quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O Pandeleiro


O meu amigo António já fez oitenta anos. Esteve quase a licenciar-se em história pela universidade de Coimbra mas a luta contra o fascismo na universidade fizeram-no comunista. Isto num tempo em que era proibido ser-se comunista.
Aquilo que ficou conhecida como a "crise académica de 62"  produziu muitos e bons quadros indispensáveis à construção da liberdade. O António foi um deles.
Oriundo de uma família beirã, cresceu privilegiado. Aos vinte e dois anos, fez a opção de classe e assumiu tarefas a tempo inteiro no partido comunista. Mergulhou. Quer dizer, passou a clandestinidade.
Para trás ficou o curso de história e um eventual pacato futuro. Ficou a família que apesar de moderadamente liberal não entendia a escolha do rapaz. Ficou um namoro de conveniência social com uma  namorada que sonhava casar mas que não partilhava da sua visão do mundo. Ficou também para trás o conforto de viver com dinheiro num país de pobres.
O trabalho político levou o António para  o Porto. Foram-lhe atribuídas tarefas ligadas à organização de trabalhadores da construção civil. A ponte da Arrábida estava a ser inaugurada nesse ano de 1963. Era preciso mobilizar e organizar para a luta daquele mar de trabalhadores envolvidos na construção da ponte e empurrados para o  desemprego.
O António tinha pouca experiência de clandestinidade. Não queria ser preso. Tinha medo. Por isso seguia com disciplina as orientações.
Chegar aos locais de reunião dez minutos antes, passar e observar, ir por uma rua voltar por outra. Deixar a bicicleta afastada e chegar a pé ou de transportes públicos. Não falar com ninguém no trajecto. Evitar o contacto social. E sobretudo ter cuidado. 
O António tinha.
Morava num quarto alugado perto das Antas. O estádio tinha sido construído há meia dúzia de anos antes. À volta do estádio havia baldios, casas dispersas e algumas fábricas pequenas.
O sucedido terá sido nos primeiros dias de sol de sessenta e quatro.  
O António vinha para casa por volta da hora de almoço.  Na beira da vereda que percorria de bicicleta, um grupo de três jovens operárias têxteis picnicava. 
Ao verem aproximar-se o rapaz, cochixaram e uma delas, a mais afoita e também a mais bonita, soltou em voz alta:
-- ò jeitoso!
O jeitoso, disciplinado nas regras da clandestinidade, baixou a cabeça, fingiu que não ouviu e continuou a pedalar vereda acima.
Passaram-se uns dias. O tempo continuou simpático.
A mesma vereda.
A mesma hora de almoço e as mesmas operárias têxteis, a almoçarem o seu farnel ao sol de primavera.
A rapariga corajosa, reconheceu o ciclista e inconformada com a falta de resposta da passagem anterior, convidou:
--- ò jeitoso, queres almoçar?
O António queria. Queria muito almoçar. Queria ficar ali ao sol a comer do farnel daquela rapariga e a rir com o riso dela. 
Mas não podia.
Fez o que tinha a fazer. 
Baixou a cabeça, fingiu que não ouviu o convite e continuou a pedalar.
Elas riram.
A vida do clandestino continuou entre reuniões e pedaladas. 
O inevitável voltou a acontecer. Voltou a cruzar-se com as tres raparigas. 
Desta vez, aquela morena de olhos grandes, disse para as amigas: 
-- Uma pena, tão jeitoso e pandeleiro!
...
Cinquenta e oito anos, dez deles em clandestinidade, duas prisões, uma revolução, uma contra revolução e quarenta e seis festas do avante depois,  continuam a viver juntos. 
Ela não perdeu o sotaque de Rio Tinto, continua afoita nas palavras e na vida. Bonita e risonha.  O tempo deixou-a um bocado surda mas quase nunca usa o aparelho, ri do que não ouve e continua a dizer o que pensa e o que quer. 
Ele continua tímido. Mantém a coragem serena dos conspirativos. 
Não consegue dormir a noite seguida e tem dificuldades em caminhar porque os joelhos já não são o que foram. Nas insónias fuma. Fuma há mais sessenta anos, só para desmentir as estatísticas, assim me contou.  Foi numa das suas noites em branco entre cigarros e outras conversas que me explicou porque é que a companheira o trata carinhosamente pela improvável alcunha de Pandeleiro.
Eu achei o relato um tesouro que tive de partilhar.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Em arame farpado


Lavam a loiça nas tascas. Lavam o chão nos cafés. Lavam os cus aos velhos, pões-lhes cremes e dãos-lhes colheradas da sopa que os mantêm vivos.

Mudam de roupa nas dispensas e em garagens. Os pes descalços no cimento frio. Depois vão para outro emprego limpar mais casas. Limpar estores e janelas. Limpar os escritórios e os restaurantes.

Descascam batatas, lavam a loiça, arrumam caixas e detergentes. Comem o que sobra da cozinha do lar e da cantina. 

À noite servem bebidas, maquilham-se e perfumam-se com maquilhagem e perfumes baratos e convidam homens para beber. Servem pipocas em tijelas em cima dos balcões que são elas que limpam. 

Servem bebidas com sorrisos. 

Servem

Servem vendendo o corpo na cama que foram elas que fizeram. As pernas abrem-se, a boca geme e sussurra palavras de amor repetidas. A mente foge e vai para longe, para casa, para as contas, para a novela, para a infância remota, para qualquer lado menos o ali e naquele momento. Acabado o ato, lavam-se a elas com as toalhitas do possivel e voltam para trabalhar mais. 

Às cinco e meia saem e vao limpar escritórios, lojas e farmacias. 

Às oito apanham flores nas estufas. Às nove podam oliveiras no campo. Ao meio dia param para comer restos. À uma voltam a trabalhar.

Com eles é diferente. 

Eles dormem oito numa garagem em colchoes insuflaveis. Comem arroz cozinhado em campingás e esperam que o patrao os venha buscar na carrinha. 

Sobem e descem andaimes. Fazem massa e carregam baldes. Tijolos e tábuas. Caixas de mosaicos. 

Dobram-se para podar as vinhas. Dobram-se para apanhar os tomates. Dobram-se para passar a talocha no cimento fresco. Dobram-se na carrinha para a policia não os ver.

Lavam-se no bidom à saida da obra antes de voltar a entrar na carrinha. Lavam-se no alguidar à porta do armazem onde dormem. Deitam-se com toda a roupa vestida no inverno. No verão descansam nus na sauna da chapa de zinco que os tapa.

Ao fim do mes, da semana, do dia, da jorna, quando lhes pagam, contam o dinheiro e celebram.

Uma parte para pagar a casa e as dividas ao patrão. Uma parte para o supermercado. O que sobra, quando sobra, vai para cerveja. Outros mais focados conseguem mandar vinte euros.

Eles e elas, se adoecem vão trabalhar à mesma. Ou pior  ficam deitados no chão do barracão à espera que a doença passe. 

Não têm documentos. Não existem. São fantasmas.

Assombrações que te apanharam os morangos que comeste hoje e lavaram o chão do banco que é dono da casa que dizes que é tua.

Esquece lá isso. Dizem que o benfica foi roubado e isso deve ser mais importante que enforcar em arame farpado os empresários que vivem de chupar o sangue a esta gente mais os fiscais e autarcas coniventes.

Agora descansa.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Pink Floyd em Vila Pery

 


A menina tinha quinze anos. Era um domingo à tarde e a menina tinha ficado em casa para ouvir o Dark Side of The Moon dos PinkFloyd.  

Estava sozinha porque o resto da família tinha ido ver o jogo do Textafrica, a equipa local do Chimoio, a cidade onde vivia. Ao domingo à tarde o Chimoio pàra por causa da bola. Cidade que  é capital da província de Manica, está a mil e cem quilómetros a norte de Maputo que naquela altura ainda muitos chamavam Lourenço Marques.

A Textafrica alem da equipa de futebol também era uma imensa fabrica têxtil com milhares de trabalhadores. O maior empregador local e regional. A fabrica naquele conturbado ano de 1975 continuava a produzir. Contra a sabotagem de alguns, as previsões de muitos, e o desejo de uns quantos, continuava a trabalhar e produzir tecidos. 

Os donos da fábrica fugiram para a Africa do Sul e outros para a Rodésia. Mal se soube do 25 de Abril em Vila Perri, que era assim que os colonos chamavam ao Chimoio, os agentes da pide que eram quem administrava a cidade, meteram-se em dois carros arrancaram para o sul e nunca mais ninguém os viu. Os colonos donos de negócios mais pequenos que a fábica, ficaram preocupados com a fuga dos pides. Agora quem é que ia prender os terroristas moçambicanos capazes até de pedirem aumento e fazerem greve?!?! Deixaram a politica para os políticos, armaram os capatazes, os comerciantes brancos e meia dúzia de indianos de confiança.  

Reuniram-se colonos, latifundiários, patrões, capatazes, comerciantes locais e alguns quadros técnicos. Convenceram-se ou foram convencidos, que haviam de ficar e fazer como na Rodésia, ou como na Africa do Sul. Uma independência Branca explicavam uns aos outros para se motivarem e treinaram a argumentação. 

Bebiam whiskies, contavam anedotas racistas, mandavam dinheiro, joias, as mulheres e as filhas para Portugal e ficavam a exibir armas, carros e amantes pelas ruas largas e poeirentas do Chimoio. Falavam de economia e desenvolvimento e diziam que sem eles e sem o seu superior conhecimento da manha do indígena, Moçambique era ingovernável.

A menina de quinze anos, sabia pouco de governabilidade. Tinha roubado um SG Gigante  do maço do pai para fumar a ouvir o disco dos Pink Floyd. Pôs o  vinil a rodar 33 voltinhas por minuto, aumentou o som, acendeu o gigante e esperou. 

A canção "money", tal como todos sabemos (e quem não sabe devia saber), começa com ruido de moedas a cai. Depois é que entra o barulho de maquinas registadoras. E só a seguir é que se ouvem as guitarras e a bateria. 

Naquela tarde, a menina aproveitava estar sozinha para ouvir o disco bem alto. Mais alto do que lhe era habitualmente permitido ouvir discos. Com o som do gira-discos no máximo  o sg gigante aceso entre os dedos. Nos pés as socas de tacão que estavam na moda. Os ouvidos de adolescente apuradíssimos para aquela musica que lhe lhe tinham dito que era tão diferente e dissonante de tudo o que conhecia.

Na confusão de sons da musica parece-lhe ouvir disparos. Pensou que estes Pink Floyd eram mesmo uns malucos do caraças. 

Só quando viu o estuque a saltar na parede da sala e aparecerem tricotados os buracos das balas é que a menina percebe que a casa está a ser atacada. 

Esconde-se na casa de banho que é a divisão mais interior. Deita-se na banheira e tapa a cabeça com a cortina. Não lhe perguntem porquê. É nessa posição que pode parecer ridicula que espera. Espera não sabe se pela morte. Ou pior. O que pode ser pior que a morte aos quinze anos? Espera. Os disparos acabaram antes do disco. Os Pink Floy continuaram naquela musica maluca e tremendamente alta. Depois o gira-disco calou-se. Mas a menina continua à espera. Lá fora os pássaros voltaram a cantar as suas canções nas arvores do jardim. E menina sempre à espera. Esperou muito tempo. Ou então, se calhar nem tanto tempo quanto isso. Mas para a menina foram anos. Envelheceu anos naquela banheira sem água à espera.

