domingo, 5 de abril de 2020

Pobres dos três -- de uma noticia num jornal

A mãe do miúdo foi atropelada por um condutor com álcool a mais. Morreu na 125. 
Foi há quatro anos. Tinha ele dezasseis anos, gostava de computadores de futebol e sonhava tirar a carta. Ficou sozinho com o pai naquele Algarve bipolar que balança entre a euforia do Verão e a depressão sinistra do Inverno.
O miúdo recompôs-se aos poucos. Família amigos e vizinhos solidários na dor. O pai meteu um processo em tribunal contra o bêbado que lhe matou a mulher e lhe deixou o filho órfão. Eu para mim não quero nada, é para o meu rapaz. O rapaz continuou a gostar de computadores.
Tirou a carta e empregou-se nos hambúrgueres para comprar o carro. Comprou um carro e chegou a chefe de turno. 
No tribunal o processo do atropelamento da mãe arrastava-se. 
Foi lá no trabalho dos hambúrgueres que o rapaz conheceu a conheceu. Ela era segurança e também gostava de carros. Sabia jujitso e também sabia de maquinas e sistemas operativos. O pai dela é da guarda e ela tinha sempre um ar durão que dava pica ao rapaz. Saiam muitas vezes tarde no final do turno. 
Envolvem-se e enrolam-se na cama do banco de trás do carro. Ele fala-lhe no processo e na indemnização que está à espera. Ela fala-lhe dos conflitos que tinha com o pai e de que estava a pensar ir viver com uma amiga. 
A amiga dela é enfermeira em Lagos. Vive sozinha e o ar duro e a farda da segurança também lhe dão tesão e desejo. As duas passaram a viver juntas. 
O rapaz mudou de trabalho para uma empresa de informática. Encontrava-se com ela só às vezes. Ela contou-lhe a ele sobre a amiga com quem vivia. 
E que ninguém podia saber que se encontravam. 
Ele concordou. 
Disse-lhe não queria assumir nenhuma relação. Que estava bem assim e que estava só à espera de receber o dinheiro do tribunal. Disse-lhe que estava quase.  
Em casa delas a tempestade das discussões começou por causa das mensagens. A da segurança disse que não era nada, que eram só amigos. A enfermeira confrontou-a com as mensagens apaixonadas e tórridas e fotografias sem roupa. Chamou-lhe puta, vaca, que não podia ver um gajo e que não prestava. Que vivia com ela, mas estava apaixonada pelo rapaz dos computadores. 
A companheira negou. Que não. Que era um negocio. Que estava a lutar por ambas. Que estava a arranjar maneira de irem de férias. Que era só para lhe sacar o dinheiro. 
Contou-lhe da indemnização do rapaz. Chorou e gritou amor por ela e nojo e asco ao rapaz. 
Lavou-lhe as mãos com lágrimas e secou-lhes as mãos, olhos e boca com beijos. Jurou-lhe amor eterno e fidelidade como só as mulheres em amores proibidos sabem jurar. Fizeram as pazes. 
Em Fevereiro no dia dos namorados jantaram as duas um jantar romântico. 
Na semana seguinte, a segurança voltou a encontrar-se com o rapaz. Desta vez a enfermeira já sabia. Desenharam um plano. Iam atraí-lo a casa delas e depois sacavam-lhe os códigos e transferiam o dinheiro. 
O tribunal e o banco a atrasarem o plano e o guito. 
A segurança sugeriu e prometeu ao rapaz um encontro a três. 
Se por uma mulher, muitos homens perdem a cabeça, por duas um rapaz perde a cabeça, os braços, as pernas, o corpo e até o dedo que dá para desbloquear o telemóvel. 
Março chegou e finalmente o banco fez a transferência. 
Na pressão dos turnos da enfermeira, dos horários da segurança e nos desafios do tele-trabalho urgente para o jovem técnico de informática, não foi fácil marcarem um encontro. 
Aconteceu finalmente. A noite fatal. Estavam os três nervosos. Na casa delas, a da segurança fez a manobra de estrangulamento que tantas vezes tinha ensaiado. Ele desmaiou. 
Ataram-no a uma cadeira e a enfermeira reanimou-o. Até aqui tudo como planeado por ambas. 
Ele percebeu que aquilo que o esperava não era aquilo que tinha imaginado. 
Elas pediram-lhe os códigos. Ele disse que não dava. 
A da segurança voltou a fazer o estrangulamento. 
Agora durante mais um bocado, para ele ver que elas não estavam a brincar. 
Estavam a sério e o rapaz morreu. 
Confrontada com o óbito, a enfermeira cortou o dedo da mão direita do rapaz morto para com as impressões do indicador desbloquear o telemóvel. 
Desbloquearam e tentaram transferência. 
O rapaz morto na sala não ajudava a acalmar as coisas.
E agora? 
Agora não podem encontrar o corpo. 
De qualquer maneira é demasiado pesado para o transportarem inteiro para dentro do carro.
Cortaram aos bocados e puseram em sacos do lixo. Depois foram semear o rapaz. De Lagos a Vila Real de Santo António. Pés, pernas, braços mãos, torço e cabeça.
No outro dia voltaram as duas aos seus trabalhos. Era preciso não dar nas vistas. 
Nessa noite bateram-se palmas aos profissionais de saúde. A da segurança aplaudiu a companheira enfermeira. A enfermeira chorou descontroladamente, da emoção do momento, comentou quem assistiu. 
Na manhã seguinte, um casal de turistas transviados no Pego do Inferno, encontrou a cabeça que cães vadios tiraram de dentro do saco. O rapaz ainda a olhar espantado para o que lhe tinha acontecido. 
O corpo sem pernas apareceu nas rochas de Lagos. 
Três dias depois foram as duas apanhas pela judiciária. Coisas de amadoras disseram os entendidos. 
O povo em choque, no primeiro dia dizia que era coisa de brasileiros ou romenos. Ou chineses. Sem duvidas de estrangeiros diziam. Estavam enganados. 
Agora com o casal detido, calaram-se as vozes contra os estrangeiros e o espanto tomou conta do barrocal. Pobres dos três.

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