segunda-feira, 30 de março de 2020
Desculpa lá pá!
….
Quero pedir-te desculpa por te ter chamado tantas vezes de estúpido.
Agora, está decidido, vou ser como tu.
A sério.
Vou deixar-me de politicas e de pensamentos críticos que não levam a lado nenhum só incomodam quem lê.
Vou deixar-me desta mania entranhada de ser sempre do contra. Vou passar a odiar os holandeses tanto como tu. Vou odiar os holandeses, e os espanhóis, e os alemães e os russos e a puta que os pariu a todos eles que não são portugueses de corpo e alma como tu e como eu.
Vou passar a odiar todos os estrangeiros que não respeitarem a lusitana alma de brumas e memórias. E se o primeiro ministro de Portugal (Portugal com maiúsculas, vês como aprendo depressa!), digo, se o primeiro ministro de Portugal se mostra zangado com um camone, seja ele de que país for, eu fico logo ainda mais zangado que o primeiro ministro, serei daqueles que pela pátria ergue a voz. Porque apesar da pele morena e cheiro a caril, o homem continua a ser o Nosso Primeiro Ministro. O Primeiro Ministro de Portugal, desta Nação Valente e Imortal. Afinal e contas também nasci e vivo debaixo da bandeira verde e rubra, com o escudo amarelo no meio.
Mais, e digo para te tranquilizar, a partir de hoje, só digo mal das coisas em grande consenso todos dissermos mal.
Melhor ainda, só vou estar contra as coisas a que o meu patrão estiver contra.
Se um gajo quer estar bem, tem de começar ser como os que estão bem. Agir como eles agem até se transformar num deles.
Vou deixar-me de criticar à toa, se o meu patrão, chefe, gerente ou administrador disser que é azul, para mim passa a ser azul, quero la saber da cor que vejo. Afinal e contas são eles é que me pagam.
E um dia compro um carro como o dele, se o banco me emprestar o dinheiro.
Também decidi que vou passar a ser um gajo mais sereno nas escolhas.
Vou passar a odiar os ciganos. E os pretos, todos todos não, mas a maior parte dos pretos. Pelo menos todos aqueles que não se comportarem como brancos. E os brasileiros que invadiram isto tudo.
E vou ficar solidário com os gajos do sef, que enraivecidos do governo vir dizer que agora com esta merda do vírus os emigrantes estão todos legais, na semana passada mataram à porrada um ucraniano. Esses, os ucranianos, também estavam bem era na terra deles, la na Rússia, vejam la se na Rússia há algum problema, com o cabrão do Putin andam todos direitinhos que nem um fuso. Ouvi dizer que o Putim...., esqueçam ia outra vez falar de politica e a politica deixou de me interessar no momento em que decidi ser como tu....
Não vou defender a pide nem o caraças, mas o que é certo é que o Salazar fez coisas bem feitas! Aprendi contigo a frase e vou repeti-la até à exaustão. Vou dizer como tu dizes que esta malta aprende é à porrada. Vou pedir cargas policiais para quem sair de casa. E vou assinar a petição a defender o gnr que matou o miúdo.
Na volta, se calhar até deixo de votar. Tu sempre me disseste que eles são todos iguais. Por isso quando são as eleições não pôes lá o cu.
Vou começar a aprender de futebol. Aprender o que é um fora de jogo,o que é um livre, um pontapé de meio campo e essas coisas todas interessantes. Vou passara ser de uma equipa daquelas que ganha. Ou do Benfica ou do Sporting, porque vivo cá em baixo, se morasse la em cima era do Porto ou do Boavista.
Vou ficar a ver o telejornal e comover-me com os funerais a que os jornalistas não podem ir.
Como tu, vou ser contra as cunhas, contra todas as cunhas que não me favoreçam. E vou ser contra a corrupção e contra todos aqueles que não conseguir corromper com o meu baixo poder de compra.
Vou deixar-me de livros que têm escritas coisas que custam a entender e que é preciso ler várias vezes para perceber.
Vou ter pena dos velhinhos metidos em lares a morrerem de pneumonia contagiosa por essa província fora. Esses velhinhos tratados por trabalhadoras que ganham o salário mínimo e de fidelidade canina ao padre e ao presidente da junta que é quem manda lá no sitio e lhes arranjaram emprego. Esquece a parte do salário mínimo, tive um recaída!
Bem já chega de conversa.
Agora vou vestir-me de ladavainho e vou ao banco. Falar com o gerente, a ver se me arranja um ventilador que me aguente seis meses sem pagar a prestação da casa onde moro e que é do banco. Não levo gravata mas levo camisa, um homem tem de estar ao nível das coisas que faz.
Até vou convidar o gerente para beber um cafezinho. Mesmo que ele quisesse o café está fechado e por isso fico bem no retrato.
Já te disse, que vou ser diferente.
