, exigia que a mãozinha fosse posta na mesa de cabeceira. Foi assim até morrer de velho. Com a idade a avançar e a ideia da morte a fazer-se presente, começou a caçar e a coleccionar relíquias sagradas. Os seus amigos da igreja alimentavam a coisa, alguns historiadores nacionalistas também. Trouxeram-lhe a espada de São Fernado, ou a espada que lhe disseram ter pertencido ao Rei Fernando III de Castela, arma venerada desde os tempos da reconquista. Da Palestina, trouxeram-lhe bocados de madeira velha que disseram ser da cruz de Cristo. Um cardeal amigo em Roma, conseguiu comprar por uma fortuna, um filamento do sudário, aquele pano onde dizem que embrulharam Jesus. Imagens de santos com fama de milagrosas eram às carradas... Mas nenhuma relíquia recebia do ditador o carinho e a atenção que a mãozinha decepada do cadáver da Teresa de Àvila.

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