sábado, 23 de maio de 2020

Quando o medo matou

O António Gervásio tinha vinte e sete anos quando aquilo aconteceu. Estava há mais de um ano e meio clandestino. Foi no verão de 52 que foi preciso mergulhar. Deixou para trás a família, os amores de juventude e o próprio nome.
Trabalhava desde miúdo. Eram uma família numerosa nos arredores de Montemor-o-Novo e era precisa dar de comer a todas as bocas. Tinha sido preso em 47 por ser comunista. Comunista foi até ao seu ultimo dia. Ficou com a tarefa de organizar as lutas dos trabalhadores rurais no Alentejo. Conhecia bem a região, era disciplinado nos procedimentos da clandestinidade e não se queria deixar apanhar.

Na primavera de 1954 estava pelo Baixo Alentejo. Ficava numa casa nos arredores de Beja, perto da estação dos comboios e junto a uma estrada secundária onde era fácil o acesso na sua bicicleta.

Preparava-se uma jornada de luta por mais salário contra a fome e a precariedade.

O funcionário comunista, profissional da revolução, foi fazendo o seu trabalho. O Primeiro de Maio foi de luta em Beja. Nos dias a seguir, a chama da mobilização alastrou pelos arredores.

O trigo estava a crescer bem, mas as ervas daninhas regadas com as chuvas e crescidas com o sol daquele Abril, ameaçavam as espigas. Eram precisas muitas mãos para mondar. Mãos de mulheres. Eram a mão de obra mais barata e no conceito obtuso dos donos da terra, era um trabalho “leve”. Porque não implicava força física, era entregue às mulheres que trabalhavam ao dia, dizia-se à jorna... Como se andar sete, oito, ou nove horas dobrada entre as espigas do trigo a arrancar ervas à mão, fosse um tralho leve... O que é certo é que as mulheres ganhavam quinze tostões por dia, os homens ganhavam vinte e cinco. As mulheres estavam a lutar por um aumento. Queriam dois escudos por dia.

De Baleizão, chamaram-no para reunir com as mulheres. Ouvir as razões das mulheres, partilhar a sua experiência, aprender com elas e ajudar na organização. Foi para Baleizao varias vezes naqueles Maio.

A mobilização foi fácil, a organização foi mais difícil. Eram indisciplinadas. Falam todas ao mesmo tempo e sobre vários assuntos. Ao inicio havia algumas receosas, depois, umas com as outras perderam o medo e ganharam força, disciplina e coragem. Queriam dois escudos por dia. Passaram muitas horas a falar até que combinaram que não trabalhavam por menos de dezanove tostões. O funcionário clandestino, explicou que era essencial chegaram a um acordo entre elas e soldarem a aço esse acordo, depois era uma questão de negociação com o patronato.

No dia quinze de Maio, foram falar com o feitor que contratava. Iam umas seis. A Catarina, da família dos Eufémia, foi nesse grupo. A Catarina levava o miúdo de oito meses ao colo e os outros dois rapazitos atrás.

O feitor do lavrador disse logo que não ao aumento e manteve os quinze tostões por dia. Depois fez três telefonemas do telefone da herdade: telefonou aos patrões donos da terra, telefonou para a guarda em Beja e e depois telefonou para a pide a contar-lhe tudo.

As mulheres voltaram tristes mas não vieram derrotadas. Falaram entre si e decidiram continuar a luta. Falaram em greve. Reuniram com o clandestino que chegou à noite de bicicleta. Encontraram-se num ermo no meio dos montes, longe da GNR e da pide. O revolucionário explicou que era preciso terem a certeza que queriam avançar, que uma greve não se faz com indecisos. Aqui não há indecisos porra! Assim disseram elas.

O funcionário clandestino pedalou entre o contente e o apreensivo. Sabia que as mulheres quando se juntam numa vontade, fazem acontecer. Em Baleizão diz-se que a mulher quando quer faz o ninho na cabeça de um alfinete. Não era para tanto... mas sabia ia ser difícil.

Na tarde de dezassete de maio, na aldeia de Baleizão correu o boato que o Lavrador do Monte das Oliveiras ia contratar um mulheres que vinham do Ribatejo ou da Beira Baixa para mondar por quinze tostões. Vem um rancho delas para nos furar a greve, disseram na venda.

