quinta-feira, 2 de maio de 2019

Tempero para a isca

Estava calor e humidade. O ar cheirava a gasóleo, a mar, a estufa, a lixo e a fruta podre. As baratas do tamanho de pardais, voavam à volta do candeeiro da rua que iluminava e o grelhador improvisado numa lata com a luz amarela. Na cozinha que dava directamente para a rua, a mulher do amigo preparava o funge e de tomate picado com cebola e gindungo. Nós vigiávamos a galinha no churrasco e emborcávamos minis tiradas de um bidon com agua e icebergues do tamanho de melões. Éramos os dois convidados da dona da casa, uma mulata gorda, cunhada do meu amigo e irmã mais velha da sua mulher. Desde quinze anos quinze anos que toma conta dos irmãos. Aos vinte já tinha o peso e a postura das matriarcas africanas. Fala calmo e severa e toda a gente à volta naturalmente lhe obedece. Preparava-se para sair. Tomou banho e o seu perfume chegou-nos antes de a ouvir falar claro: -- Vou no aeroporto buscar o Elias. Não deixem chegar o fogo na galinha nem fiquem bêbados logo antes de chegar o Elias. Especialista diplomado em churrascos, o meu amigo respondeu: --- Vai na boa que eu mantenho debaixo de olho os dois inimigos presentes: não deixo o fogo chegar à galinha nem o branco chegar às cervejas... Partiu com uma gargalhada inesperada na sua expressão sempre severa e nós abrimos mais duas minis. --- Mas quem é o Elias que ela vai buscar? Perguntei na minha ingenuidade --- É o namorado da minha cunhada. Namoraram na infância lá no mato, daqueles namoros de putos e não se viram durante uns 12 anos. Quando foi da guerra ela deixou de receber as cartas. Depois veio a Internet e reencontraram-se. No ano passado ela foi ter com ele a Luanda. E agora, não estão mais de seis meses sem se ver... Da cozinha veio a irmã da dona da casa dar pormenores românticos à historia. Fomos bebendo e falando. Parece que o rapaz foi raptado pela Unita que atacou a aldeia onde morava... teria uns treze anos e fizeram dele soldado à força. Passou um bocado...viu matar familiares e amigos... Ficou com eles sete anos até conseguir fugir e juntar-se às Fapla. --- Então e como é que os gajos do MPLA souberam que o tipo está a dizer a verdade e não era um provocador, um infiltrado??? Um gajo que trai uma vez... Perguntei eu, que gosto de livros de espiões, enquanto fazia xixi atrás de um carro para não usar a casa de banho da casa que alem de ser longe estava imaculada. ---Não sei... mas o gajo deve estar ai a chegar e depois perguntas... Metemos o terceiro cadáver de galinha na grelha sobre as brasas e bebemos para evitar a desidratação. Não esperamos muito mais. Estavam a chegar. Ao contrario do rambo que eu esperava ver chegar, o Elias não tinha físico para apanhar duas estaladas. Negro retinto e muito magrinho, enfezado, com o peito para dentro e uns cinquenta e cinco quilos no máximo. Saiu do carro e caminhou na nossa direcção um pouco dobrado para a frente. Trazia com um bigodinho ralo e um olhar triste, uns ténis nike brancos e calças de ganga. Vinha a dançar dentro de uma camisola do Futebol Clube do Porto tamanho M que lhe ficava três números acima. A dona da casa comandou as operações: -- Fica aí com esses dois a beber uma cerveja. O preto é caboverdiano, meu cunhado e vive com a minha irmã mais nova, o outro, o pula é amigo da família e está de passagem. São fixes mas muito abusados... Vê se não começas já a ganhar os maus hábitos. Rimo-nos os três uns para os outros. Abrimos mais cervejas passamos-lhe uma gelada. -- Xii dói o dente do frio da cerveja... não tem ai menos fria?? Desabituei de beber cerveja gelada... Quando tava no mato não tinha agua quase nunca e não tinha cerveja quase sempre... Fui à cozinha e tirei uma mini da ultima grade que metemos no