Vou ser como tu. Vou ser tu.
Só que não.
…
Não dá.
Mesmo que eu consiga engolir o teu almoço de macpizza sem vomitar. Mesmo que eu cerre os dentes e tranque a garganta para não te cuspir. Mesmo que eu te aguente no estômago, e te faça descer pelo digestivo canal de contemporânea submissão... Não consigo entranhar em mim essa tua essência de borrego manso que alimenta o fascismo dos dias. Lamento, mas vou ter de te parir. Vou parir-te naquelas dolorosas e involuntárias contracções do intestino, e sairás de mim num jorro sujo.
Logo agora que estamos numa fase de poupar o papel higiénico.
quinta-feira, 26 de março de 2020
Velhos sem medo da pandemia
Dizes que já nasceste sem medo.
Que a morte não te pega porque sabe que não tens medo.
Que não tens medo da morte que te levou pais e irmãos ainda não tinhas dez anos.
Lembras dos Invernos eternos dos anos quarenta descalço e com uma sardinha cozida a dividir por três. Dizes que não tiveste medo do frio nem da fome. Dizes que não tens medo das coisas certas. Que nunca tiveste medo nem da morte nem do trabalho.
Lembras-te dos bufos dentro da fábrica e dos encarregados lambe-botas e dizes que nunca tiveste medo de nenhum deles. Lembras-te da PIDE a farejar na esquina e da GNR a varrer a cavalo pela rua. Dizes que nunca tiveste medo nem de uma nem da outra.
Lembras-te de começar a guerra lá nas colónias e de te terem mandado combater, matar e morrer pelas riquezas dos outros. Dizes que foste, que viste a morte debaixo do teu pé direito e que a calcaste com a bota da tropa. Dizes que a morte desistiu de te matar e por isso voltaste inteiro sem medo.
Lembras-te da revolução e de quando diziam que estava um porta-avioes dos americanos no Bugio pronto a atracar na Fonte da Telha e arrasar a península de Setúbal e acabar com isto tudo. Não tiveste medo do porta aviões nem dos americanos nem dos boatos e aos sábados ias ajudar na reforma agrária sem medo.
Lembras-te do 25 de Novembro e quando outros fugiram como ratos foste dos que ficaste até ao fim, disciplinado e disposto ao que fosse preciso, porque não tiveste medo.
Quando nos anos oitenta te começaram a meter medo com a crise e a acenar com meia dúzia de contos para saíres da fábrica, tu não tiveste medo, mandaste os gajos porém o dinheiro na peida e ficaste até ao fim.
Quando o médico te descobriu a mancha nos pulmoes causada por décadas a respirar o bafo da indústria química misturada com o sg gigante diário ... Falou-te no cancro e quis-te meter medo. Tu mudaste de médico, enganaste o cancro e continuaste a fumar. Sem medo.
Hoje vi-te a tentar a sorte enquanto raspavas um cartão colorido a ver se te saía alguma coisa.
Falei-te no bicho e mandei-te ir para casa.
Tu disses-te que não lhe tinhas medo. E voltaste a falar-me na GNR, na PIDE, na guerra e no cancro que não te mataram. E disseste que não tens medo ao bicho. Que a ti não te pega. Que nem as doenças venéreas te quiseram nem a tuberculose que habitava na miséria que te matou a infância.
Fiz o que tinha a fazer.
Educadamente, com o respeito e carinho que me mereces, e de forma a tu compreenderes, disse-te:
-- Olha lá velho de um cabrão, meu teimoso da merda, gostaste dos resultados das últimas eleições? Gostaste? ... Então vai para casa para poderes votar nas próximas.
E tu, surpreendentemente, foste .
quinta-feira, 12 de março de 2020
As decisões de poupança e a revolta dos Sipais
“1 Pegar no mosquete com a mão esquerda com o cano virada para cima, 2 segurar o cartucho da pólvora com a mão direita, 3 com os dentes rasgar o cartucho,4 verter a pólvora dentro do cano, 5 introduzir e empurrar a bucha e a bala pelo cano com a vareta, 6 retirar a vareta, puxar o martelo de percussão para a posição intermédia e ajustar a alça, 7 colocar o fulminante na câmara,8 puxar o martelo de percussão para trás, 9 apontar e 10 disparar.”
Era estas as instruções que acompanhavam o mosquete Pattern de 1853, P-53, da empresa inglesa Enfield cujo principal accionista era a Companhia das Indias.
A empresa Enfield,desenvolveu e criou o mosquete Patern especialmente para defender os interesses da Companhia nas vastas possessões do Oriente.
O mosquete foi vendido às carradas. Era fabricado para equipar as tropas estacionadas na Índia que protegiam os interesses dessa poderosíssima companhia contra as recorrentes rebeliões e levantamentos locais.
