sábado, 13 de junho de 2020

Obras do Regime

Foi há oitenta anos. Tinha a minha avó doze anos. Estávamos no verão de 1940.

A menina que era a minha avó, não andava na escola. Nos últimos quatro anos da sua vida , andava à costura na casa de uma senhora que era costureira na rua Aguiar, ao lado da Vinícola do Barreiro, onde mais tarde veio a ser um prédio, onde funcionou a sede da Mocidade Portuguesa e depois do 25 de Abril a UEC e a seguir a JCP. Vivia no Alto do Seixalinho, em casa de uma irmã vinte anos mais velha, operária corticeira sem filhos. Dormia num divã, aqui no quarto onde vos escrevo. Depois do trabalho como ajudante de costureira, vinha ajudar na lida da casa. Os pais não tinham dinheiro para sustentá-la. A mãe era operária corticeira e o pai era pescador. Os irmãos, um estavam na tropa, outro era operário na cuf, as duas irmãs casadas trabalhavam como operárias corticeiras.

Aqueles anos do início da guerra, foram particularmente duros para as pessoas que viviam do seu trabalho no Barreiro. No inverno de 1939, tinha havido muitos despedimentos na fábrica da CUF, em que os operários trabalhavam precários. O rio andava fraco de peixe e os salários eram rasteiros. Era o tempo da sardinha a dividir por tres, da lamejinha roubada ao rio mexida com dois ovos para alimentar as bocas que se sentavam à mesa. As notícias da guerra chegavam alarmantes e os boatos corriam pelas ruas.

No início do ano começou-se a falar no assunto. Do Barreiro, havia alguns operários da construção civil que lá trabalhavam. Trabalhavam a mata-cavalos, sem direitos, sem as mínimas condições de segurança e debaixo de grande pressão. Construíram a Exposição do Mundo Português. Obra máxima do fascismo em Portugal. Ideia copiada da monumentais edificações de propaganda nazi que o todo poderoso secretário Antonio Ferro importará decalcando o conceito.

A exposição foi inaugurada a 23 de Junho de 1940 pelo Senhor Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar. Também estiveram presentes a figura decorativa de estado Óscar Carmona e o idolatrado Ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco. Além destes cabrões fascistas, no dia da  inauguração esteve lá a minha avó.

O nazi António Ferro organizou a mobilização de muitos milhares de crianças de Lisboa e dos subúrbios. Do Barreiro foram numa imensa excursão de crianças e adolescentes. Vestidinhos de lavado e organizados em rebanho. Quando chegaram deram-lhes uma bandeirinha portuguesa em cartão presa num pauzinho. Deviam bater palmas e abanar a bandeira. Em pagamento pelo trabalho de fazer cenário para as fotografias, tinham direito a um lanche de pão com manteiga e podiam ver a exposição. O Padrão dos Descobrimentos era a mais impactante dos objectos expostos. Agente pequenina, cá em baixo, olhava para cima e tinha de dizer haaa...

A minha avó viveu quase noventa anos impressionada com a Exposição do Mundo Português. Recordou o dia que foi à exposição até ao fim. Os jardins, os pavilhões, o padrão dos descobrimentos, as delegações das províncias ultramarinas. Sobretudo recordava a dimensão e a riqueza ostentada na propaganda do regime comparada com a pobreza e a miséria que era o dia a dia que ela conhecia.

A exposição recebeu cerca de três milhões de visitantes, dizem os números oficiais. Dizem os historiadores que constituiu a mais importante iniciativa cultural do regime. A narrativa da história para contemplação e inspiração dos presentes. O grandioso espírito português. O maior acontecimento cultural do século XX em Portugal.

Se calhar foi. Para a minha avó que lá esteve, foi muito marcante.

Os meninas e meninos do barreiro como a minha avó que foram levados em rancho para a exposição do mundo português, amadureceram depressa nos anos de guerra. A maioria destas crianças e adolescentes trabalhavam por migalhas, e era de migalhas que viviam.

Mas a vida é dinâmica e o mundo anda às voltas. Por mais grandiosa, sofisticada e promovida que fosse a propaganda fascista, abanar a bandeirinha nacional já não chegava para manter a malta satisfeita. Esse fascismo que criou a narrativa do orgulho luso e queria o povo como espectador passivo da narrativa historia que lhe contava, já não tinha pão com manteiga suficiente para matar a fome.

E a fome é do caralho!.

Três anos, depois em 1943, muitos das crianças e adolescentes que viram a exposição do mundo português com a bandeirinha na mão, estavam organizados numa greve a exigirem salários que lhes permitisse comer. Deixaram de ser espectadores e passaram a ser actores e agentes da própria história. E o mundo avançou mais um bocadinho.

Quando a fome aperta, as pessoas lutam e o mundo avança. Por mais narrativas, estátuas, monumentos e lendas de heróis que se construam para atrasar o avanço do mundo. Por mais televisões, vídeos, comentadores, opinadores, influenciadores, historiadores, apresentadores, e outros especialistas de tudo, que nos venham dizer que está tudo bem, que nos venham dizer que é mesmo assim que temos de nos aguentar...Por maior que seja o padrão edificado a glorificar um passado grandioso na mentira e a prometer o céu na terra... 

Por mais vezes que nos digam que vai ficar tudo bem...

Quando não há que comer, não vai ficar tudo bem.

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