Quando a porta da casa de banho se abriu entraram três homens. Dois homens negros e um homem branco. Um negro jovem, fardado com uma kalashnikov em riste. Um negro de trinta e tal anos, bigode e fato de treino que era o Mário Culuna, o treinador do Textafrica. E um branco de meia idade de pistola na mão, barbudo, com uma camisa de manga curta azul clara vestida.

O branco era o pai da menina e foi apenas nesse momento, após a longa espera que a menina se deu ao luxo de se abraçar ao pai a chorar e a gritar o seu medo.

O pai da menina, alem de branco e amigo do Coluna era um quadro técnico e comunista. Assim que foram avisados de tiros vieram a correr. Voaram diria mais tarde o Coluna. 

Veio a Frelimo em peso proteger a casa daquele homem branco da raiva dos outros homens brancos.

O pai da menina tinha afrontado os senhores locais. Primeiro porque falava na necessidade de sindicatos aos trabalhadores da fabrica. Depois porque andava com militares negros da Frelimo no automóvel, militares esses que lhe chamavam camarada. Também, porque fazia questão e exibia a todos que tratava as pessoas negras por senhor e senhora -- pura provocação. E suprema ofensa, no jardim do bairro de vivendas onde se instalara tinha uma mesa comprida onde era frequente ser visto a comer e a beber sentado à mesa com pessoas que eram trabalhadores da fábrica.  Trabalhadores pretos! sentados à mesa do jardim da vivenda a comerem e a beberem como qualquer branco!

Antes daquele domingo em que a menina pôs os Pink Flod a tocar, já tinham feito alguns avisos e ameaças ao seu pai. 

Um vizinho boçal, disse-lhe um dia à queima roupa, quando o encontrou à porta de casa: mas você acha que é preto??!!! 

Outra vez furaram-lhe os pneus ao ford.

Era frequente, deixarem-lhe bilhetes com ameaças.

Para o pai da menina, era apenas a luta de classes a acontecer.

A revolução estava a acontecer em Portugal. A independência estava a ser parida ali e naquele momento. Conhecera quase todas as prisões salazarentas onde o tentaram fazer desistir de concertar a injustiça do mundo. Sabia de cor o alfabeto fascista da intimidação. Não era, nem nunca foi homem de desistir.

Naquele domingo à tarde, durante o jogo do Textafrica tentaram outra vez na forma daquele ataque.

O Samora Machel, amigo do pai da menina, três ou quatro dias depois, quando se encontraram na Beira,  perguntou-lhe se estava bem e se precisava de alguma coisa. Disse que não.

-- Ninguém ficou ferido. Ninguém morreu. E se os gajos estão danados alguma coisa havemos de estar a fazer bem feito! Não nos vamos deixar intimidar por estes brancos da merda.

O Presidente da Republica de Moçambique, no discurso dessa noite, falou nos "brancos da merda" que tentavam sabotar o futuro do país. 

Algum jornalista idiota ou mal intencionado fez da frase notícia.

Aqui em Portugal falaram na frase do Samora mas ninguém falou no ataque.

No Chimoio a casa ficou bastante danificada. As marcas das balas permaneceram durante muitos anos nas paredes. Na menina de quinze anos também. Dias dos depois dos tiros, pediu ao pai para voltar para Portugal. O comunista fez a vontade à filha como sempre gostou de fazer.

Passou algum tempo desde que foi feito o Dark Side of the Moon mas para a menina que já tem sessenta anos os Pink Floyd soarão sempre a Africa.

Os brancos da merda de que o Samora falava, continuam por aí a achar que são eles na sua superioridade de alvas criaturas quem sabe o que é melhor para Moçambique. 

E no Chimoio ao domingo à tarde a cidade continua a parar por causa do futebol.

domingo, 29 de novembro de 2020

A Democracia Religiosa de Duas Aldeias

O caso que vou vou contar, aconteceu há meia dúzia de anos, naquele Alentejo tapado com olival intensivo por cima e recheado com minério por baixo da terra . Foi em Duas Aldeias e os ecos do sucedido soaram como uma trovoada em toda a planície.

O João nasceu grande, cresceu robusto e fez-se mineiro. Foi nascer a Beja, mas sempre viveu em Duas Aldeias.

Na fabrica debaixo do chão onde trabalha e na vida que leva tem duas referencias que são dois escudos protetores: o Sindicato e a Senhora da Graça. O sindicato protege-o dos abusos dos encarregados, engenheiros e outros merdas que mandam. A Senhora da Graça protege-o das coisas más que não se veem, como dos desabamentos, das bolsas de gás e dos outros azares.

Desde os dezoito anos, no final dos anos oitenta, princípios do noventa, que o João é  Festeiro. Teve dois anos sem ser, quando lhe aconteceu estar casado.

Na Festa da Senhora da Graça, em Duas Aldeias os mancebos (que na verdade não chegam à dúzia) esquecem as rivalidades entre Aldeia de Baixo e Aldeia de Cima. Juntos, organizam uma comissão de festas em honra da Senhora da Graça. Chamam-se a si mesmo Festeiros. Compram, roubam ou pedem oferecidos uns borregos, às vezes um novilho, patos e galinhas e fazem a festa anual. É assim desde que há memória.

O dia da nossa senhora da Graça é a 27 de Novembro e a festa é celebrada nessa data. Uma festa de inverno com fogueira acesas e vinho novo nos copos. A festa começa numa procissão que sai da capela que fica no Largo da Aldeia de Baixo, sobe a Rua Grande até à Aldeia de Cima, dá a volta , passa à porta do cemitério, desce Pela Rua de Trás até à capela de onde saiu. Mesmo andando devagar ao passo de procissão, com os pesados andores às costas e sapatos finos de casamento a torturarem os pés habituados a botas grossas, em meia hora está acabada a procissão. A celebração religiosa, termina quando Senhora da Graça, a cavalo no andor, volta à capela onde fica um ano à espera que mancebos casadouros lhe façam outra festa no ano seguinte.

A Festa da Senhora da Graça é um momento alto da vida comunitário que serve para comer, beber, dançar, celebrar e lutar. Depois de acabada a procissão, os Festeiros, vão para o largo que entretanto já está coberto com umas lonas e umas chapas e é ali no telheiro improvisado, que toda a aldeia partilha uma refeição coletiva. É ocasião para impressionar potenciais noivas, familiares, rivais. Depois do almoço há o balho. O acordéon toca modas, dão-se uns passos de dança e acertam-se namoros. Como no final de Novembro fica de noite cedo, as moças e as famílias voltam para casa ao final da tarde. Ficam só os rapazes embriagados de carne e vinho. Dissolvem as tréguas que acalmaram as rivalidades entre a Aldeia de Baixo e Aldeia de Cima, e normalmente, salvo raras exceções recordadas em décadas como coisa funesta, o balho acaba em valente sessão de pancadaria coletiva. Os solteiros das duas aldeias passam depois os meses de inverno a recordar a épica batalha. Repetidamente, recordam os feitos de bravura executados na Festa da Senhora da Graça. Seja bravura de adversários derrubados à punhada, seja de pratos  devorados, seja dos rios de vinho bebidos. Sempre foi assim desde os tempos mais remotos.

A tradição ditava que os Festeiros sejam os rapazes solteiros das Duas Aldeias. Um antropologo que lá esteve a fazer um trabalho de campo, escreveu um artigo sobre rituais de iniciação, celebrações pagãs trasvestidas e catolicismo e tradição arcaica. Talvez sejam. Em Duas Aldeias não leram o trabalho do homem, nem precisam que lhes ensinem a fazer o que é deles.

Sabe-se que moças e moços pedem à Senhora da Graça proteção nas minas, casamentos e amores de sucesso, sorte e saúde. E diz quem acredita, que a Senhora dá a Sua Graça às vezes colabora. É esta a tradição.

Os tempos mudam e as tradições mudam com os tempos. Os casamentos de hoje já não duram toda uma vida, tal como os frigoríficos de antigamente. E estaremos todos de acordo, que ainda bem que é assim, porque há amores infelizes. As separações acontecem porque os casamentos não têm de ser uma condenação perpétua. Um moço solteiro que hoje é Festeiro em Duas Aldeias, no próximo ano está casado, depois descasa, porque é que não havia de voltar a ser Festeiro outra vez??!?!?! Ou uma rapariga que se separa por o marido ser bêbado, bruto, cavalgadura e porco, ou simplesmente porque já não gosta dele, porque razão, depois de novamente disponível para o amor, havia de estar privada de participar no balho da Senhora da Graça?!?!?

A Senhora da Graça é gente boa e não quer cá saber de burocracias, nem de papeis. Nem é entidade de se ficar, sujeita e submetida ao preconceito. Senhora de gente humilde e trabalhadora, podem os padres chamar-lhe santa e dar-lhe uma família entre o deus deles... mas é Santa do Povo e é ao povo que pertence. 

Devoto da Senhora da Graça, O João, no seu metro e noventa e mais de cento e trinta quilos de músculos desenvolvidos no ginásio da mina, sempre foi um dos mais destacados Festeiros. Celebra a Senhora da Graça na medalha de ouro que traz sempre ao pescoço, na força e devoção com que carrega o andor, na capacidade de virar discos de ensopado e na quase sobrenatural capacidade de beber vinho. Depois no balho, também celebra e homenageia a Senhora da Graça, a dançar e quase sempre a andar à porrada.

Por volta de dois mil e dez, para lhe agradar, a Senhora da Graça mandou para o João uma namorada tão linda como ele pediu. Chegou-lhe pela internet. Passou meses a falar com ela pela câmara do computador. Depois de ver a namorada de todos os ângulos, ainda ficou mais devoto da Senhora da Graça. Virgem nos doces amores com sotaque tropical, ficou deslumbrado por tudo o que viu no ecrã. Casou-se por correspondência depois de uma batalha burocrática de papeis, declarações e vistos. A espera demorou uns seis meses. 

Finalmente foi busca-la ao aeroporto a Lisboa. Veio em finais de Janeiro. A moça, Jessineide de batismo, Jéssi para o mundo, chegou quase tão linda como as fotografias. Vinda directamente do mais remoto e afastado interior de Minas para viver a beira de uma mina no Alentejo profundo. Depois de uma viagem de uma semana de autocarro que amargou até chegar a São Paulo, depois de doze horas de espera no aeroporto em filas e controlos alfandegários entrou no avião da tap. Mais oito horas de atlântico num batismo de voo sobre as àguas salgadas, a Jéssi chegou à portela mais morta que viva. A ultima coisa que queria era concretizar o casamento. O João achou-a linda. Saíram de lisboa os dois nervosos e ansiosos. A segunda circular, o eixo-norte sul e a ponte. O Tejo lá em baixo e o Alentejo a começar ali a seguir ao Fórum Almada. Ele a suar das mãos pela presença dela, ela deslumbrada com os carros, os prédios, as luzes e as pessoas de uma Europa que acontecia do lado de lá da janela do carro. até as cançoes do Chitãozinho e Xororó que ele pôs para ela, lhe soavam estranhas. Pararam no Íbis de Setúbal para descansar que a viagem ia ser grande, mais de cem quilómetros até à nossa casa disse ele. Para ela cem quilómetros não era a distancia, era vizinhança. A cidade onde tinha tratado da papelada ficava a duzentos quilómetros da casa onde vivia. Só? E você vai querer ficar no hotel?

