Que a morte não te pega porque sabe que não tens medo.
Que não tens medo da morte que te levou pais e irmãos ainda não tinhas dez anos.
Lembras dos Invernos eternos dos anos quarenta descalço e com uma sardinha cozida a dividir por três. Dizes que não tiveste medo do frio nem da fome. Dizes que não tens medo das coisas certas. Que nunca tiveste medo nem da morte nem do trabalho.
Lembras-te dos bufos dentro da fábrica e dos encarregados lambe-botas e dizes que nunca tiveste medo de nenhum deles. Lembras-te da PIDE a farejar na esquina e da GNR a varrer a cavalo pela rua. Dizes que nunca tiveste medo nem de uma nem da outra.
Lembras-te de começar a guerra lá nas colónias e de te terem mandado combater, matar e morrer pelas riquezas dos outros. Dizes que foste, que viste a morte debaixo do teu pé direito e que a calcaste com a bota da tropa. Dizes que a morte desistiu de te matar e por isso voltaste inteiro sem medo.
Lembras-te da revolução e de quando diziam que estava um porta-avioes dos americanos no Bugio pronto a atracar na Fonte da Telha e arrasar a península de Setúbal e acabar com isto tudo. Não tiveste medo do porta aviões nem dos americanos nem dos boatos e aos sábados ias ajudar na reforma agrária sem medo.
Lembras-te do 25 de Novembro e quando outros fugiram como ratos foste dos que ficaste até ao fim, disciplinado e disposto ao que fosse preciso, porque não tiveste medo.
Quando nos anos oitenta te começaram a meter medo com a crise e a acenar com meia dúzia de contos para saíres da fábrica, tu não tiveste medo, mandaste os gajos porém o dinheiro na peida e ficaste até ao fim.
Quando o médico te descobriu a mancha nos pulmoes causada por décadas a respirar o bafo da indústria química misturada com o sg gigante diário ... Falou-te no cancro e quis-te meter medo. Tu mudaste de médico, enganaste o cancro e continuaste a fumar. Sem medo.
Hoje vi-te a tentar a sorte enquanto raspavas um cartão colorido a ver se te saía alguma coisa.
Falei-te no bicho e mandei-te ir para casa.
Tu disses-te que não lhe tinhas medo. E voltaste a falar-me na GNR, na PIDE, na guerra e no cancro que não te mataram. E disseste que não tens medo ao bicho. Que a ti não te pega. Que nem as doenças venéreas te quiseram nem a tuberculose que habitava na miséria que te matou a infância.
Fiz o que tinha a fazer.
Educadamente, com o respeito e carinho que me mereces, e de forma a tu compreenderes, disse-te:
-- Olha lá velho de um cabrão, meu teimoso da merda, gostaste dos resultados das últimas eleições? Gostaste? ... Então vai para casa para poderes votar nas próximas.
E tu, surpreendentemente, foste .
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