sábado, 11 de abril de 2020

Noites covid

E que é vocês me dizem sobre este silencio que fica na noite? O silencio do vazio. Sem os carros a passar na rua. Sem as vozes. Sem os autocarros a travar ao longe na paragem do autocarro. O silencio dos bichos assustados metidos nas tocas. Bichos com medo. ... 
Aconteceu-me uma vez entrar na selva à noite. Fui depois de um dia de chuva. Na zona da fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Estava alojado numa espécie de quinta. Um terreno agrícola roubado à mata virgem. Depois da cerca, o imenso verde. O universo colossal e frondoso das árvores gigantes da altura de prédios de muitos andares.
Durante a manha tinha percorrido meia-dúzia de metros de um trilho que dava entrada na selva. Nessa dia parou de chover ao por do sol. Aquele por do Sol rápido e quase instantâneo dos trópicos. Lembro-me que jantei, depois bebi um trago de aguardente misturada no chá. A minha companheira foi-se deitar e eu fiquei sem sono. 
Ali a ouvir as rãs, os insectos, os píos e os gritos das criaturas da noite. Fez-se tarde e eu sem vontade de dormir. Terá sido por curiosidade ou outro qualquer perverso instinto de procura, ou vertigem; nem sei eu sei porquê, mas fui. Meti-me pelo trilho que percorri durante o dia. 
O caminho até à selva pareceu-me muito mais comprido. Estava uma noite clara de quarto minguante como a de hoje e eu levava uma lanterna apagada, daquelas que se põem na cabeça. Tinha as mãos nos bolsos e botas calçadas. Os pássaros da noite a piarem e os insectos a zumbir. Quando passei a vedação da quinta e entrei na mata. E deixei de ver. O preto escuro profundo. Escuridão total. Acendi a lanterna e imediatamente todos os bichos se calaram. Continuei a andar. Mas já não ia sozinho. 
Caminhava com o medo. Um medo infundado e idiota do que podia estar. O medo intenso do silencio escuro que me envolveu para lá do circulo da luz branca do led. 
O medo entrou-me entre a camisola fina de algodão e o corta-vento impermeável e colou-se-me às costas e ao peito. Continuei mais uns cinco minutos pelo momentâneo túnel de luz que lanterna na cabeça fazia à minha frente. Depois parei. 
Sentei-me num tronco apodrecido, acendi um cigarro e apaguei a lanterna. Com a nicotina a circular tentei desmontar o medo. Medo de que? Do escuro? Do silencio? Do desconhecido? 
À minha volta os bichos da selva calada, recusaram responder. Apaguei o cigarro na sola da bota, guardei a beata na algibeira, contei ate cem para provar nem eu sei o quê a mim mesmo. Depois acendi a lanterna e voltei. 
Ao aproximar-me da casa, as rãs e os insectos retomaram o canto e o medo dissipou-se. 
Senti-me estúpido e fiquei sentado ao relento a pensar. Percebi que era o silencio que me assustava. O silencio é o pai do medo. 
Mais, muito mais que o escuro. Inventou-se a musica para combater o medo. 
Aprendi isso nessa noite. 
Passaram uns anos valentes. Mas nestes dias atípicos que todos vivemos, às vezes, à noite, oiço o medo. Quando toda a cidade se recolhe nas casas fechadas. 
Quando a noite fica vazia de sons. Só o zumbido do frigorífico a acompanhar a madrugada. 
Vejo os meus amigos a publicarem piadas nas redes sociais. E trocamos anedotas. E aparecem passatempos. E trocamos receitas. E partilhamos erotismo e pornografia. E tocamos canções uns para os outros. E dizemos parvoíces. 
E fazemos bem. 
É tudo o barulho para espantar o medo. São mamas, cús, pilas e receitas de bolos e assados. Tudo para enxotar o medo. Para afugentar este cabrão deste medo que chega no silencio da noite e fica até começarem a circular os primeiros carros que nos trazem o sono.

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