Ficaram. E fizeram o que tinham a fazer. Depois fingiram os dois que dormiram e ficaram acordados deitados ao lado um do outro a imaginar um futuro que seria dos dois.

Imaginaram futuros diferentes, pois claro.

Ele continuou a trabalhar na mina.

Ela arranjou emprego no centro de dia.

Ele fazia horas na mina para lhe comprar coisas.

Ela comprava coisas para ficar bonita para ele e tirar fotografias para mandar para a família e os amigos em Minas.

O João gostava de descer a rua até a Aldeia de Baixo e mostrar a esposa. A Jéssi gostava de se por bonita, mais que não fosse para ir passear até à aldeia de baixo.

Viveram felizes uns meses.

Mas o ritmo dos amores é caprichoso.

Ele pediu-lhe para ela se vestir mais tapada porque uma senhora casada devia saber comportar-se.

Ela tirou-lhe a medalha da Senhora da Graça porque um pastor lhe tinha dito que imagens de santas são idolatria e coisas do tinhoso.

Ele queria que ela cozinhasse mais vezes.

Ela não queria que ele usasse o fato macaco da mina quando saíssem os dois à rua.

Ela não queria que ele fosse as reuniões no sindicato.

Ele não gostava que ela passasse tantas horas na internet.

Ele queria comprar um frigorifico, ela queria uma televisão. 

Ela queria mandar dinheiro para a família. Ele queria comprar um carro. 

Desentenderam-se.

Ele deu em beber. Ela arranjou outro. Dois invernos depois de a ter ido buscar a Jéssi a Lisboa, mudou-se a mulher para longe, para casa de uma prima no algarve onde começou a trabalhar num supermercado.

O João andou uns tempos esmorecido. Bêbado e sujo. Mas os amigos puxaram por ele. Levaram-no a bares de alterne onde bebeu oceanos de cerveja e alimentou a alma com beijos comprados. Levavam-no a esperas ao javali e a comer perdizes. Às vezes no fim do mês iam na carrinha do João a Badajoz beber, comer e amar e passavam semanas a comentar as façanhas.

Quando o verão chegou já o João trazia a medalha da Senhora da Graça ao pescoço e já era outra vez o  que sempre tinha sido. Voltou ao sindicato e à tasca onde petiscava sem se esticar nos copos.

Como seria de esperar, naquele ano, deram o nome dele para Festeiro da Senhora da Graça

Só que o padre (há sempre um “só que”), recém-chegado a Duas Aldeias, novo em idade mas velho e retrogrado em ideias, envenenado por fascismos e consumidor regular de teologias conservadoras, veio dizer aos rapazes que o João não podia ser Festeiro porque não era solteiro.. Que sendo divorciado aos olhos de deus não podia ser Festeiro.

A malta não aceitou. Em coletivo, na taberna que tinha nome de café central, tomaram a decisão:  ou João era Festeiro, ou então ninguém alinhava.

O padre, contrariado, mas pressionado pelo bispo para não levanta ondas, acedeu. Aquela  rapaziada toda, que via no João, já a fazer quarenta, uma espécie de padrinho na vida, sentiu no recuo do padre uma vitória. O João assumiu ainda mais a sua liderança pelas suas características naturais de tamanho, feitio festeiro e de profundo conhecedor de boates e casas de alterne, alem das suas capacidades como bebedor e lutador nato.

Os Festeiros organizaram-se e o João nesse ano esmerou-se. Comprou, pediu, organizou, reservou, encomendou e preparou-se uma festança tal que todos acreditavam que  este ano, a própria Senhora da Graça, havia de descer do andor para dar uns passos de dança nos compassos do forró que o João tinha introduzido como musica oficial da festa. Só novilhos foram três. Três novilhos. Três!!! Até já havia malta em Beja a pedir para ser convidada....

O mês de novembro foi todo ele passado nos preparativos.

Nas Duas Aldeias e arredores, todos comentavam a festa que se preparava.

Os jovens em espectativa. Os velhos com assombro, inveja e desdém. As beatas abanavam a cachola e benziam-se. O filha-da-puta do padre remoía uma estratégia para não se envolver naquela celebração que de católica tinha muito pouco.

No dia vinte-e-sete de novembro, não se sabe se por influencias das rezas do padre, das mezinhas das beatas ou porque é próprio do Outono, o dia amanheceu cinzento e a chuviscar.

Não foi preciso mais. O cabrao do padre, viu ali um pretexto para se livrar dos seus deveres que ia cumprir contrariado e disse logo que não havia procissão que estava a chover.

Os festeiros que se tinha reunido na noite anterior para desmanchar os novilhos, esfolar e temperar os borregos e ultimar os preparativos, quando o padre disse que não havia procissão, foram acordar o João que na cama ainda sonhava com os doces beijos da Jessi na sua boca a saber a vinho da véspera. Acordou de mau humor.

Disse logo

-- Ai nã faz?!?!? isso já se resolve..

Que podiam ter a certeza que ia haver procissão. Enfiou a roupa e foi direito à sacristia onde o padre satisfeito com a chuva se preparava para sair para Beja onde vivia.

O representante do deus dos católicos, arrogante, ainda o João ia na rua, começou logo a dizer que nem pensar que estava a chover que não ia haver procissão que o andar não podia ir à chuva.

O João, apesar da ressaca, apesar da perseguição pessoal do padre, apesar da alergia genética que fazia às batinas, tentou conciliar. Com argumentos racionais e na educação possível explicou que o andor era coberto com aquele toldo de veludo azul e que a Nossa Senhora não apanhava chuva nem se constipava. E que se o padre quisesse lhe empestava um chapéu de chuva...

O Padre, mal educado, fechou-lhe a porta da sacristia na cara. Não contente, por medo e arrogância deu volta na chave dentro da fechadora que soou ao João e toda aquela malta que estava ali a ver, como uma ofensa pessoal e grave.

Indignado com a falta de educação do eclesiástico, o João ficou uns segundos à espera. Ressacado com a chuva miudinha a molhar-me a camisa. Os outros festeiros a olharem para ele, na sua maioria miúdos com idades para serem seus filhos, à espera de verem o João a resolver. Todos esperavam que da sua parte viesse a solução para salvar a festa ameaçada pelo reacionário padre.

A perna reagiu primeiro e a frágil porta abriu-se como por milagre. Às vezes as soluções chegam assim... A chave foi a bota quarenta e cinco do João que entrou na sacristia. A seguir à perna, pela porta caída entrou o João. O padre, quando percebeu o que estava a acontecer, fugiu para se esconder atrás do altar.

Ainda disse em gritos esganiçados:

-- Ordeno-lhe que saia da casa de deus!

Depois não disse mais nada. De qualquer maneira, o João fez-lhe a vontade e saiu. Mas trouxe a Nossa Senhora da Graça aconchegada a ele, debaixo de um braço. O andor debaixo do outro. Antes de sair explicou ao senhor padre, na sua maneira rustica mas clara, mais por atos do que por palavras o seu conceito de democracia religiosa. Que a Senhora da Graça é do povo das Duas Aldeias e não é nenhum cabrão de um padre quem decide quando é que se faz ou deixa de ser feita a procissão.

A rapaziada entrou depois para ir buscar aqueles paus pintados de branco e o toldo de veludo azul que tapou a Senhora da Graça na procissão que se fez à chuva.

Quando a ambulância chegou, já a procissão ia a meio da rua. Foram as beatas que vigiavam e viram tudo pelas frinchas da janelas quem chamou os bombeiros. Exagero. Afinal foram só duas costelas partidas, um dente da frente que um pivot resolveu e um olho negro que passado uma semana já abria outra vez.

O bispo não deixou o padre apresentar queixa e mudou-o de terra.

Duas Aldeias teve uns anos sem padre. Mas a procissão fez-se sempre. Com o João a organizar os Festeiros.

O padre que veio agora, já velho em idade e por isso mais sábio, não levanta questões relativas à democracia religiosa de Duas Aldeias. Muito menos ao estado civil dos Festeiros. Inteligente e hábil manobrador fogões e tachos, preocupa-se com questões mais pragmáticas e tem no João um aliado e um companheiro. Este ano foi o padre quem fez um ensopadinho de javali que diz quem comeu estava de chegar ao céu!

domingo, 18 de outubro de 2020

Chico das Saias

Foi no final dos anos oitenta. Lembro-me que estava calor e eu seguia a pé no estradão que atravessa o vale dos Picheleiros aos Casais da Serra. No silêncio da mata começou a ouvir-se uma motorizada que passou por mim numa nuvem de pó e fumo de escape. Trazia capacete vermelho e vestia como uma camponesa. O rosto curtido de muitos dias e muitas luas da Arrábida tinha tantas rugas como os trilhos percorridos.  Desapareceu numa curva da mata e fiquei sem saber se era uma velhinha que se atrevia a andar de mota ou um velhinho que ousava usar saias.  


Dois ou três dias depois, a caminhar na direção do alto da Serra, fui dar à casa onde vivia. 

Os cães, dois entre podengos ou outros aproximados vieram ladrar a minha aproximação. A casa, baixa, sobre o comprida, mais do que esconder-se entre o arvoredo, era parte da mata. Por trás uma espécie de horta. À porta a motorizada que reconheci. 

