quinta-feira, 2 de maio de 2019
Juliette do olhar fodido
Não esquecemos nada. Habituamo-nos. É tudo.
A Juliette Gréco é uma preciosidade da colheita de 27. O pai era corso e mãe francesa. Uma casta destas teve de ser criada em Bordeus, onde passou os seus primeiros anos de vida, com o resto da família alargada.
De natureza tímida e reservada manteve sempre aquele olhar de quem não pode, nem quer, dizer tudo o que sente e sabe. Um olhar fodido que lhe saiu caro. Até aos treze anos as coisas corriam-lhe bem, era feliz e nem sabia. Depois em trinta e nove chegaram os lobos nazis. A mão de Juliete, mulher de cepa retorcida, liderava a célula comunista da Resistência lá da zona. E já sabemos que esse anos do governo de Vichy e saudações de mãozinhas esticadas, não foram anos bons para os resistentes franceses. E anos particularmente maus para os comunistas.
Em 1943 a mãe da Juliete é presa pela Gestapo juntamente com as filhas. Vem embaladas num carro celular para conhecerem Paris. Lamentavelmente para elas, os policias nazis, levam-nas directamente para sede da Gestapo e nem cheiram o ar das ruas. São as três submetidas a tortura. Em conjunto e separadas. Repetidamente.
Juliette, tem 16 anos e a irmã tem 18. A mais nova das três mulheres, a que viria a ser cantora, fica mais de mês nas caves dos nazis. É usada sobretudo para pressionar a mãe. Quando os policias arianos acharam que não tem mais nada a arrancar às três mulheres, decidem esquecer-se delas nas celas e não lhes dão comida nem agua. Por capricho, por acaso, por sorte ou por fastio dos carcereiros, é libertada. Acontece numa noite igual às outras, quando lhe dizem mais uma vez que a vão fuzilar.
A mãe e a irmã permanecem na prisão da Gestapo.
Sai assustada e sozinha paras ruas desoladas de uma Paris ocupada, cinzenta, suja e fria.
É uma professora reformada compulsivamente pelas suas simpatias de esquerda, que a recolhe e lhe dá um tecto no bairro de Saint-Germain-des-Prés.
Tem um palmo de cara, canta bem, leu todos os poetas e não tem jeito para trabalhar: torna-se artista.
Guerra acabada e derrotado o nazismo, sem ainda ter feito os vinte anos, estreia-se como actriz numa peça de Roger Vitrac. Conhece o Sartre, que a apresenta ao Camus, e ao Boris Vian. Está lançada.
Apesar do sucesso, mantém a natureza tímida e aquele olhar fodido de quem não fala. É cortejada à vez e gosta de ser assim mimada e bem tratada. A intelectualidade da rive gauche canonizou-a no altar dos cafés. A sua postura de diva discreta e o olhar fodido, fez dela a musa eterna dos existencialistas.
Diz a Juliette que não esquecemos nada. Que nos habituamos. E é tudo.
Eu acredito.
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