segunda-feira, 13 de maio de 2019
Cães de espeto
Isto de virar frangos é coisa ibérica. Os europeus a sério, os do norte, há muito que inventaram os espetos rotativos. A peça de carne, ao rodar sobre as brasas ou metida num forno às voltinhas, deixa o assado muito mais homogéneo e permite guardar os sucos da carne. É por isso os ingleses criaram mecanismos complicados de rotação das peças de carne em espetos garantindo num assado lento e de rotação continua, uma degustação cinco estrelas. A chatice era estar ali a dar à manivela sempre a mesma velocidade durante horas seguidas, pois quanto mais lento é o assado, mais saborosa fica a carne...
Os ingleses do renascimento, os ingleses ricos, entenda-se, tinham em casa umas gaiolas pregadas à chaminé com umas rodas grandes, tipo daquelas dos hamsters, mas com um metro de diâmetro onde punham cães a correr para rodarem a carne... Desenvolveu-se mesmo uma raça de caes especialistas nesse trabalho, que são os antepassados dos teckel, vulgarmente conhecidos pelos salsichas, cães de caça alemães descendentes esses canitos de pernas curtas e corpo comprido, adaptados para a roda do espeto.
Mais tarde, já no século XVII, algumas casas inglesas, substituíram-se os cães pelos gansos. Menos inteligentes que os cães, não se escondiam ou fugiam, quando chegava à cozinha carne para assar. Os gansos eram mais lentos na roda, não davam tantos problemas como os cães.
Na colónia norte americana, a introdução dos gansos não foi tão bem recebida, e nos estados americanos, sobretudo da costa leste, qualquer burguês que se presasse tinha na cozinha uma gaiola com dois ou trâs cães de porte pequeno, especializados na roda do espeto. Os cães ficavam fechados na jaula e quando saiam, já se sabia que era para assar a carne. Quando os estados unidos, entraram na modernidade, deixaram de ser uma colónia, tornara-se independentes, assinaram uma constituição e exterminaram os índios, mas continuaram a ser os cães a assar-lhes as peças de lombo.
Entretanto apareceu o Henry Bergh, um cavalheiro que era empresário e embaixador, e que viveu cheio de boas intenções. Na sua carreira de diplomata, conheceu em Londres uma organização que tinha sido recentemente criada: Sociedade Real da Inglaterra para a Prevenção da Crueldade contra os Animais.
Quando voltou lá à terrinha dele, o Bergh propôs à Assembleia Legislativa do Estado de Nova York o reconhecimento da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais. Isto aconteceu em 1866 no ano a seguir ao final da guerra civil. Esta associação que ainda hoje existe, foi quem fez aprovar uma das primeiras leis contra a crueldade sobre animais no mundo. Foram este activistas ligados ao Henry Bergh quem exigiu pela primeira vez a criação de ambulâncias para cavalos feridos e quem mais violentamente se manifestaram contra a utilização de cães nas cozinhas e rodas de espeto. Fez-se mesmo uma campanha contra os cães de trabalho nas cozinhas dos restaurantes.
O Henry Bergh dominava bem as relações com a imprensa que fez com que pouco a pouco se deixassem de usar cães nas cozinhas para assar carne. Esta sociedade de protecção dos animais fazia visitas surpresas aos restaurantes e se verificasse que tinham cães nas cozinhas a fazer rodar os espetos, os jornais denunciavam a situação e o pessoal da defesa dos animais fazia campanha para que o publico boicotasse os restaurantes em causa.
Finalmente, por volta de 1870, foi aprovada uma lei e os restaurantes e deixaram de usar cães nas cozinhas.
Com o fim da guerra civil chegaram às grandes cidades do norte, dezenas de milhares de famílias que vinham dos campos do sul, agora arrasados. Pessoas que tinham sido escravizadas e chegavam sem nada de seu, em vagas, em busca de trabalho e um sitio para dormir. A lei contra os maus tratos dos animais pressionou os restaurantes, mas foi a economia com os seus argumentos de marreta esmagaram a questão: ficava mais barato ao dono do restaurante contratar crianças negras e pagar-lhes com os restos da comida que sobrava, do que ter gaiolas e cães a rodar o espeto!
Os cães a trabalhar nas cozinhas passaram definitivamente a ser coisa do passado.
A primeira lei contra o trabalho infantil nos estados unidos foi aprovada em 1938.
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