Mais para matar a minha curiosidade do que por necessidade de orientação, gritei. 
-- Boa tarde. Está alguém em casa? Estou perdido. 
Os cães a ladrar em stereo mas sem darem mostras de quererem ferrar. 
Insisti. 
-- Ó da casa?!?!  Tá aí alguém? 
Por fim, afastando uma cortina de farrapos que protegia a porta aberta,  surgiu a figura. 
Definitivamente um homem velho. 
-- Qué que quer? 
-- Boa tarde,  para subir a Serra é passar para o lado do Convento, é este o caminho? 
Como se houvesse dúvidas no óbvio, uma vez que o único trilho era aquele em que me encontrava e ia direto para o céu passando pelo purgatório da Cascalheira, uma subida íngreme de cascalho grande e solto que nos faz subir a quatro muitas vezes...
Na realidade, primeiro quis saber quem era o ermita que ali vivia, depois ao ver e reconhecer a motorizada, quis apurar o género de quem se tinha cruzado comigo dias antes. Há trinta anos atrás, na minha ingenuidade, acreditava que o género das pessoas era binário. Pensava que as pessoas ou eram homens ou eram mulheres e que fora deste reduzido universo de duas hipóteses, não existiam possibilidades. 
Mas velho, saído daquela casa que mais parecia uma gruta de madeira velha na mata de madeira nova,  esclareceu a minha idiota curiosidade não deixando dúvidas que era um homem. A voz,  a barba branca por fazer a postura de pernas abertas, os braços a acabarem e mãos largas de camponês.
-- Atão na vê que é sempre a subir... Se queres passar antes da noite, vai já. Tens água?  
Eu agradeci,  mostrei o cantil cheio, disse boa tarde e segui caminho. Sem entender as roupas de mulher com que o velho se vestia. 
Subi a Serra e nessa noite dormi abrigado numa centenária e abandonada cela de monge num convento com vista para o mar. 
No dia seguinte numa tasca na aldeia alguém me disse que o velho não batia muito bem. Que vivia ali sozinho no meio do mato longe do mundo e vestia a roupa da mulher que em tempos teve. 
Interessado por enigmas e coisas estranhas tentei saber mais: Mas é gay? Não. Nada disso. Vive ali sozinho mas veste sempre de saia. Chamamos-lhe o Chico das saias.
Mais tarde contaram-me um novela romântica da mulher que fugiu. Que encontrou outro amor e deixou o Francisco só. Que se fez ermita, que veio à procura a solidão, do isolamento da serra e do silêncio. E que o Chico, ficou ainda mais sozinho, mais isolado,  mais melancólico e mais triste. Que na casa vazia construída em madeira por suas mãos entre o calor dos verões e os frios do inverno o Chico se agarrava às recordações da vida partilhada. Que por tédio, amor, saudade e loucura vestia as roupas que a mulher deixou no armário e que ele carregava numa mala como o seu maior tesouro. Que não voltou a vestir-se com as roupa que o mundo esperava que usasse, porque com as saias da mulher se sentia mais humano e menos bicho. 
Psicólogos, psiquiatras e outros especialistas em arrumar em gavetas identificando os comportamentos dos outros, iam falar em depressa, esquizofrenia,  alienação de gênero ou outras expressões  ainda mais complicadas que eu não sei dizer e  muito menos sei o que significam. 
Os pastores e camponeses da Serra da Arrábida que são sábios por inerência, simplesmente acrescentaram "das Saias" ao diminutivo do Francisco. 
E pronto. 
Por ali viveu e trabalhou vestindo saias por muitas décadas.
Sobe hoje que o Chico das Saias descansou da sua vida de camponês no início deste século. Que a administração do Parque Natural da Arrábida arrasou a casa de madeira onde vivia. Que a mata e os bichos taparam a horta que cultivava. Mas sei que a sua loucura, amor e capacidade de exercer a liberdade individual ficará marcada na Serra e que o caminho que sobe a serra e passa ao lado do sito onde morou tem o nome escrito em letra de impressa de Trilho do Chico das Saias.
Viva a loucura, que de gente normal está o mundo saturado.

domingo, 26 de julho de 2020

Raça dos homens mortos


Um homem de quarenta anos, é assassinado numa esplanada. O homem que assassinou tem oitenta anos. 
O homem morto era um portugues negro. 
O assassino nasceu em 1940. A geração que cresceu no Portugal miseravel do mais repulsivo fascismo. A geração que aprendeu a ler numa escola onde se ensinava que o país ia do Minho a Timor. Aprendeu que foram os portugueses brancos como ele que civilizaram a Africa. Aprendeu que sem a seu (dele) "nobre povo" os africanos nunca conseguiriam ascender à posição de humanos completos.   
A geração de rapazolas estupidificados pela censura, pela pobreza e pelo vinho, militarizados e exportados como carne para canhão para fazer a Guerra Colonial. Esses miudos de vinte anos que sairam dos campos onde passavam fome e foram defender os intereses dos grandes grupos economicos instalados nas colónias, sustentaculos do decadente fascismo. A geraçao de idiotas que ainda não percebeu o que lhes aconteceu. 
A geraçao que morreu e matou indiscriminadamente. A geracao dos tipos que fizeram massacres que nunca ninguem julgou. A geracao das violacões colectivas a jovens mulheres e raparigas negras por mancebos brancos como batismo de Africa. 
A geracao de labregos assistiu de longe ao 25 de Abril com medo que os comunistas lhe ficassem com as terras. Essas terras que nunca valeram um pintelho onde deixam os pinhais arder e plantam eucaliptos. 
A geração que usou o S na fivela do cinto e caminhou cantando e rindo o dia da raça. E que recorda saudosa a gosma desses tempos. 
A geraçao que nao julgou os criminosos de guerra nem os torturadores do regime anterior e compensou a pobreza onde cresceu com o consumismo dos anos oitenta e noventa. 
A geraçao que aprendeu que as pessoas que nascem negras, nascem com direitos inferiores aqueles que nascem brancos. A geracao que aprendeu que a vida de uma pessoa que nasce negra vale menos do que a vida da pessoa que nasce branca. A geraçao que foi ensinada que com pessoas negras não se negoceia: usa-se o chicote, a G3 ou a 6.35 e devolvem-se as coisas aos seus devidos lugares. 
O assassino, antes de matar terá dito ao assassinado: vai para a tua terra. Depois matou o homem negro. 
O assassino nunca aprendeu que a Terra é só uma e de todos os homens. Que não sabe que só há duas raças: a raça dos homens vivos  e a raça dos homens mortos.. .e que essa é apenas uma questão de tempo, porque tarde ou mais cedo, seremos todos da mesma raça. 
O homem negro voltou para a Terra, a Terra que é a dele e de todos nós.  Pertence agora à raça dos homens mortos. 
O assasino continua a ser da raça dos homens vivos. 
Por enquanto está preso.
O racismo continua à solta entre a raça dos homens vivos. .

domingo, 5 de julho de 2020

O telegrama de Estaline

Partindo de Samarcanda, no Uzbequistão no século XIV, Timur-i-Lenk criou um império.
Quando o Timur-i-Lenk, aos sessenta e nove anos morreu sem avisar, os vivos de Samarcanda fizeram-lhe um túmulo proporcional à majestade da monumental cidade. Depois dedicaram-se a matar-se uns aos outros para ver quem é que ficava com as pratas.
A coisa manteve-se permanentemente instável durante seiscentos anos. Vieram os turcos, os chineses, os ingleses e os russos. No Uzbequistão, lá metido no túmulo de Samarcanda, o velho tirano repousou durante seis séculos, alheado às invasões, convulsões e revoluções.
Quando a Revolução Soviética aconteceu, em 1917 o Uzbequistão era uma província do império Russo. Em 1918 foi fundada a primeira universidade do país, em Tasquente.
Em 1924, os uzbeques comunistas criaram a República Soviética do Uzbequistão.
A universidade de Tasquente desenvolveu um trabalho importante ao nível da arqueologia em toda a Ásia Central.
Os arqueólogos de Tasquente no início dos anos trinta do século vinte, começaram a estudar, registar, catalogar e preservar o imenso tesouro que é Samarcanda.
Por volta de 1935 pediram autorização para abrir o túmulo do Timur e exumarem o corpo.
Quando se soube das intenções dos arqueólogos, surgiu algum desconforto e descontentamento entre os uzbeques. Os mais tradicionalistas e supersticiosos, diziam que era mau abrir o túmulo de um tirano. Os mais pragmáticos, achavam que haviam outras prioridades.
A burocracia já se sabe é transversal; às eras, impérios e ideologias. A autorização demorou a chegar. Quando finalmente veio a carta com o papel carimbado a autorizar vivia-se o final de 1940.
É sabido que o inverno por aqueles lados é duro.
Só já no final da primavera de 1941 foi possível reunir os meios materiais e humanos e levar pessoas e equipamento para Samarcanda.
Na Segunda-feira, dia 16 de Junho de 1941, os arqueólogos começaram a trabalhar no túmulo de Timur-i-Lenk. No dia 20, uma sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos, chegaram ao corpo do Timur e tiraram o que restava para fora do caixão.
Nas ruas de Samarcanda, nessa sexta e nesse sábado, a população manifestou-se indignada. Tumultos que foi preciso reprimir. As pessoas, sobretudo as mais antigas, falavam na maldição do Timur-i-Lenk. Que uma grande desgraça iria cair sobre uzbeques e russos. Os arqueólogos tiveram de se esconder na esquadra da policia.
A delegação local da NKVD, o serviço de informações e segurança, mandou um telegrama para o Kremlin a relatar o sucedido.
Um dos comissários levou o assunto às mais altas instâncias em Moscovo. Não pelos factos em si, mais para apresentar trabalho feito e porque lhe tinham dito que era preciso estar muito atentos às provocações.
Na noite de sábado para domingo, a Alemanha Nazi atacou a União Soviética.
Na madrugada desse domingo dia 22 de Junho de 1941, foram acordar o Estaline. As noticias da invasão chegaram primeiro, depois o líder máximo do comunismo cientifico, quis saber de tudo o que se passava em todo o lado. Já que estava acordado, não ia perder tempo, mandou vir a si os relatórios de todas as republicas. E claro que tambem soube dos tmultos em Samarcanda e da Maldição do Timur-i-Lenk.
Acontece que o homem era oficialmente ateu, absolutamente pragmático mas secretamente guardava a alma supersticiosa do camponês da Geórgia que nunca deixou de ser...Deu as ordens necessárias para proteger a União Soviética e iniciou aquilo que a história vai a chamar a Grande Guerra Patriótica, a seguir, mandou ele próprio um telegrama para Samarcanda a determinar que enterrassem o Timur e selassem o túmulo.
A guerra foi o que foi.
Morreram 20 milhões de soviéticos.
O Estalin morreu oito anos depois da vitória sobre o nazi-fascismo.
O Uzbequistão tornou-se independente em 1991 três meses antes dos russos declararem o fim da União de Sovietes.
Muita coisa mudou, mas ninguém voltou a abrir o túmulo do Timur-i-Lenk depois do telegrama do Estaline para Samarcanda.