Na Índia colonial e estamos a falar do Grande Industão, que inclui a Índia, o Paquistão, o Afeganistão, o Bangladesh e uma parte da Birmânia, actual Mianmar, as lideranças locais estavam submetidos à autoridade da Companhia das Índias mas recorrentemente revoltavam-se.
Os ingleses, governavam indirectamente através desta empresa sem terem de sujar as luvinhas brancas da farda colonial.
Havia um contingente de cerca de 30 mil soldados ingleses na Índia que comandavam uns 300 mil soldados indianos, conhecidos como sipais, que quer dizer soldado, todos ao serviço da Companhia.
Com a chegada do novo modelo do mosquete Pattern, esperava-se uma melhoria da capacidade operacional das tropas ao serviço da companhia. Esta arma fora feita especialmente para poder ser usada em duas linhas de fogo e esperava-se que fosse particularmente eficaz a reprimir ataques de cavalaria, que eram a dor de cabeça dos ingleses, sobretudo nos planaltos do Afeganistão, no norte da India e no Paquistão.
Acontece que a realidade ultrapassa sempre todos os planos, por mais elaborados que sejam.
As instruções do mosquete moderníssimo de carregar pela boca, não falam no tema, mas os cartuchos de pólvora eram em papel vinham impermeabilizados.
Em vez de ser atribuída uma bolsa com pólvora que os sapais podia ir roubando, levando para casa a pólvora da companhia e misturar areia na pólvora que ficava na bolsa, o moderno mosquete P53, estava preparado para usar cartuchos individuais de pólvora. A utilização do cartuxo, não só permitia calcular a quantidade exacta de pólvora para cada disparo, como permitia um controlo rigoroso dos gastos.
A única dificuldade era a impermeabilização dos cartuchos. Sobretudo na época da moção. Como em 1853 não se usavam plástico, os fabricantes recorriam ao papel e a um método de impermeabilização utilizando cera de abelha para garantir que a pólvora se mantinha seca. Era a solução tecnológica possível.
Mas a cera de abelha era um produto relativamente caro, então, um senhor da Companhia das Índias, um manga de alpaca com visão para o negócio, procurou uma solução mais barata.
Estudou o problema reuniu com uma serie de peritos e apresentou uma solução imediatamente aceite pelos administradores da companhia: resolveram impermeabilizar os cartuchos do novo mosquete com uma mistura de sebo de vaca e banha de porco.
Os accionistas da companhia das Índias acharam que aquele senhor que substituiu a cera por sebo e banha, estava a fazer um excelente trabalho e os estava a fazer um bocadinho mais ricos...
Claro que a Enfield, que a Companhia das Índias, e que a própria Rainha Vitória não faziam ideia do impacto do sebo e da banha. Não imaginaram que esta solução ia matar muitos mais do que as balas dos modernos mosquetes....
Os sipais, aquelas centenas de milhares que defendiam os interesses da Companhia das Índias contra os interesses da Índia, estavam dispostos a matar os outros os seus irmãos, primos e vizinhos por meia dúzia de xelins que os ingleses pagavam de soldo e por um prato de lentilhas de caril que lhes davam para comer... Mas quando perceberam que para fazer o seu trabalho de sipais era preciso por na boca banha de porco ou sebo de vaca, a coisa deu para o torto.
Matar outros indianos tudo bem, comer vaca ou porco é que não!
Nem os muçulmanos, nem os hindus estavam dispostos a combater com a boca conspurcada.
A revolta estourou violenta em várias frentes.
Foram precisos vir reforços de Inglaterra, da Escócia e da Irlanda.
Morreram mais de cinco mil britânicos, incluindo famílias inteiras.
Foram executados para cima de cinquenta mil indianos.
O domínio da Companhia das Índias acabou.
A Rainha Vitória tornou-se Imperatriz da Índia e o governo britânico passou a governar directamente.
Foi aprovada uma lei de tolerância religiosa que permitia aos hindus, muçulmanos e católicos liberdade de culto e garantia o respeito pela pratica cultural.
Foram admitidos, pela primeira vez, indianos nos serviços públicos na índia.
A um nível mais subjectivo, esta revolta dos sipais, deu origem ao sentimento nacionalista indiano que foi mais tarde escrito pelo Tagore e concretizado pelo Gandhi.
A ideia de poupança do manga-de-alpaca sobre a impermeabilização dos cartuchos de pólvora teve de facto um grande impacto. Nem ele, com toda a sua ambição de contador de moedas conseguiu algumas vez vislumbrar a dimensão das consequências daquela medida de poupança que propôs à administração da Companhia.
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Nos dias que correm, à nossa volta, podemos assistir a mesma lógica nalgumas decisões que poupam dinheiro nos orçamentos... sem ter a mínima noção dos impactos das suas poupanças.
Não precisam que vos mostre, pois não?
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