segunda-feira, 13 de abril de 2020

Malunguinho

Quem se faz ao mar oceano e vai por aí a baixo, passando a Madeira tem as ilhas do Cabo Verde. Seguindo em frente, mais um bocado, virando à esquerda está Luanda - a Bela. Se virarem à direita, e seguindo sempre a direito, está o Recife, capital do Pernambuco. Mesmo ao lado do recife, está a cidade de Olinda. O nome já diz o que é. 
Na zona da Olinda, até meados do século XIX, as matas vinham virgens até ao mar. Pois foi há coisa de uns duzentos escassos anos, nas matas de Olinda que o João Baptista fez a casa. 
Não se confundam. Nem era uma casa nem o nome dele era João Baptista. 
João Baptista foi o nome que um negociante de escravos deu ao rapaz, quando o vendeu, ainda antes de ser homem. João Baptista, foi que ficou nos registos e nas cartas do governador de Pernambuco a pedir tropas e armas para capturar e matar o homem que se fez livre e que despiu os grilhões que lhe prenderam nos pés. 
O João, chamemos-lhe assim por enquanto, liderou e organizou aqueles que fugiam aos engenhos de açúcar. Esses que com o seu trabalho escravo financiavam a burguesia do recém-independente Brasil. Este João, depois de se ter descravizado, refugiu-se nas matas à volta de Olinda e organizou um Quilombo. 
Um espaço geográfico, cultural e politico de resistência. Com leis próprias, economia baseada na agricultura de subsistência, na caça e na pesca. Um lugar organizado politica e militarmente à volta dos objectivos da liberdade e sobrevivência enquanto pessoas livres. 
A maioria destas pessoas eram provavelmente oriundos do Uige no Norte de Angola, do Zaire e de Cabinda, populações essencialmente bantos. Falavam kikongo. Chamavam-se a si mesmo m'lungos, que quer dizer em kikongo, "do barco". Gente que veio no barco. Populações africanas escravizadas e importadas através do Atlântico, no tráfego negreiro de África para o Brasil. 
João Baptista e os outros malungos no Quilombo do Catucá, não só resistiram, como alargaram os limites do seu território. Coisa que assustou muito os produtores de açúcar e outros fazendeiros e negociantes em Pernambuco. 
A história ensinou-nos a todos que não há coisa mais perigosa que um burguês borrado de medo... 
Os senhores do Recife, decidiram abrir os cordões da sua pesada e açucarada bolsa e pagar uma solução. Esforçados, os políticos que tinham como função defender os interesses dos ricos, pariram então aquilo que viria a ser a Policia Militar. No Brasil, a PM, ao contrário das outras policias militares, não tem como função policiar os militares, mas serve sim para policiar militarmente os civis... É assim desde que foi criada! 
Voltando à Olinda de duzentos anos atrás, os policias militares que eram muito eficazes a aterrorizar os pobres escravizados da cidade do Recife, perdiam a arrogância e a competência quando tinham de entrar na mata para lutar contra os Malungos. 
Por mais incursões armadas ao serviço dos barões do açúcar que fizessem, não conseguiam capturar o tal líder a que o negociante de escravos tinha chamado João Baptista. A guerra durou cerca de 21 anos. Inevitavelmente acabou como tinha que acabar. Em 1835, numa emboscada baseada numa informação paga a peso de ouro, foi assassinado o João. 
Os senhores dos engenhos puderam finalmente dormir em paz e capitalizar os seus lucros abrindo mais engenhos e vendendo mais açúcar. 
Os historiadores escreveram sobre o progresso do independente Brasil Imperial e sobre a jovem República dos Estados Unidos do Brasil. Ordem e Progresso, escreveram eles. 
Sobre o João, nem uma linha. 
Acontece que o povo, mesmo que não saiba escrever, faz o seu próprio registo histórico. E no nordeste do Brasil, o líder da revolta dos malungos passou a ser cultuado como uma Entidade Mágica, um Mestre Sagrado. Quase um santo, um semi-deus. Ainda hoje, nordeste do Brasil, quando o povo quer celebrar a resistência, a capacidade de lutar e a vitória contra injustiça, canta, dança, reza numa mesma cerimónia. Pedem ajuda ao Exu Malunguinho, ao Caboclo Malunguinho e ao Mestre Malunguinho. 
Eita que coisa mais linda os pobres se enriquecendo com a sua história!

Sem comentários:

Enviar um comentário