As suas campanhas militares atravessaram as estepes e chegaram às portas de Bagdad. Pelo caminho, os seus exércitos de tajiques e uzbeques, aviaram nos turcos e venceu imperador otomano, Bajazeto I. Timur e o seu exército de facínoras matavam, roubavam e violavam por onde passavam. A única excepção eram os escultores, arquitectos, pedreiros e pintores. Poupava-lhes a vida e recambiava esta malta para Samarcanda onde os punha a trabalhar. Samaracanda tornou-se a mais monumental das cidades da imensa estepe.

domingo, 28 de junho de 2020

O banco do Carlos Paredes

Esta contou-me uma amiga e camarada com muitos mais anos de experiência de luta que eu. 
A minha amiga e camarada trabalhou mais de quarenta anos na industria seguradora e teve em todas as barricadas da luta politica e sindical desde o final dos anos sessenta até por volta de 2010 quando se reformou. 
Contou-me a minha amiga que no verão de 1975, o celebre Verão Quente, foi em tarefa a Braga para participar numa iniciativa do PCP. 
Por esses dias, no norte do país, mobilizados por padre salazarentos, os fascistas atacavam à bomba e acendiam fogueiras nos centros de trabalho do PCP. Nesse dia, cercaram o centro de trabalho do Partido em Braga e ameaçavam matar queimando todos os comunistas no interior do edificio. 
A tarefa da minha amiga consistia em acompanhar o camarada Carlos Paredes, esse mesmo, o Carlos Paredes,  o guitarrista.
Viajaram de noite, chegaram de manha cedo e foram para o Centro de Trabalho. 
À hora de almoço,  estava uma multidão enfurecida a atirar pedras contra as janelas. A PSP fechada na esquadra. As linhas telefonicas cortadas. 
Dentro do centro de trabalho avaliava-se a situaçao e contavam-de os braços enquanto se esperava que chegassem trabalhadores organizados do Porto e dos estaleiros navais de Viana do Castelo. 
Os militrares do COPCOM tinham sido chamados mas não se sabia a que horas chegavam, nem se chegavam. 
Lá dentro, o nervosismo crescia. Discutia-se sobre o que fazer  e como fazer. O medo e a coragem é sabido, dormem na mesma cama em total promiscuidade. Enquanto se reforçavam as janelas e se preparava a defesa, o camarada Carlos Paredes afinava a guitarra. A minha amiga diz que o camarada afinava a guitarra como se estivesse na sala da sua casa na  Damia. 
Na rua gritos de morte. O barulho aumentou e ouvia-se a chuva de pedras.  O responsavel pela segurança sugeriu a organizaçao de uma barricada interna. 
Foi nesse momento que o Camarada Carlos Paredes, guardou a guitarra dentro do estojo de madeira e pegou no banco alto de ferro e madeira onde tinha estado sentado e se posicinou em frente à porta. De pé, lado  a lado com os outros camaradas presentes,  armados com martelos e chaves de ferro. 
Subitamente o silêncio.
Alguem bateia com força na porta. 
Felizmente, à porta era a malta dos estaleiros navais de Viana do Castelo. Nas ruas de Braga, os valentes fascistas que ameaçavam queimar num acto de fé os comunistas, quando viram a ganga dos operarios dos estaleiros, decidiram voltar para as sacristias de onde sairam. 
O camarada Carlos Paredes, à tarde, antes do comicio, tocou o seu reportorio, como combinado. Acabada a tarefa, arrumou a guitarra no estojo de madeira e voltou para Lisboa onde, madrugada alta,  a minha amiga o deixou em casa. 
-- Paredes, hoje aquilo de manha esteve feio lá em Braga...mas tu ficaste com o banco na mão... Ias bater-lhes com o banco? 
-- Ó amiga, se eles entrassem não era para me ouvirem tocar...

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Baquaqua a andar por aí

Baquaqua nasceu em Borgoo no Benin por volta de 1820. Nasceu livre como devem nascer todas as crianças. Com vinte anos foi raptado por mercenários ao serviço de um comerciante de Viana do Castelo que vivia em Uidá, também no Benim, junto à fortaleza de São João Baptista de Ajudá. Recordo que o Marques de Pombal tinha feito uma lei abolindo a escravatura em 1761, oitenta anos antes.

A lei criada em Lisboa, não impediu que Baquaqua fosse escravizado em Uidá por esse esclavagista minhoto e posteriormente vendido para o Brasil. Tudo com a conivência participação e protecção das entidades oficiais portuguesas. Viajou raptado dentro de um navio negreiro que saiu de uma fortaleza militar portuguesa em 1844.

Mahommah Baquaqua era já bilíngue quando foi raptado, falava e escrevia em árabe e ajami, a sua língua materna. Aprendeu português da pior maneira com os seus raptores. 

No Brasil, esteve em Pernambuco, onde ele foi comprado por um padeiro português. O padeiro usou a sua mão de obra escrava para construir uma padaria e fornos de pedra. Baquaqua tentou fugir duas vezes, foi capturado pela policia militar de Pernambuco, torturado pela policia, foi depois entregue ao padeiro que também o torturou. Recuperado fisicamente das torturas, tentou o suicídio. O padeiro fez as continhas, avaliou o potencial prejuízo pela morte do homem que escravizava e decidiu vender o Mahommah Baquaqua. Calhou-lhe como dono um capitão de um barco que fez dele marinheiro sem salário a trabalhar por restos de comida e água estagnada.

Farto de maus-tratos e espancamentos, Baquaqua teve oportunidade de fugir em Nova York depois de descarregar um navio de café, por volta de 1849. Aproveitou e desapareceu nas docas.

Nos Estado Unidos, sem documentos mas também sem dono a reclamar a sua propriedade, consegue embarcar para o Haiti. Alguém lhe disseram que era um país novo criado por homens como ele que tinham sido escravizados. Em Port au Prince, aprendeu a falar e escrever em francês para alem do criolo haitiano. Do Haiti seguiu para o Canadá onde alem de melhorar o seu francês, teve oportunidade de estudar inglês e história. No Canadá trabalhou com o editor o editor Samuel Moore, que o incentivou a escrever.

Voltou a Nova York em 1854, desta vez com documentos canadianos, onde publicou um livro autobiográfico sobre a sua condição de escravo: “An Interesting Narrative - Biography of Mahommah G. Baquaqua”

Cinco anos depois, por volta de 1860, viajou para a Inglaterra na esperança de voltar ao Benin. O último registo histórico sobre Mahommah G. Baquaqua é de 1857, numa carta escrita em Inglaterra para o seu amigo e editor no Canada, Samuel Moore. Baquaqua explica que a luta pela liberdade e justiça não se resumia à luta legalista pelo fim da escravatura, havia muito mais a fazer.

Desde esse ano de 1857, até hoje que não se sabe por onde anda o Baquaqua. Eu cá, acho que o gajo anda por aí... porque ainda há muito por fazer!


sábado, 13 de junho de 2020

Obras do Regime

Foi há oitenta anos. Tinha a minha avó doze anos. Estávamos no verão de 1940.

A menina que era a minha avó, não andava na escola. Nos últimos quatro anos da sua vida , andava à costura na casa de uma senhora que era costureira na rua Aguiar, ao lado da Vinícola do Barreiro, onde mais tarde veio a ser um prédio, onde funcionou a sede da Mocidade Portuguesa e depois do 25 de Abril a UEC e a seguir a JCP. Vivia no Alto do Seixalinho, em casa de uma irmã vinte anos mais velha, operária corticeira sem filhos. Dormia num divã, aqui no quarto onde vos escrevo. Depois do trabalho como ajudante de costureira, vinha ajudar na lida da casa. Os pais não tinham dinheiro para sustentá-la. A mãe era operária corticeira e o pai era pescador. Os irmãos, um estavam na tropa, outro era operário na cuf, as duas irmãs casadas trabalhavam como operárias corticeiras.

Aqueles anos do início da guerra, foram particularmente duros para as pessoas que viviam do seu trabalho no Barreiro. No inverno de 1939, tinha havido muitos despedimentos na fábrica da CUF, em que os operários trabalhavam precários. O rio andava fraco de peixe e os salários eram rasteiros. Era o tempo da sardinha a dividir por tres, da lamejinha roubada ao rio mexida com dois ovos para alimentar as bocas que se sentavam à mesa. As notícias da guerra chegavam alarmantes e os boatos corriam pelas ruas.

No início do ano começou-se a falar no assunto. Do Barreiro, havia alguns operários da construção civil que lá trabalhavam. Trabalhavam a mata-cavalos, sem direitos, sem as mínimas condições de segurança e debaixo de grande pressão. Construíram a Exposição do Mundo Português. Obra máxima do fascismo em Portugal. Ideia copiada da monumentais edificações de propaganda nazi que o todo poderoso secretário Antonio Ferro importará decalcando o conceito.

A exposição foi inaugurada a 23 de Junho de 1940 pelo Senhor Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar. Também estiveram presentes a figura decorativa de estado Óscar Carmona e o idolatrado Ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco. Além destes cabrões fascistas, no dia da  inauguração esteve lá a minha avó.

O nazi António Ferro organizou a mobilização de muitos milhares de crianças de Lisboa e dos subúrbios. Do Barreiro foram numa imensa excursão de crianças e adolescentes. Vestidinhos de lavado e organizados em rebanho. Quando chegaram deram-lhes uma bandeirinha portuguesa em cartão presa num pauzinho. Deviam bater palmas e abanar a bandeira. Em pagamento pelo trabalho de fazer cenário para as fotografias, tinham direito a um lanche de pão com manteiga e podiam ver a exposição. O Padrão dos Descobrimentos era a mais impactante dos objectos expostos. Agente pequenina, cá em baixo, olhava para cima e tinha de dizer haaa...

A minha avó viveu quase noventa anos impressionada com a Exposição do Mundo Português. Recordou o dia que foi à exposição até ao fim. Os jardins, os pavilhões, o padrão dos descobrimentos, as delegações das províncias ultramarinas. Sobretudo recordava a dimensão e a riqueza ostentada na propaganda do regime comparada com a pobreza e a miséria que era o dia a dia que ela conhecia.

A exposição recebeu cerca de três milhões de visitantes, dizem os números oficiais. Dizem os historiadores que constituiu a mais importante iniciativa cultural do regime. A narrativa da história para contemplação e inspiração dos presentes. O grandioso espírito português. O maior acontecimento cultural do século XX em Portugal.

Se calhar foi. Para a minha avó que lá esteve, foi muito marcante.

Os meninas e meninos do barreiro como a minha avó que foram levados em rancho para a exposição do mundo português, amadureceram depressa nos anos de guerra. A maioria destas crianças e adolescentes trabalhavam por migalhas, e era de migalhas que viviam.

Mas a vida é dinâmica e o mundo anda às voltas. Por mais grandiosa, sofisticada e promovida que fosse a propaganda fascista, abanar a bandeirinha nacional já não chegava para manter a malta satisfeita. Esse fascismo que criou a narrativa do orgulho luso e queria o povo como espectador passivo da narrativa historia que lhe contava, já não tinha pão com manteiga suficiente para matar a fome.

E a fome é do caralho!.

Três anos, depois em 1943, muitos das crianças e adolescentes que viram a exposição do mundo português com a bandeirinha na mão, estavam organizados numa greve a exigirem salários que lhes permitisse comer. Deixaram de ser espectadores e passaram a ser actores e agentes da própria história. E o mundo avançou mais um bocadinho.

Quando a fome aperta, as pessoas lutam e o mundo avança. Por mais narrativas, estátuas, monumentos e lendas de heróis que se construam para atrasar o avanço do mundo. Por mais televisões, vídeos, comentadores, opinadores, influenciadores, historiadores, apresentadores, e outros especialistas de tudo, que nos venham dizer que está tudo bem, que nos venham dizer que é mesmo assim que temos de nos aguentar...Por maior que seja o padrão edificado a glorificar um passado grandioso na mentira e a prometer o céu na terra... 

Por mais vezes que nos digam que vai ficar tudo bem...

Quando não há que comer, não vai ficar tudo bem.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O Homem da Cortiça

Encontrei o Homem da Cortiça em pleno montado. Foi o filho que me levou.

Fui depois de almoço. O homem tem cara séria e rosto curtido. A expressão de quem já passou por tudo e já viu tudo o que tinha que ver. Ao fim da tarde vim a conheço melhor, acho-o assim, duro por fora , macio por dentro, como a cortiça que tem desenhada na linha da vida. Setenta anos feitos e vividos quase sempre no Alentejo.

