terça-feira, 30 de abril de 2019
O almirante negro
Brasil 1910. A escravatura tinha sido abolida oficialmente há 22 anos mas a condição das pessoas não se muda por decreto. Apesar da modernidade da lei a sociedade continuava a ser completamente escravatura. Vivências de um Brasil de elites racistas e reaccionárias, uma realidade completamente diferente da actual....
A Marinha de Guerra do Brasil, com todos os pergaminhos e a pompa, foi uma das instituições que mais resistiu ao final do esclavagismo. O uso do açoite como medida disciplinar continuou a ser aplicado aos marinheiros mesmo depois de já entrado o século XX, acontece que a esmagadora maioria dos marinheiros eram negros e do castigo disciplinar previsto em regulamento, fazia-se espectáculo publico abordo dos navios. Tínhamos pois em pleno século XX, oficiais brancos, a mandar chicotear marinheiros negros. A acrescentar à novela da Escreva Isaura é preciso dizer que geralmente este castigo era aplicado por outros marinheiros também eles negros por determinação dos oficiais que eram exclusivamente brancos. O pelourinho continuava a existir nos navios da marinha do Brasil.
Quando algum marinheiro era condenado a açoites os outros marujos eram obrigados por regulamento a assistir à punição.
Em 1910 é a viagem inaugural do navio novo, o Minas Gerais. O Ministério da Marinha decide que devem ir mostrar o poderio naval do Brasil a Inglaterra. É sabido que quando o brasileiro que se acha elite, só de saber que vai na Europa, cresce mais três centímetros em racismo e arrogância. (Vá agora acusem-me de xenofobia a ver se me ralo!!) Aos oficiais, não cabia uma palha no cu de tão inchados que andavam na sua fardinha branca engomada por mãos negras.
Acontece que nessa mesma viagem inaugural, com tanta pompa e circunstancia, os marinheiros não quiseram ficar à porta do progresso e reivindicaram melhores condições de trabalho. Onde já se viu, uma navio todo equipado com o mais moderno em tecnologia da época, com todas as condições e comodidades para o oficalato, e onde os marinheiros, afinal essenciais para o seu funcionamento daquela maquina gigante, continuavam condenados a um porão de galé! Claro que não se pode isolar estas reivindicações do movimento pela melhoria das condições de trabalho levado a cabo pelos marinheiros britânicos entre 1903 e 1906. Isto para não falar na insurreição dos russos embarcados no couraçado Potemkin, em 1905.
Calhou em sorte ao um marinheiro, de nome Marcelino ir falar com o comandante daquele unidade flutuante para lhe apresentar as reivindicações dos outros marinheiros.
Como resposta, foi feita uma provocação num corredor, e por pretensamente ter participado numa briga, no dia 20 de Novembro de 1910 abordo do Minas Gerais, o Marinheiro Marcelino recebeu 250 chibatadas. Em frente a toda a tripulação, formada propositada e obrigatoriamente no convés. Parece que o homem desmaiou, mas os açoites continuaram. Era um recado para todos os que reivindicavam.
Os marinheiros revoltaram-se. A liderar o movimento, emergiu o Marinheiro João Cândido, que organizou os camaradas de armas em comités e se propuseram a fazer uma greve até serem abolidos definitivamente todos os castigos físicos. Os oficias responderam com ameaças e mais repressão. João Cândido tomou o navio.
Nos outros navios da esquadra a marujada também aderiu à revota.
O cabo Gregório liderava no São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.
A revolta alastrou na classe esclarecida dos marinheiros.
Comandado pelo João Cândido, os marinheiros, apoderam-se dos principais navios da marinha de guerra do Brasil
Cândido que ficou conhecido como o Almirante Negro, aproximou a sua esquadra de navios de guerra do Rio de Janeiro, entrou na baía de Guanabara com o Minas Gerais e mandou uma mensagem ao presidente da república exigindo a extinção do uso da chibata.
A capital de então era no Rio, o governo de brancos borrou-se de medo. Negros e ainda por cima vermelhos com armas na mão...A classe politica nas suas rivalidades das nomeações, uniu-se no cagaço. O governo e a oposição parlamentar tornaram-se momentaneamente solidários. Os jornalistas de serviço, obedientes lançaram uma campanha de terror. Fizeram correr todo o tipo de boatos sobre os revoltosos e o pânico espalhou-se pela população do Rio. Os negros no navio iam matar todos os brancos, violar todas as mulheres e queimar todas as igrejas...
Para dar mais colorido aos relatos, os navios amotinados, tinha hasteado bandeiras vermelhas e nos jornais cariocas falava-se na “Comuna do Almirante Negro”.
Neste impasse o governo negociou com os marinheiros e proibiu oficialmente o uso da chibata nos navios de guerra.
Foi negociada também uma rendição com amnistia para todos os amotinados.
Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas dos mastros dos seus navios. A revolta havia durado cinco dias e terminava. Aparentemente vitoriosa. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.
No entanto, a amnistia fora uma farsa para desarmá-los.
Assim que os marinheiros depõem as armas são presos imediatamente
A guarnição da ilha das Cobras que também se havia se sublevado é atacada. Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional, o que não é aceite. Segue-se uma verdadeira chacina. A ilha é bombardeada até ser arrasada.
Foram centenas os mortos e durante semanas deram à costa das praias corpos de marinheiros em decomposição com marcas de tortura.
Estava restaurada a honra da Marinha.
O presidente Hermes da Fonseca, aproveitou a ocasião e decretou o estado de sítio, para poder com a policia politica sufocar os movimentos democráticos que se organizavam.
João Cândido, o marinheiro eleito almirante, sobreviveu à chacina e foi encerrado numa masmorra da ilha das Cobras. Dos 18 reclusos da sua cela 16 morreram a maior parte, fuzilados sem julgamento.
João Cândido enlouqueceu, e acabou por ser internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e demente, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Em 1943, com sessenta e três anos, é-lhe concedida uma amnistia que lhe permite “ir morrer a casa”.
Assim que cruza as portas do presídio passa imediatamente à clandestinidade.
O Almirante só vem a morrer em 1969, com 89 anos.
Os últimos anos da sua vida foi peixeiro no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente e sem reforma.
Foi Ogan no Candomblé e até aos últimos dias, não deixou de cantar e tocar para os Orixas. Vivia com a sua família carnal e de santo, perto do mercado. Gostava de se sentar com os amigos para falarem de politica, de mar, de peixe e de admirar os rabos que passam. Gostava tomar cachaça e fazer samba em caixa de fósforos. Fizeram canções em sua homenagem. Gostava de falar com pessoas e de contar historias, sobretudo a historia do medo escarrado na cara dos oficiais.
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