Na zona da Olinda, até meados do século XIX, as matas vinham virgens até ao mar.
Pois foi há coisa de uns duzentos escassos anos, nas matas de Olinda que o João Baptista fez a casa.
Não se confundam. Nem era uma casa nem o nome dele era João Baptista.
João Baptista foi o nome que um negociante de escravos deu ao rapaz, quando o vendeu, ainda antes de ser homem. João Baptista, foi que ficou nos registos e nas cartas do governador de Pernambuco a pedir tropas e armas para capturar e matar o homem que se fez livre e que despiu os grilhões que lhe prenderam nos pés.
O João, chamemos-lhe assim por enquanto, liderou e organizou aqueles que fugiam aos engenhos de açúcar. Esses que com o seu trabalho escravo financiavam a burguesia do recém-independente Brasil. Este João, depois de se ter descravizado, refugiu-se nas matas à volta de Olinda e organizou um Quilombo.
Um espaço geográfico, cultural e politico de resistência. Com leis próprias, economia baseada na agricultura de subsistência, na caça e na pesca. Um lugar organizado politica e militarmente à volta dos objectivos da liberdade e sobrevivência enquanto pessoas livres.
A maioria destas pessoas eram provavelmente oriundos do Uige no Norte de Angola, do Zaire e de Cabinda, populações essencialmente bantos. Falavam kikongo. Chamavam-se a si mesmo m'lungos, que quer dizer em kikongo, "do barco". Gente que veio no barco. Populações africanas escravizadas e importadas através do Atlântico, no tráfego negreiro de África para o Brasil.
João Baptista e os outros malungos no Quilombo do Catucá, não só resistiram, como alargaram os limites do seu território. Coisa que assustou muito os produtores de açúcar e outros fazendeiros e negociantes em Pernambuco.
A história ensinou-nos a todos que não há coisa mais perigosa que um burguês borrado de medo...
Os senhores do Recife, decidiram abrir os cordões da sua pesada e açucarada bolsa e pagar uma solução. Esforçados, os políticos que tinham como função defender os interesses dos ricos, pariram então aquilo que viria a ser a Policia Militar. No Brasil, a PM, ao contrário das outras policias militares, não tem como função policiar os militares, mas serve sim para policiar militarmente os civis... É assim desde que foi criada!
Voltando à Olinda de duzentos anos atrás, os policias militares que eram muito eficazes a aterrorizar os pobres escravizados da cidade do Recife, perdiam a arrogância e a competência quando tinham de entrar na mata para lutar contra os Malungos.
Por mais incursões armadas ao serviço dos barões do açúcar que fizessem, não conseguiam capturar o tal líder a que o negociante de escravos tinha chamado João Baptista.
A guerra durou cerca de 21 anos. Inevitavelmente acabou como tinha que acabar. Em 1835, numa emboscada baseada numa informação paga a peso de ouro, foi assassinado o João.
Os senhores dos engenhos puderam finalmente dormir em paz e capitalizar os seus lucros abrindo mais engenhos e vendendo mais açúcar.
Os historiadores escreveram sobre o progresso do independente Brasil Imperial e sobre a jovem República dos Estados Unidos do Brasil. Ordem e Progresso, escreveram eles.
Sobre o João, nem uma linha.
Acontece que o povo, mesmo que não saiba escrever, faz o seu próprio registo histórico. E no nordeste do Brasil, o líder da revolta dos malungos passou a ser cultuado como uma Entidade Mágica, um Mestre Sagrado. Quase um santo, um semi-deus. Ainda hoje, nordeste do Brasil, quando o povo quer celebrar a resistência, a capacidade de lutar e a vitória contra injustiça, canta, dança, reza numa mesma cerimónia. Pedem ajuda ao Exu Malunguinho, ao Caboclo Malunguinho e ao Mestre Malunguinho.
Eita que coisa mais linda os pobres se enriquecendo com a sua história!
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