Conheci três Alentejos, diz o homem, o Alentejo da miséria dos latifúndios, o Alentejo das cooperativas e o Alentejo vazio de gente e cheio de javalis. Agora um homem pode passar uma semana a andar por esses montados e não vê ninguém. Javalis, raposas, texugos e mochos a habitar as ruínas. Mas não vê ninguém.

Fomos falando. Sobre cortiça e rolhas. Da verdade absoluta de dê o mundo as voltas que der, enquanto se beber vinho, vão haver operários corticeiros porque não se conseguem rolhar garrafas diretamente nos sobreiros.

Ao lado um camião onde foi preciso por dez toneladas de cortiça. O filho do homem, foi quem neste dia feriado, foi na qualidade de empresário negociar o valor daquela cortiça com o proprietário da herdade. Comprou de manhã e era preciso carregar à tarde.

O homem, continua a acompanhar o negócio, mas está mais retirado. O tempo deu-lhe memórias que é seu dever partilhar. O filho tratou de carregar o camião. O homem teve o trabalho de me contar como foi. Como foi o caminho que fez de rapazinho pelos montados do Alentejo até chegar ali. Contou-me da guerra colonial em Angola e da escola para quadros em Cuba. Contou-me das árvores do Uíge e dos dois sobreiros que plantou em Havana.

E contou-me a retorcida história que fez dele um dos últimos moicanos dos industriais corticeiros. Contou-me como depois do vinte e cinco de abril, com outros operários corticeiros e agrícolas fundou a cooperativa corticeira. Contou-me como foi haver direito a férias e a subsídios pela primeira vez. Como foi ter direito a baixa por doença. Contou-me como foi negociar em nome da cooperativa o preço da cortiça com os grandes proprietários rurais. Falou-me do respeito que a cooperativa ganhou de alguns que diziam: “eu prefiro vender aos comunistas da cooperativa que são de contas certas” . Contou-me como outros fugiram para o Brasil e deixaram buracos financeiros em dívidas aos fornecedores. Contou-me de como era quando havia corticeiras. Trezentas ou quatrocentas fábricas de cortiça por todo este sul. Do Montijo a Silves do Barreiro a Vila Real de Santo-António.

E contou-me da voragem do predador que foi chegando e de como com dentes afiados devorou tudo. Quase tudo. Do grupo que põe e dispõe preços porque detém mais de 98% da indústria corticeira em Portugal, um país onde a constituição diz que não são permitidos monopólios e nenhuma empresa pode ter mais do que uma cota de 49% do mercado.

Enquanto o homem falava, ao nosso lado outros homens atiram a cortiça em malabarismo para cima da pilha que subia nas costas do camião. Entre os carregadores, a atirar cortiça para cima do camião, o seu filho, seu orgulho e seu tesouro.

O homem falou-me do braço de ferro desigual entre grandes e imensos proprietários rurais de como algumas famílias detentoras de meio mundo se endividaram aos bancos que executaram as hipotecas das herdades para entregar a outras famílias já eram donas de mundo e meio.

Contou-me que quando acabou a cooperativa que ajudou a fundar, estava com quarenta anos e não sabia fazer mais nada além de negociar, comprar, arrancar, empilhar, carregar, descarregar, cozer, tratar e cortar cortiça. O homem explicou-me como foi empurrado para a aventura de ser patrão. Como aquilo lhe foi acontecer logo a ele que sempre lutara por um mundo sem patrões nem empregados.

O homem contou-me de como foi continuar a negociar e comprar cortiça não para a cooperativa mas para ele. Da luta que é hoje exigir que as pessoas que trabalham com ele sejam sindicalizadas e desta contradição tremenda de ser patrão e ter de politizar os trabalhadores!

Enquanto o homem falava, o camião a aumentar de volume com a cortiça que voava e era arrumada em tetris lá nas alturas. E o homem a mostrar-me como se carrega o camião. A falar-me com afeto daquela camião. Um carro que chegou a ser da cooperativa e que ficou com um credor e que ele conseguiu comprar e recuperar, uma máquina com 40 anos que transporta dez toneladas sem sobressaltos.

O homem explicou-me quanto ganham os carregadores. Lamentou-se que não são trabalhadores da corticeira. No tempo da cooperativa, os carregadores eram da corticeira e ganhavam todos o mesmo com salários estabelecidos pelo sindicato. Agora são todos de empresas independentes, empresas que se criam sazonalmente para andar pelos montados a carregar camiões de cortiça. Trabalham de junho a setembro. Ganham entre 160 e 220 euros por dia. O filho do homem, sem parar de trabalhar, de vez em quando ria-se para mim e para o pai, estava a trabalhar tanto como os outros mas não ia ser pago por isso.

Então porque é que está a carregar? Para ajudar a despachar e ele não tem feitio para estar quieto. Trabalha desde os dezasseis anos disse o pai, sem esconder o justificado prazer em contemplar o moço que fazia pontaria com as pranchas de cortiça para cima do carro.

Achas muito os duzentos e vinte euros? Então vê lá o trabalho destes homens. Olha lá para eles. Hoje nem está muito calor. Estão com sorte! Agora imagina isto com temperaturas que rondam os 40 graus, empoleirados nas pilhas de cortiça.

Nós a falar e os homens sem parar, à volta do camião que vai enchendo em altura.

Todos os anos há acidentes. Agente avisa que precisam de ter seguro. Mas a maioria é malta que está ilegal e acha que está a ser muito bem paga!!! É verdade que chegam a ganhar seis mil euros pr mês... sem feriados sem folgas... no pico do verão e trabalho feito ao calor...e depois no inverno? Alguns poucos, com mais juízo, orientam as coisas e no inverno têm um pé de meia que dá para se irem vivendo. Outros, gastam tudo em bebedeiras e raparigas. Sabes que, atrás desta malta vêm sempre uma industria paralela de chulos e moças a fazem vida do que eles ganham... Mas vái lá tu falar-lhes em sindicalizarem-se... até se riem, não me mandam à merda que eu sou velho e eles têm-me respeito!

Equipe multi-étnica entre africanos e sul americanos fala pouco enquanto trabalha. Mas trabalha muito e depressa. Quer despachar a carga. Ganham à carga, 55 euros cada carga. Chegam a fazer três e às vezes no pino do verão, em época alta quatro cargas por dia. Um camião demora entre três a cinco horas a carregar. Realmente duzentos e vinte euros por trabalhar vinte horas por dia em pleno verão no Alentejo, não é bem pago...

O filho do homem a ouvir-nos sem parar de trabalhar.

Depois o homem contou-me de como ali, no Alentejo Litoral, as herdades gigantes que resultaram da concentração e anexação de outras grandes herdades. Como nos últimos quinze anos, vinte anos os grupos bancários, donos associados destas super herdades, assumiram os interesses no imobiliário. E de como se fizeram campanhas autárquicas milionárias com aviões a sobrevoar terras de gente pobre a prometer mundos e fundos. De como empregados dos bancos vieram durante quatro, oito, doze anos serem presidentes das câmaras para cozinharem as leis que permitem aos ricos comprar casas nas dunas e que obrigam os pobres à resignação de morar em armazéns convertidos em dormitórios coletivos... De como se foram embora e voltaram para os conselhos de administração dos bancos deixando as autarquias falidas.

Não me contou mas percebi-lhe a angústia que todo este desmoronar de uma região lhe causava.

O camião estava finalmente carregado. Dez toneladas. Ao lado ainda ficou outro tanto.

O filho a coordenar a operação colectiva de prender a carga. Uma ciência de precisão onde não pode haver erros. Física presa com cabos de aço que determina a segurança de quem vai na estrada.

O filho seguiu no jipe. Nós entramos juntos no camião.Afinal é ele o empresário, riu-se o pai!

O empresário como o pai lhe chamou, foi à fábrica buscar um saco cama e dois rafeiros alentejanos deste tamanho e de boca grande para irem dormir com ele no montado ao lado da cortiça que ainda lá ficou. Foi lá passar a noite porque o Alentejo esvaziado de gentes tem ladrões por todo o lado. E a cortiça que ali está, já está paga, cortada e pronta a carregar.

Eu e o homem seguimos juntos por uma estrada vazia. Fomos pesar a carga a uma balança para camiões. O contabilista criou a guia no computador e mandou a referência por sms.

Já cúmplices, deixamos de falar de política para passarmos a falar de amor.

Contou-me de como o partido e a cooperativa lhe roubou tempo que era da família. Tempo para amar a mulher e os filhos como eles mereciam. De como os anos e anos de reuniões e lutas lhe ficou com muitas horas do mais precioso que a vida lhe deu que são as pessoas que ama. Não lamenta o tempo perdido, mas diz que se fosse hoje tinha feito diferente, tinha feito outras escolhas... não são outras escolhas políticas!!! não me interpretes mal! --- como se fosse possível interpretá-lo mal – Mas sério que tinha feito por passado mais tempo com os meus...Tinha feito diferente.

Por cima e atrás estavam dez toneladas de cortiça a testemunharem o momento.

Como se fosse lhe possível ter feito diferente....



sexta-feira, 5 de junho de 2020

Preto, magrebino, cigano, judeu, monhé

No inicio dos anos oitenta fiz uma viagem de carro com os meus pais. Foi no verão e estava calor. Atravessamos toda a Espanha e toda a França pela torreira de Agosto sem ar condicionado. Eramos quatro dentro do citroen sem ar condicionado. Fomos à Suiça visitar familiares emigrados. Pelo caminho fizemos alguma praia. O sol quente deixou-nos a pele castanha. Sobretudo a mim e ao meu pai. Quando chegamos à Suiça, iamos da cor que somos, cor da gente do sul. A cor da pele de quem está acima do Cabo da Boa Esperança e abaixo do Cabo da Roca. Uma manhã de sol fui com o meu pai às compras para o almoço numa terreola de labregos suiços. A puta da empregada da mercearia, quando o meu pai entrou comigo, reagiu como se tivessemos uma doença contagiosa ou se fossemos roubar-lhe a loja. Perguntou-nos de que país de Africa vinhamos, atirou-nos o pão para cima do balcão e correu conosco. O meu pai, que é mais educado e polido que eu, pagou o pão que comprou, agradeceu o troco e virou-lhe as costas. Eu nessa manhã aprendi o que é ser preto. Foram uns tres minutos dentro da mercearia, mas chegaram para perceber. Passaram-se quase quarenta anos sobre este episódio de ser preto por três minutos. Mas não me esqueci. Ao longo da minha vida, passei por muitos lugares. lugares onde fui estrangeiro. Muitos continuaram a confundir-me com arabe, outros com judeu. Fui cigano iberico para ciganos romenos. Romeno para bulgaros. Fui grego para turcos e turco para russos. Indiano, berbere entre argelinos e marroquino entre tuaregues. Brasileiro entre cubanos, cubano entre outros latinos. Muitos nomes, rotulos com bandeiras de países, nacionalidades, raças e etnias. Mas ninguem acertou na minha estranha etnia. Nunca ninguem foi capaz de me dizer que diser que raio raça é esta de ser um miudo preto a comprar pão com o pai numa mercearia damn suiça alemã.

sábado, 23 de maio de 2020

Quando o medo matou

O António Gervásio tinha vinte e sete anos quando aquilo aconteceu. Estava há mais de um ano e meio clandestino. Foi no verão de 52 que foi preciso mergulhar. Deixou para trás a família, os amores de juventude e o próprio nome.
Trabalhava desde miúdo. Eram uma família numerosa nos arredores de Montemor-o-Novo e era precisa dar de comer a todas as bocas. Tinha sido preso em 47 por ser comunista. Comunista foi até ao seu ultimo dia. Ficou com a tarefa de organizar as lutas dos trabalhadores rurais no Alentejo. Conhecia bem a região, era disciplinado nos procedimentos da clandestinidade e não se queria deixar apanhar.