frigorífico. Estava praticamente morna. Voltei à rua com a garrafa na mão. Abri e dei-lha. Como sou um descarado, perguntei-lhe. -- Olha lá Elias, ouvi dizer que estiveste na mata com a unita e depois voltaste para as Fapla. Como é que convenceste os tipos do MPLA que não eras um provocador nem um espião infiltrado? Olhou para mim e sorriu o sorriso tímido que mostrava os dentes brancos regulares: -- Pois não foi fácil. Mas eu fiquei firme. Sete anos até ter a confiança dos chefes, só faltava conhecer o Savimbi. E quando eles já confiavam tudo em mim, eu trouxe uma patrulha de doze para perto de um quartel dos nossos capturei eles. – Capturaste doze homens armados sozinho? – Sozinho não! Foi com a ajuda do feiticeiro que eles tinha que também não queria ficar e eu disse nele que nas Fapl pagavam mais no feiticeiro ! Então o kimbanda fez um chá com raízes para por na comida, que pôs todos eles para dormir. Depois nós dois, foi só amarrar eles. O bruxo ficou a tomar conta dos inimigo e eu fui chamar as Fapla. Quanda as Fapla chegou mandou eu mais o bruxo matar todos para mostrar que não éramos traidor. E nós mandamos eles cavar um buraco assim de grande (os braços abertos envolvendo a enormidade do buraco) sentamos eles lá dentro a dizer que tinha de ficar a espera do transporte que os levava para a prisão em Luanda para serem trocados por outros prisioneiros.. com duas granadas matamos e enterramos todos no mesmo tempo!!! Ficamos em silencio com o pragmatismo e a simplicidade da resposta. Só se ouvia a gordura da galinha a chiar nas brasas. Para desanuviar o meu amigo perguntou: -- E esse feiticeiro que estava contigo? Agora também está em Luanda? -- Não. Eu chamei ele para falar comigo no mato, ele veio e eu só matei ele. Eu matei ele logo mesmo. Era um feiticeiro ruim. Vi fazer muita coisa má, tinha de matar mesmo! Era um Quimbanda do Zaire. Dei tiro nele. E com a faca do bruxo cortei o pescoço dele para separar cabeça do corpo, abri todo ele para tirar o fígado e comer, tinha que comer-lhe o fígado para tirar-lhe a força!E te digo maninho, este era um bruxo mau mesmo! Tinha no fígado muito amargo, muito amargo, muito amargo. Teve que levar bué da sal e bué de gindungo... Vocês não sabe, mas eu explica. Eu sabe dessas coisas que eu sou do mato. Quando é uma pessoa é boa o fígado não sabe amargo, sabe bem, como fígado de gazela que não tem maldade.. Quando é uma pessoa má o fígado é muito amargo amargo mesmo. Porque a maldade e a força da pessoa estão no figado. Eu tinha que comer o fígado dele se não o espírito dele ia me empatar a vida e vinha na minha traz para me fazer mal! Voltamos a ficar em silencio, não consegui dizer nada. A dona da casa, chegou sem avisar, descompôs-nos aos três por estar a deixar queimar a galinha e levou-nos em coluna para mesa. Na sua autoridade de metro e meio, avisou logo que não queria conversas nem de guerra, nem de politica ao jantar. O Elias, obediente, ainda antes de se sentar perguntou entusiasmado: --- e o Engenheiro Pinta da Costa continua sendo o presidente do Porto, verdade? Sem pausas e com o mesmo sorriso tímido prossegue com um verso: Carne de galinha é boa, carne de vaca também, mas a melhor das carnes é a carne que agente chama e ela vem!!!! Rimos todos. E a sua gargalhada escancarada e sincera afastou definitivamente todos os espíritos malignos e todas as memorias de guerras passadas e futuras. As mulheres riram da piada que interpretaram como brejeirice de quem tem fome de amor de namorada. O jantar continuou animado e não voltamos a falar de guerra nem de politica. No dia seguinte, segui viagem e não voltei a ver o Elias. Mantive-me vegetariano durante quase uma semana.

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