No dia dezoito não aconteceu nada. O funcionário explicou que nesta fase o importante não era hostilizar as trabalhadoras que vinham para trabalhar, mas sim falar com elas e ganha-las para a luta dos dois escudos por dia.

Na manha de dia dezanove de Maio, chegaram as fura-greves de camioneta. As mulheres decidiram ir falar com as novas. Queriam convence-las a aderir à greve. O feitor tinha pedido protecção da guarda para as fura-greves. As grevistas foram em grupo, uma dúzia delas. Vieram a pé de Baleizão, ai a uns dois quilómetros até ao monte. A Catarina, vinha à frente com o bebé de oito meses ao colo.

A cortar-lhes o caminho, a guarda.

O tenente falou para as ceifeiras:

– O que é que vocês querem daqui?

Foi a Catarina que lhe respondeu:

– Queremos pão para os nossos filhos.

– Não quero aqui politica, tá a dispersar!

As mulheres não dispersaram. Mantiveram-se unidas. Queremos pão gritaram.

O tenente, assustou-se com a força e a coragem daquelas mulheres.

Pálido, ameaçou:

– Vão-se embora ou eu mando disparar!

As mulheres mantiveram-se firmes e gritaram palavras de luta.
O militar da guarda que comandava, teve ainda mais medo.
Tinha medo dos lavradores que o ameaçavam com um desterro longínquo se não resolvesse imediatamente a situação. Tinha medo da pide que lhe dizia que ele tinha de mostrar força com os comunistas. Tinha medo que os seus homens o achassem um merdas porque não conseguia por na ordem meia dúzia de mulheres. Tinha medo dos comunistas que lá da Rússia mandavam agentes disfarçados de ceifeiras. Tinha medo das ceifeiras que não tinham medo dele. Tinha muito medo das mulheres sem medo. E naquele momento o seu maior medo era o medo de não ser capaz de dominar o seu medo.
Na mão a pistola-metralhadora a dar-lhe o estatuto de oficial da Guarda. Na boca a secura e no ânus o aperto do medo. O medo a invadir-lhe a digestão. O medo a revolver-lhe o estômago e as tripas.

Atrás o feitor. `À frente as ceifeiras. À volta os seus homens armados e a seara. A convulsão do medo exigia uma saída. Ou vomitava na biqueira das botas dos seus subordinados, ou defecava na farda de tenente.

Os dedos apertaram o gatilho. A arma disparou-se. O medo fê-lo esquecer-se de tudo menos de como se mata.

Disparou à queima roupa.

Caiu a moça da frente que lhe tinha virado as costas para dizer algo às companheiras. A que tinha uma criança ao colo. Magra mas bonita. Vinte e poucos anos. Caiu ela e o miúdo. Magoou-se a criança. Assassinou-se a mãe.

O choro e os gritos acalmaram o medo ao tenente da guarda. O cheiro a pólvora e a sangue devolveram-lhe a compostura marcial de pilar do regime.

Veio uma ambulância buscar o corpo  e o bebé ferido.

As outras ceifeiras gritavam.

Vieram mais guardas.

Nesse dia não se trabalhou.

O relatório da autopsia descreve o cadáver da mulher de vinte e seis anos, de estatura mediana (1,65 m), de cor branco-marmóreo, de cabelos pretos, olhos castanhos, de sistema muscular pouco desenvolvido. Mais à frente, na frieza dos dados clínicos, o mesmo relatório tem impresso que a vitima foi atingida por "três balas, à queima-roupa, pelas costas, actuando da esquerda para a direita, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente, com o cano da arma encostada ao corpo da vítima deixou um rasto de queimadura. O agressor deveria estar atrás e à esquerda em relação à vítima".

O funcionário clandestino, chorou de raiva enquanto pedalava. Abalado, fez da emoção coragem e organizou um funeral digno da dimensão da tragédia.

O tenente da gnr, foi transferido de Beja para Aljustrel. Na lógica do regime, uma mão firme como a do tenente era o ideal para lidar com os mineiros. Numa farsa de julgamento foi absolvido o o tenente que matou por medo. Morreu em 1964.

A Catarina Eufémia foi sepultada em Baleizão há sessenta e seis anos e nunca morreu.



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