Na primavera de 1954 estava pelo Baixo Alentejo. Ficava numa casa nos arredores de Beja, perto da estação dos comboios e junto a uma estrada secundária onde era fácil o acesso na sua bicicleta.

Preparava-se uma jornada de luta por mais salário contra a fome e a precariedade.

O funcionário comunista, profissional da revolução, foi fazendo o seu trabalho. O Primeiro de Maio foi de luta em Beja. Nos dias a seguir, a chama da mobilização alastrou pelos arredores.

O trigo estava a crescer bem, mas as ervas daninhas regadas com as chuvas e crescidas com o sol daquele Abril, ameaçavam as espigas. Eram precisas muitas mãos para mondar. Mãos de mulheres. Eram a mão de obra mais barata e no conceito obtuso dos donos da terra, era um trabalho “leve”. Porque não implicava força física, era entregue às mulheres que trabalhavam ao dia, dizia-se à jorna... Como se andar sete, oito, ou nove horas dobrada entre as espigas do trigo a arrancar ervas à mão, fosse um tralho leve... O que é certo é que as mulheres ganhavam quinze tostões por dia, os homens ganhavam vinte e cinco. As mulheres estavam a lutar por um aumento. Queriam dois escudos por dia.

De Baleizão, chamaram-no para reunir com as mulheres. Ouvir as razões das mulheres, partilhar a sua experiência, aprender com elas e ajudar na organização. Foi para Baleizao varias vezes naqueles Maio.

A mobilização foi fácil, a organização foi mais difícil. Eram indisciplinadas. Falam todas ao mesmo tempo e sobre vários assuntos. Ao inicio havia algumas receosas, depois, umas com as outras perderam o medo e ganharam força, disciplina e coragem. Queriam dois escudos por dia. Passaram muitas horas a falar até que combinaram que não trabalhavam por menos de dezanove tostões. O funcionário clandestino, explicou que era essencial chegaram a um acordo entre elas e soldarem a aço esse acordo, depois era uma questão de negociação com o patronato.

No dia quinze de Maio, foram falar com o feitor que contratava. Iam umas seis. A Catarina, da família dos Eufémia, foi nesse grupo. A Catarina levava o miúdo de oito meses ao colo e os outros dois rapazitos atrás.

O feitor do lavrador disse logo que não ao aumento e manteve os quinze tostões por dia. Depois fez três telefonemas do telefone da herdade: telefonou aos patrões donos da terra, telefonou para a guarda em Beja e e depois telefonou para a pide a contar-lhe tudo.

As mulheres voltaram tristes mas não vieram derrotadas. Falaram entre si e decidiram continuar a luta. Falaram em greve. Reuniram com o clandestino que chegou à noite de bicicleta. Encontraram-se num ermo no meio dos montes, longe da GNR e da pide. O revolucionário explicou que era preciso terem a certeza que queriam avançar, que uma greve não se faz com indecisos. Aqui não há indecisos porra! Assim disseram elas.

O funcionário clandestino pedalou entre o contente e o apreensivo. Sabia que as mulheres quando se juntam numa vontade, fazem acontecer. Em Baleizão diz-se que a mulher quando quer faz o ninho na cabeça de um alfinete. Não era para tanto... mas sabia ia ser difícil.

Na tarde de dezassete de maio, na aldeia de Baleizão correu o boato que o Lavrador do Monte das Oliveiras ia contratar um mulheres que vinham do Ribatejo ou da Beira Baixa para mondar por quinze tostões. Vem um rancho delas para nos furar a greve, disseram na venda.

No dia dezoito não aconteceu nada. O funcionário explicou que nesta fase o importante não era hostilizar as trabalhadoras que vinham para trabalhar, mas sim falar com elas e ganha-las para a luta dos dois escudos por dia.

Na manha de dia dezanove de Maio, chegaram as fura-greves de camioneta. As mulheres decidiram ir falar com as novas. Queriam convence-las a aderir à greve. O feitor tinha pedido protecção da guarda para as fura-greves. As grevistas foram em grupo, uma dúzia delas. Vieram a pé de Baleizão, ai a uns dois quilómetros até ao monte. A Catarina, vinha à frente com o bebé de oito meses ao colo.

A cortar-lhes o caminho, a guarda.

O tenente falou para as ceifeiras:

– O que é que vocês querem daqui?

Foi a Catarina que lhe respondeu:

– Queremos pão para os nossos filhos.

– Não quero aqui politica, tá a dispersar!

As mulheres não dispersaram. Mantiveram-se unidas. Queremos pão gritaram.

O tenente, assustou-se com a força e a coragem daquelas mulheres.

Pálido, ameaçou:

– Vão-se embora ou eu mando disparar!

As mulheres mantiveram-se firmes e gritaram palavras de luta.
O militar da guarda que comandava, teve ainda mais medo.
Tinha medo dos lavradores que o ameaçavam com um desterro longínquo se não resolvesse imediatamente a situação. Tinha medo da pide que lhe dizia que ele tinha de mostrar força com os comunistas. Tinha medo que os seus homens o achassem um merdas porque não conseguia por na ordem meia dúzia de mulheres. Tinha medo dos comunistas que lá da Rússia mandavam agentes disfarçados de ceifeiras. Tinha medo das ceifeiras que não tinham medo dele. Tinha muito medo das mulheres sem medo. E naquele momento o seu maior medo era o medo de não ser capaz de dominar o seu medo.
Na mão a pistola-metralhadora a dar-lhe o estatuto de oficial da Guarda. Na boca a secura e no ânus o aperto do medo. O medo a invadir-lhe a digestão. O medo a revolver-lhe o estômago e as tripas.

Atrás o feitor. `À frente as ceifeiras. À volta os seus homens armados e a seara. A convulsão do medo exigia uma saída. Ou vomitava na biqueira das botas dos seus subordinados, ou defecava na farda de tenente.

Os dedos apertaram o gatilho. A arma disparou-se. O medo fê-lo esquecer-se de tudo menos de como se mata.

Disparou à queima roupa.

Caiu a moça da frente que lhe tinha virado as costas para dizer algo às companheiras. A que tinha uma criança ao colo. Magra mas bonita. Vinte e poucos anos. Caiu ela e o miúdo. Magoou-se a criança. Assassinou-se a mãe.

O choro e os gritos acalmaram o medo ao tenente da guarda. O cheiro a pólvora e a sangue devolveram-lhe a compostura marcial de pilar do regime.

Veio uma ambulância buscar o corpo  e o bebé ferido.

As outras ceifeiras gritavam.

Vieram mais guardas.

Nesse dia não se trabalhou.

O relatório da autopsia descreve o cadáver da mulher de vinte e seis anos, de estatura mediana (1,65 m), de cor branco-marmóreo, de cabelos pretos, olhos castanhos, de sistema muscular pouco desenvolvido. Mais à frente, na frieza dos dados clínicos, o mesmo relatório tem impresso que a vitima foi atingida por "três balas, à queima-roupa, pelas costas, actuando da esquerda para a direita, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente, com o cano da arma encostada ao corpo da vítima deixou um rasto de queimadura. O agressor deveria estar atrás e à esquerda em relação à vítima".

O funcionário clandestino, chorou de raiva enquanto pedalava. Abalado, fez da emoção coragem e organizou um funeral digno da dimensão da tragédia.

O tenente da gnr, foi transferido de Beja para Aljustrel. Na lógica do regime, uma mão firme como a do tenente era o ideal para lidar com os mineiros. Numa farsa de julgamento foi absolvido o o tenente que matou por medo. Morreu em 1964.

A Catarina Eufémia foi sepultada em Baleizão há sessenta e seis anos e nunca morreu.



segunda-feira, 13 de abril de 2020

Malunguinho

Quem se faz ao mar oceano e vai por aí a baixo, passando a Madeira tem as ilhas do Cabo Verde. Seguindo em frente, mais um bocado, virando à esquerda está Luanda - a Bela. Se virarem à direita, e seguindo sempre a direito, está o Recife, capital do Pernambuco. Mesmo ao lado do recife, está a cidade de Olinda. O nome já diz o que é. 
Na zona da Olinda, até meados do século XIX, as matas vinham virgens até ao mar. Pois foi há coisa de uns duzentos escassos anos, nas matas de Olinda que o João Baptista fez a casa. 
Não se confundam. Nem era uma casa nem o nome dele era João Baptista. 
João Baptista foi o nome que um negociante de escravos deu ao rapaz, quando o vendeu, ainda antes de ser homem. João Baptista, foi que ficou nos registos e nas cartas do governador de Pernambuco a pedir tropas e armas para capturar e matar o homem que se fez livre e que despiu os grilhões que lhe prenderam nos pés. 
O João, chamemos-lhe assim por enquanto, liderou e organizou aqueles que fugiam aos engenhos de açúcar. Esses que com o seu trabalho escravo financiavam a burguesia do recém-independente Brasil. Este João, depois de se ter descravizado, refugiu-se nas matas à volta de Olinda e organizou um Quilombo. 
Um espaço geográfico, cultural e politico de resistência. Com leis próprias, economia baseada na agricultura de subsistência, na caça e na pesca. Um lugar organizado politica e militarmente à volta dos objectivos da liberdade e sobrevivência enquanto pessoas livres. 
A maioria destas pessoas eram provavelmente oriundos do Uige no Norte de Angola, do Zaire e de Cabinda, populações essencialmente bantos. Falavam kikongo. Chamavam-se a si mesmo m'lungos, que quer dizer em kikongo, "do barco". Gente que veio no barco. Populações africanas escravizadas e importadas através do Atlântico, no tráfego negreiro de África para o Brasil. 
João Baptista e os outros malungos no Quilombo do Catucá, não só resistiram, como alargaram os limites do seu território. Coisa que assustou muito os produtores de açúcar e outros fazendeiros e negociantes em Pernambuco. 
A história ensinou-nos a todos que não há coisa mais perigosa que um burguês borrado de medo... 
Os senhores do Recife, decidiram abrir os cordões da sua pesada e açucarada bolsa e pagar uma solução. Esforçados, os políticos que tinham como função defender os interesses dos ricos, pariram então aquilo que viria a ser a Policia Militar. No Brasil, a PM, ao contrário das outras policias militares, não tem como função policiar os militares, mas serve sim para policiar militarmente os civis... É assim desde que foi criada! 
Voltando à Olinda de duzentos anos atrás, os policias militares que eram muito eficazes a aterrorizar os pobres escravizados da cidade do Recife, perdiam a arrogância e a competência quando tinham de entrar na mata para lutar contra os Malungos. 
Por mais incursões armadas ao serviço dos barões do açúcar que fizessem, não conseguiam capturar o tal líder a que o negociante de escravos tinha chamado João Baptista. A guerra durou cerca de 21 anos. Inevitavelmente acabou como tinha que acabar. Em 1835, numa emboscada baseada numa informação paga a peso de ouro, foi assassinado o João. 
Os senhores dos engenhos puderam finalmente dormir em paz e capitalizar os seus lucros abrindo mais engenhos e vendendo mais açúcar. 
Os historiadores escreveram sobre o progresso do independente Brasil Imperial e sobre a jovem República dos Estados Unidos do Brasil. Ordem e Progresso, escreveram eles. 
Sobre o João, nem uma linha. 
Acontece que o povo, mesmo que não saiba escrever, faz o seu próprio registo histórico. E no nordeste do Brasil, o líder da revolta dos malungos passou a ser cultuado como uma Entidade Mágica, um Mestre Sagrado. Quase um santo, um semi-deus. Ainda hoje, nordeste do Brasil, quando o povo quer celebrar a resistência, a capacidade de lutar e a vitória contra injustiça, canta, dança, reza numa mesma cerimónia. Pedem ajuda ao Exu Malunguinho, ao Caboclo Malunguinho e ao Mestre Malunguinho. 
Eita que coisa mais linda os pobres se enriquecendo com a sua história!

