terça-feira, 30 de abril de 2019

Nepal

Está por estes dias a fazer dezoito anos que conheci o Nepal. Cheguei sujo e catingoso. Foram três dias e duas noites dentro de uma camionete terceiromundista. No mapa da Índia a estrada que separa Varanasi na India de Katmandu no Nepal é um cabelinho curto encaracolado. São segundo o mapa 501km. Lembro me de entrar no autocarro na estação da rodoviária em Varanasi lavadinho de fresco e bem alimentado. Banhinho quente tomado e pequeno almoço robusto. Levava um farnel substancial para aguentar as quarenta e oito horas previstas para a viagem. Bananas, pão, duas garrafas de dois litro de água, chocolates bouty, duas latas de sardinhas e quatro maços de Camel que ainda sobravam do pacote de dez que há uma semana atrás tinha comprado na free shop em Delhi. Os primeiros 100 km foram tranquilos. Tranquilos...para estradas da Índia, claro. Com elefantes, vacas sagradas, mercados e paragens em todas as tascas onde o motorista tinha comissão. Entravam e saíam passageiros e mercadorias. A mochila debaixo do banco não incomodava e fui dormitando ao longo do dia. A camionete ia cheia. Indianos em viagem de turismo ao Nepal, emigrantes nepaleses de regresso, três australianas ruidosas, quatro japoneses silenciosos e este vosso amigo. A noite caiu e a viagem prossegue. Cada vez mais frio. Tirei a camisola de lã da Nazaré de dentro da mochila. No ano 2000 os polares eram raros. Começamos a subir. Esses nas curvas apertadas. Na manhã do segundo dia já íamos em alta montanha. Os Himalaias. Um frio do caraças e mais curvas. Sempre a subir. Numa curva da montanha, a fronteira. Mais umas horas de burocracia e vistos e revistas. Seguimos viagem. As vezes, quando nos cruzavamos com outro autocarro, porque a estrada é estreita e o precipício ao lado é assustador, saiamos todos do autocarro, para os motoristas com os carros vazios fazerem as manobras necessárias para passarem os dois... Depois voltavamos todos a entrar e seguiamos viagem. Cada vez mais alto e cada vez mais frio. Vesti toda a roupa que levava em camadas sobrepostas e embrulhei-me no saco cama. Houve alguém que me convenceu a levar pouca roupa porque no Nepal a roupa quente é muito barata. Mais uma noite e mais um dia. Mais frio. Três dias e duas noites depois de ter saído cheguei finalmente a Katmandu. Ao final da tarde comprei um casaco bem quente de inverno. Paguei tutimeia. Depois, procurei uma pensão barata em Freakstreet. (Onde havia de ser?!) Larguei a mochila e pedi para tomar um banho quente. Mais caro, mas as circunstâncias justificavam o luxo. Lavado e renascido, desci para comer numa salinha de teto baixo e forrada a peles aquecida por uma lareira. Bem aquecida. Tirei a camisola de lã e fiquei com uma t-shirt branca onde tinha uma foice é um martelo. O empregado ficou a olhar para mim e foi chamar o patrão. Chegou o dono em pessoa e num inglês de Inglaterra começou a fazer me perguntas sobre a t shirt... E sobre a foice e o martelo. Claro que lhe espetei logo com o cartão do PCP com as cotas em dia. O ambiente aliviou mas percebi que estava num país onde podia ser preso por ser comunista. E que o dono da pensão podia ter problemas se a polícia política visse símbolos de comunismo dentro do seu estabelecimento. Foram dias muito intensos e aprendi muito sobre o Nepal. A mesma história de todas ditaduras militares. Aqui com um rei fantoche, que já não era rei mas que governava, mais a polícia política, mais as prisões arbitrárias, mais as torturas, as mortes e os desaparecidos. A resistência dos intelectuais, as organizações de estudantes e operários e a guerrilha na montanha. Conheci vários simpatizantes comunistas. Depois de muitas noites de conversa com o dono da pensão, percebi que era um professor de liceu e que estava proibido de dar aulas pelas suas opções políticas. Tinha estado preso. Deixei-lhe a t shirt do PCP. Acho que de uma campanha de fundos para obras num centro de trabalho. Voltei à Europa e à Tuga. De longe fui acompanhando a vida política no Nepal. Vivi remotamente a chegada da democracia e as primeiras eleições. Agora fiquei especialmente feliz depois da vitória dos camaradas. Sinto que está na hora de voltar a subir lá acima a Katmandu para ir buscar uma t shirt.

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