sábado, 11 de abril de 2020

Noites covid

E que é vocês me dizem sobre este silencio que fica na noite? O silencio do vazio. Sem os carros a passar na rua. Sem as vozes. Sem os autocarros a travar ao longe na paragem do autocarro. O silencio dos bichos assustados metidos nas tocas. Bichos com medo. ... 
Aconteceu-me uma vez entrar na selva à noite. Fui depois de um dia de chuva. Na zona da fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Estava alojado numa espécie de quinta. Um terreno agrícola roubado à mata virgem. Depois da cerca, o imenso verde. O universo colossal e frondoso das árvores gigantes da altura de prédios de muitos andares.
Durante a manha tinha percorrido meia-dúzia de metros de um trilho que dava entrada na selva. Nessa dia parou de chover ao por do sol. Aquele por do Sol rápido e quase instantâneo dos trópicos. Lembro-me que jantei, depois bebi um trago de aguardente misturada no chá. A minha companheira foi-se deitar e eu fiquei sem sono. 
Ali a ouvir as rãs, os insectos, os píos e os gritos das criaturas da noite. Fez-se tarde e eu sem vontade de dormir. Terá sido por curiosidade ou outro qualquer perverso instinto de procura, ou vertigem; nem sei eu sei porquê, mas fui. Meti-me pelo trilho que percorri durante o dia. 
O caminho até à selva pareceu-me muito mais comprido. Estava uma noite clara de quarto minguante como a de hoje e eu levava uma lanterna apagada, daquelas que se põem na cabeça. Tinha as mãos nos bolsos e botas calçadas. Os pássaros da noite a piarem e os insectos a zumbir. Quando passei a vedação da quinta e entrei na mata. E deixei de ver. O preto escuro profundo. Escuridão total. Acendi a lanterna e imediatamente todos os bichos se calaram. Continuei a andar. Mas já não ia sozinho. 
Caminhava com o medo. Um medo infundado e idiota do que podia estar. O medo intenso do silencio escuro que me envolveu para lá do circulo da luz branca do led. 
O medo entrou-me entre a camisola fina de algodão e o corta-vento impermeável e colou-se-me às costas e ao peito. Continuei mais uns cinco minutos pelo momentâneo túnel de luz que lanterna na cabeça fazia à minha frente. Depois parei. 
Sentei-me num tronco apodrecido, acendi um cigarro e apaguei a lanterna. Com a nicotina a circular tentei desmontar o medo. Medo de que? Do escuro? Do silencio? Do desconhecido? 
À minha volta os bichos da selva calada, recusaram responder. Apaguei o cigarro na sola da bota, guardei a beata na algibeira, contei ate cem para provar nem eu sei o quê a mim mesmo. Depois acendi a lanterna e voltei. 
Ao aproximar-me da casa, as rãs e os insectos retomaram o canto e o medo dissipou-se. 
Senti-me estúpido e fiquei sentado ao relento a pensar. Percebi que era o silencio que me assustava. O silencio é o pai do medo. 
Mais, muito mais que o escuro. Inventou-se a musica para combater o medo. 
Aprendi isso nessa noite. 
Passaram uns anos valentes. Mas nestes dias atípicos que todos vivemos, às vezes, à noite, oiço o medo. Quando toda a cidade se recolhe nas casas fechadas. 
Quando a noite fica vazia de sons. Só o zumbido do frigorífico a acompanhar a madrugada. 
Vejo os meus amigos a publicarem piadas nas redes sociais. E trocamos anedotas. E aparecem passatempos. E trocamos receitas. E partilhamos erotismo e pornografia. E tocamos canções uns para os outros. E dizemos parvoíces. 
E fazemos bem. 
É tudo o barulho para espantar o medo. São mamas, cús, pilas e receitas de bolos e assados. Tudo para enxotar o medo. Para afugentar este cabrão deste medo que chega no silencio da noite e fica até começarem a circular os primeiros carros que nos trazem o sono.

domingo, 5 de abril de 2020

Pobres dos três -- de uma noticia num jornal

A mãe do miúdo foi atropelada por um condutor com álcool a mais. Morreu na 125. 
Foi há quatro anos. Tinha ele dezasseis anos, gostava de computadores de futebol e sonhava tirar a carta. Ficou sozinho com o pai naquele Algarve bipolar que balança entre a euforia do Verão e a depressão sinistra do Inverno.
O miúdo recompôs-se aos poucos. Família amigos e vizinhos solidários na dor. O pai meteu um processo em tribunal contra o bêbado que lhe matou a mulher e lhe deixou o filho órfão. Eu para mim não quero nada, é para o meu rapaz. O rapaz continuou a gostar de computadores.
Tirou a carta e empregou-se nos hambúrgueres para comprar o carro. Comprou um carro e chegou a chefe de turno. 
No tribunal o processo do atropelamento da mãe arrastava-se. 
Foi lá no trabalho dos hambúrgueres que o rapaz conheceu a conheceu. Ela era segurança e também gostava de carros. Sabia jujitso e também sabia de maquinas e sistemas operativos. O pai dela é da guarda e ela tinha sempre um ar durão que dava pica ao rapaz. Saiam muitas vezes tarde no final do turno. 
Envolvem-se e enrolam-se na cama do banco de trás do carro. Ele fala-lhe no processo e na indemnização que está à espera. Ela fala-lhe dos conflitos que tinha com o pai e de que estava a pensar ir viver com uma amiga. 
A amiga dela é enfermeira em Lagos. Vive sozinha e o ar duro e a farda da segurança também lhe dão tesão e desejo. As duas passaram a viver juntas. 
O rapaz mudou de trabalho para uma empresa de informática. Encontrava-se com ela só às vezes. Ela contou-lhe a ele sobre a amiga com quem vivia. 
E que ninguém podia saber que se encontravam. 
Ele concordou. 
Disse-lhe não queria assumir nenhuma relação. Que estava bem assim e que estava só à espera de receber o dinheiro do tribunal. Disse-lhe que estava quase.  
Em casa delas a tempestade das discussões começou por causa das mensagens. A da segurança disse que não era nada, que eram só amigos. A enfermeira confrontou-a com as mensagens apaixonadas e tórridas e fotografias sem roupa. Chamou-lhe puta, vaca, que não podia ver um gajo e que não prestava. Que vivia com ela, mas estava apaixonada pelo rapaz dos computadores. 
A companheira negou. Que não. Que era um negocio. Que estava a lutar por ambas. Que estava a arranjar maneira de irem de férias. Que era só para lhe sacar o dinheiro. 
Contou-lhe da indemnização do rapaz. Chorou e gritou amor por ela e nojo e asco ao rapaz. 
Lavou-lhe as mãos com lágrimas e secou-lhes as mãos, olhos e boca com beijos. Jurou-lhe amor eterno e fidelidade como só as mulheres em amores proibidos sabem jurar. Fizeram as pazes. 
Em Fevereiro no dia dos namorados jantaram as duas um jantar romântico. 
Na semana seguinte, a segurança voltou a encontrar-se com o rapaz. Desta vez a enfermeira já sabia. Desenharam um plano. Iam atraí-lo a casa delas e depois sacavam-lhe os códigos e transferiam o dinheiro. 
O tribunal e o banco a atrasarem o plano e o guito. 
A segurança sugeriu e prometeu ao rapaz um encontro a três. 
Se por uma mulher, muitos homens perdem a cabeça, por duas um rapaz perde a cabeça, os braços, as pernas, o corpo e até o dedo que dá para desbloquear o telemóvel. 
Março chegou e finalmente o banco fez a transferência. 
Na pressão dos turnos da enfermeira, dos horários da segurança e nos desafios do tele-trabalho urgente para o jovem técnico de informática, não foi fácil marcarem um encontro. 
Aconteceu finalmente. A noite fatal. Estavam os três nervosos. Na casa delas, a da segurança fez a manobra de estrangulamento que tantas vezes tinha ensaiado. Ele desmaiou. 
Ataram-no a uma cadeira e a enfermeira reanimou-o. Até aqui tudo como planeado por ambas. 
Ele percebeu que aquilo que o esperava não era aquilo que tinha imaginado. 
Elas pediram-lhe os códigos. Ele disse que não dava. 
A da segurança voltou a fazer o estrangulamento. 
Agora durante mais um bocado, para ele ver que elas não estavam a brincar. 
Estavam a sério e o rapaz morreu. 
Confrontada com o óbito, a enfermeira cortou o dedo da mão direita do rapaz morto para com as impressões do indicador desbloquear o telemóvel. 
Desbloquearam e tentaram transferência. 
O rapaz morto na sala não ajudava a acalmar as coisas.
E agora? 
Agora não podem encontrar o corpo. 
De qualquer maneira é demasiado pesado para o transportarem inteiro para dentro do carro.
Cortaram aos bocados e puseram em sacos do lixo. Depois foram semear o rapaz. De Lagos a Vila Real de Santo António. Pés, pernas, braços mãos, torço e cabeça.
No outro dia voltaram as duas aos seus trabalhos. Era preciso não dar nas vistas. 
Nessa noite bateram-se palmas aos profissionais de saúde. A da segurança aplaudiu a companheira enfermeira. A enfermeira chorou descontroladamente, da emoção do momento, comentou quem assistiu. 
Na manhã seguinte, um casal de turistas transviados no Pego do Inferno, encontrou a cabeça que cães vadios tiraram de dentro do saco. O rapaz ainda a olhar espantado para o que lhe tinha acontecido. 
O corpo sem pernas apareceu nas rochas de Lagos. 
Três dias depois foram as duas apanhas pela judiciária. Coisas de amadoras disseram os entendidos. 
O povo em choque, no primeiro dia dizia que era coisa de brasileiros ou romenos. Ou chineses. Sem duvidas de estrangeiros diziam. Estavam enganados. 
Agora com o casal detido, calaram-se as vozes contra os estrangeiros e o espanto tomou conta do barrocal. Pobres dos três.